Capítulo 38

— DESGRAÇA! — era o que Kevin não parava de dizer. — Desgraça!
Ele estava dirigindo há horas. Parou para comprar quatro garrafas de vodca em um supermercado. Uma delas já estava pela metade e, enquanto dirigia, enxergava tudo dobrado, a menos que apertasse os olhos, mantendo um deles fechado.
Estava procurando por bicicletas. Quatro, incluindo uma com cestinhas. Na situação em que se encontrava, era como se estivesse procurando por um peixe específico no meio de um oceano. Indo por uma rua e voltando por outra, conforme a tarde avançava e a noite começava a cair. Olhava de um lado para o outro. Sabia onde ela morava, sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela voltaria para casa. Entretanto, naquele momento, o homem grisalho estava em algum lugar com Erin, rindo dele, dizendo ao seu ouvido: “Sou muito melhor do que Kevin, meu bem”.
Ele gritava palavrões dentro do carro, socando o volante. Deslizou a trava de segurança da arma várias vezes, de um lado para o outro, imaginando que Erin beijava o homem grisalho, o braço dele ao redor de sua cintura. Lembrando-se do quanto ela parecia estar feliz, pensando que havia enganado seu marido. Traindo-o. Gemia e murmurava debaixo do seu amante enquanto ele arfava sobre ela.
Kevin mal conseguia enxergar, lutando contra a visão embaçada com apenas um olho. Um carro se aproximou dele por trás à medida que dirigia pelas ruas do bairro, seguindo-o de perto e depois piscando os faróis. Ele diminuiu a velocidade do carro e parou ao lado do meio-fio, dedilhando sua pistola. Detestava pessoas grosseiras, dessas que achavam que eram as donas da rua. Bang.
O entardecer transformou as ruas em um labirinto de sombras, fazendo com que fosse difícil identificar os contornos esguios das bicicletas. Quando passou pela rua de cascalhos novamente, Kevin decidiu dar meia-volta e visitar a casa de Erin novamente. Parou o carro logo antes de avistar a casa dela e desceu. Um gavião voava em círculos no céu e ele ouviu as cigarras cantando, mas, de maneira geral, o lugar parecia deserto. Começou a andar em direção à casa, porém, ainda à distância, viu que não havia nenhuma bicicleta encostada em frente. Nenhuma lâmpada acesa também. Mesmo assim, ainda não havia escurecido e ele foi até a porta dos fundos. Destrancada, assim como estava antes.
Ela não estava em casa e Kevin imaginou que Erin não havia voltado até ali desde que ele visitara a casa, mais cedo. Ele tinha certeza de que ela abriria as janelas, tomaria um copo d’água, poderia até mesmo tomar um banho. Nada. Ele saiu pela porta dos fundos, olhando para a casa vizinha. Estava em péssimas condições. Provavelmente abandonada. Isso era bom. Mesmo assim, o fato de Erin não estar em casa significava que ela estava com o homem grisalho, que havia ido até a casa dele. Traindo, fingindo que não era casada. Esquecendo-se da casa que Kevin havia lhe comprado.
Sua cabeça latejava no mesmo compasso das batidas do seu coração, como uma faca que não se cansasse de apunhalá-lo. Punhalada. Punhalada. Punhalada. Era muito difícil conseguir se concentrar enquanto fechava a porta por trás de si. Pelo amor de Deus, estava mais fresco fora da casa do que dentro. Ela vivia em uma sauna, suando com um homem grisalho. Eles estavam suando juntos agora, em algum lugar, contorcendo-se entre lençóis, com os corpos entrelaçados. Coffey e Ramirez estavam rindo daquilo, rindo tanto que não conseguiam mais falar, divertindo-se às custas do seu sofrimento. “Eu queria poder transar com ela também”, dizia Coffey a Ramirez. “Ah, você não sabia? Ela transou com metade da delegacia enquanto Kevin estava trabalhando. Todo mundo sabe disso”, respondeu Ramirez. Bill acenava do seu escritório, com os documentos da suspensão na mão. “Eu transei com ela também, todas as terças, durante um ano inteiro. Ela é uma fera na cama. Sempre diz as coisas mais sujas”.
Voltou a passos trôpegos para o carro, com o dedo no gatilho da pistola. Desgraçados, todos eles. Kevin os odiava. Imaginou-se entrando na delegacia e descarregando a Glock, esvaziando todo o pente de balas, mostrando a eles. Mostrando a todos eles. E a Erin também.
Ele parou e se curvou ao lado da estrada, vomitando novamente. Com o estômago dolorido pelas cólicas, uma sensação de que havia algo lhe corroendo por dentro, como um animal preso dentro de seu corpo, que tentava lhe rasgar a carne com as garras para se libertar. Vomitou de novo e depois teve espasmos secos. O mundo girou quando tentou se levantar. O carro estava perto e ele cambaleou até o veículo. Pegou a vodca e bebeu, tentando pensar como Erin, mas olhou em volta e viu que estava em um churrasco, segurando um bife de hambúrguer coberto por moscas enquanto todos lhe apontavam o dedo e riam.
De volta ao carro. A vadia tinha que estar em algum lugar. Ela iria assistir quando o homem grisalho morresse. Observar quando todos morressem. Queimar no inferno, queimar, queimar, todos eles. Com cuidado, ele entrou e deu a partida no carro. Deu marcha à ré e acabou batendo em uma árvore à medida que tentava dar meia-volta. Logo depois, xingando, acelerou com força para sair dali, fazendo voar os pedregulhos que cobriam a rua.
A noite não demoraria a cair. Ela veio nesta direção, tinha que es-ar por perto. Crianças pequenas não eram capazes de pedalar por tanto tempo. Cinco ou seis quilômetros, talvez sete. Ele havia passado por todas as ruas naquela região, olhara em cada casa. Nenhuma bicicleta à vista. Podiam estar dentro de alguma garagem ou estacionadas no quintal de alguma casa. Ele esperaria e ela acabaria voltando para casa em algum momento. Esta noite. Amanhã. Amanhã à noite. Ele enfiaria a arma na boca de Erin, apontaria para os seus seios. “Me diga quem é ele”, diria Kevin. “Quero apenas conversar com ele”. Ele encontraria o homem grisalho e mostraria a ele o que acontece com homens que dormem com as esposas de outros homens.
Parecia que ele estava sem dormir há semanas, sem comer há semanas. Não conseguia entender por que tudo estava escuro e começou a imaginar o que estaria acontecendo. Não se lembrava exatamente de quando chegara até ali. Lembrou-se de avistar Erin, lembrou-se de tentar segui-la e de dirigir, mas não tinha certeza nem mesmo de onde estava.
Uma loja apareceu à sua direita, um lugar parecido com uma casa com uma varanda em frente. “Gasolina e lanchonete”, dizia uma placa. Ele se lembrava daquele lugar, mas não sabia há quanto tempo havia estado ali. Diminuiu a velocidade do carro involuntariamente. Precisava de comida, precisava dormir. Precisava encontrar um lugar para passar a noite. Seu estômago se revirou. Ele pegou a garrafa, colocou o gargalo na boca e engoliu o líquido, sentindo a garganta queimar, sentindo o alívio que a vodca lhe trazia. Mas, assim que largou a garrafa, seu estômago se revirou em outro espasmo.
Entrou no estacionamento, lutando para não vomitar a bebida, sentindo a boca se encher de saliva. O tempo estava se esgotando. Pisou com força nos freios e o carro derrapou antes de parar em frente à loja. Ele desceu num salto. Foi até a frente do carro e vomitou no escuro. O corpo tremia, as pernas estavam bambas. O estômago estava a ponto de lhe sair pela boca. O fígado também. Tudo o que tinha dentro de si. Percebeu que, de algum modo, ainda estava com a garrafa nas mãos, não a havia largado. Respirou fundo e bebeu, usando a vodca para enxaguar o gosto azedo que tinha na boca, engolindo o líquido depois. Deu fim em mais uma garrafa.
E bem ali, como se estivesse em meio a um sonho, nas sombras escuras atrás da casa, viu quatro bicicletas encostadas lado a lado.

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