Capítulo 4
Todos vocês sabem, tenho certeza disso, que se houver um espelho
por perto é quase impossível alguém não se olhar nele por pelo menos um
instante. Apesar de estarmos fartos de conhecer nossa aparência, gostamos de
simplesmente dar uma olhada em nosso reflexo, nem que seja só para conferir se
estamos bem.
Enquanto esperavam do lado de fora do escritório o encontro com
seu novo tutor, os órfãos Baudelaire viram-se num espelho pendurado na parede
do hall e perceberam de imediato que não estavam tão bem. Pareciam cansados e famintos.
O cabelo de Violet achava-se todo coberto de pedacinhos de casca de árvore. Os
óculos de Klaus estavam tortos, mal posicionados, expressão que aqui quer
dizer — tombados para um lado por ele
ter passado a manhã inteira inclinado sobre as toras — . E havia pedacinhos de
madeira presos entre os quatro dentes de Sunny por ela os ter usado como
decorticadores. Por trás deles, refletida no espelho, havia uma pintura de uma
praia; o quadro, que estava pendurado na parede oposta, só contribuiu para
piorar o mal-estar deles, porque praia sempre lhes trazia à lembrança aquele
dia terrível em que os três irmãos foram se divertir à beiramar e de repente
receberam do Sr. Poe a notícia de que seus pais haviam morrido. As crianças
olharam para os seus próprios reflexos no espelho, depois para a paisagem de
praia por trás delas, e foi quase insuportável pensar em tudo o que lhes
acontecera desde então.
— Se naquele dia na praia
alguém tivesse me dito — falou Violet, —
que em pouco tempo eu estaria morando na Serraria Alto-Astral, eu diria que
essa pessoa estava maluca.
— Se naquele dia alguém
tivesse me dito — falou Klaus, — que em
pouco tempo eu me veria perseguido por uma criatura gananciosa e perversa
chamada conde Olaf, eu diria que essa pessoa era doida varrida.
— Wora — falou Sunny ,
querendo dizer algo como: ‘’Se naquele dia alguém tivesse me dito que em pouco
tempo eu estaria usando meus dentes para descascar árvores, eu diria que essa
pessoa era psico-neuroticamente perturbada’’.
Os órfãos olharam consternados para seus reflexos, e seus reflexos
consternados lhes retribuíram o olhar. Os Baudelaire passaram alguns momentos
pensando nos misteriosos caminhos que suas vidas estavam tomando, e estavam tão
profundamente mergulhados em seus pensamentos que chegaram a dar um pequeno
salto quando alguém falou.
— Vocês devem ser Violet,
Klaus e Sunny Baudelaire — disse esse alguém, e as crianças se voltaram para o
lugar de onde vinha a voz e depararam com um homem muito alto de cabelos bem
curtos. Ele vestia um colete azul-claro e segurava um pêssego. Sorriu e
caminhou em direção aos irmãos, mas franziu a testa ao chegar mais perto. — Ei, vocês estão cobertos de lascas de casca
de árvore — disse. — Espero que não
tenham se aproximado da serraria. É um lugar muito perigoso para crianças
pequenas. — Violet olhou para o pêssego
e ficou na dúvida se teria coragem de pedir uma mordida. — Estivemos trabalhando lá a manhã toda —
disse. O homem fechou a cara. —
Trabalhando lá?
Klaus olhou para o pêssego e teve que se conter para não
arrancá-lo da mão do fulano.
— Sim — disse. — Recebemos suas instruções e pegamos direto
no trabalho. Hoje foi justamente o dia de trabalhar com toras.
O homem coçou a cabeça.
— Instruções? —
perguntou. — Do que é que vocês estão falando?
Sunny olhou para o pêssego e o máximo de autodomínio que conseguiu
foi se conter para não dar um bote e enfiar os dentes na fruta.
— Molub! — gritou, o que provavelmente
significava: ‘’Estamos falando do bilhete datilografado que nos mandou ir
trabalhar na serraria!’’ ou algo parecido.
— Bem, não entendo como
três pessoas tão jovens como vocês foram parar na serraria, mas peço que
aceitem minhas desculpas; e permitam-me dizer que isso não acontecerá de novo.
Gente, vocês são crianças, pelo amor de Deus! Serão tratados como membros da
família!
Os órfãos se entreolharam. Será que as horríveis experiências em
Paltry ville não teriam passado de um equívoco?
— O senhor quer dizer que
não vamos mais precisar descascar troncos de árvores? — perguntou Violet.
— Claro que não — disse o
homem. — Não posso acreditar que tenham
sequer deixado vocês entrarem lá. Vou falar sobre isso com o novo tutor de
vocês, imediatamente.
— Não é o senhor o nosso
novo tutor? — perguntou Klaus.
— Não — disse o homem. — Peço desculpas por não me ter apresentado.
Meu nome é Charles, e é um prazer ter vocês três aqui na Serraria Alto-Astral.
— O prazer é nosso em estar
aqui — mentiu Violet educadamente.
— Acho difícil acreditar
nisso — disse Charles, — sabendo como
vocês foram forçados a trabalhar na serraria, mas deixemos isso para trás.
Ficou no passado e nós vamos começar do presente. Que tal um pêssego?
— Eles já almoçaram! —
exclamou uma voz tonitruante; os órfãos fizeram um rápido giro de cento e oitenta
graus e encararam fixamente o dono da voz. Era bem baixo, mais baixo do que
Klaus, e vestia um terno de um tecido verde escuro brilhante que o deixava mais
parecido com um réptil do que com uma pessoa. O que mais atraíra o olhar deles,
entretanto, fora o rosto — ou melhor, a nuvem de fumaça que estava cobrindo o
rosto daquele homem. Ele fumava um charuto cuja fumaça cobria-lhe toda a
cabeça. A nuvem de fumaça deixou os Baudelaire na maior curiosidade; queriam
saber como era o rosto dele, e talvez vocês tenham a mesma curiosidade, mas
terão que levar essa curiosidade para o túmulo, pois vou lhes dizer agora,
antes de prosseguir esta narrativa, que os Baudelaire jamais viram o rosto
desse homem, e eu tampouco, e vocês também ficarão sem o ver.
— Oh, como está, senhor? —
disse Charles. — Acabei de conhecer os
meninos Baudelaire. O senhor sabia que eles haviam chegado?
— Claro que sabia que eles
haviam chegado — disse o homem com rosto de fumaça. — Não sou nenhum idiota.
— Não, claro que não —
disse Charles. — Mas o senhor foi
informado de que os puseram de serviço na serraria? E logo hoje, dia de
trabalhar com toras! Eu estava acabando de explicar-lhes que foi um terrível
equívoco...
— Não foi um equívoco —
disse o homem. — Não cometo equívocos,
Charles. Não sou nenhum idiota. — Ele se
virou de tal modo que a nuvem de fumaça ficou bem à frente das crianças. — Olá, órfãos Baudelaire. Achei que devíamos
nos ver, vocês e eu.
— Batex! — gritou Sunny , o
que provavelmente significava: ‘’Mas nós não estamos nos vendo!’’
— Não tenho tempo para
discutir isso — disse o homem. — Então
vocês já conheceram Charles. Ele é meu sócio. Dividimos tudo meio a meio, o que
me parece justo. Vocês não acham?
— Acho que sim — disse
Klaus. — Não entendo muito do negócio de
serraria.
— É justo, sim, não resta
dúvida — disse Charles.
— Pois bem — disse o
homem, — também quero dar a vocês três
um trato justo. Soube do que aconteceu a seus pais, foi realmente um horror. E
também soube tudo sobre o tal conde Olaf, que tem jeito de ser um estúpido de
marca maior, e sobre aquelas pessoas esquisitas que trabalham para ele. Por
isso, quando o Sr. Poe entrou em contato comigo, pensei numa solução: tentarei
assegurar que o conde Olaf e seus comparsas jamais cheguem perto de vocês, e
vocês trabalharão na minha serraria até atingirem a maioridade e tiverem a
posse de todo aquele dinheiro. É ou não é um trato justo? — Os órfãos Baudelaire não responderam, porque
lhes pareceu que a resposta era óbvia. Num trato justo, como todo mundo sabe,
as duas partes oferecem uma à outra algo que tenha mais ou menos o mesmo valor.
Se você estivesse chateado de brincar com seu kit de química e o oferecesse a
seu irmão em troca do carrinho de bombeiros dele, seria um trato justo. Se
alguém me oferecesse sair clandestinamente do país num barco a vela em troca de
ingressos gratuitos para um show de patinação no gelo, seria um trato justo.
Mas trabalhar durante anos numa serraria em troca de o proprietário tentar
manter o conde Olaf à distância é um trato extremamente injusto, e as três
crianças sabiam muito bem disso.
— Ora, senhor — disse
Charles, com um sorriso nervoso para os Baudelaire. — O senhor não pode estar falando sério.
Serraria não é lugar para crianças pequenas trabalharem.
— Claro que é — disse o
homem. Levou uma das mãos para dentro da fumaça a fim de aliviar uma coceira em
alguma parte de seu rosto. — É um modo
de ensinar-lhes responsabilidade. Ensinar-lhes o valor do trabalho.
Ensinar-lhes como fazer tábuas bem aplainadas com a madeira das árvores.
— Bem, o senhor deve estar
certo — disse Charles, dando de ombros.
— Poderíamos ler sobre
todas essas coisas — disse Klaus, — e
aprender tudo isso nos livros.
— Isso é verdade — disse
Charles. — Eles poderiam estudar na
biblioteca. Parecem
muito bem comportados, e estou certo de que não criariam nenhum
problema.
— Essa sua biblioteca! —
disse o homem rispidamente. — Um
absurdo! Não dêem atenção ao Charles, crianças. Meu sócio insistiu em que
criássemos uma biblioteca para os empregados, e eu deixei. Mas não é algo que
substitua o trabalho esforçado.
— Por favor, senhor — pediu
Violet, — ao menos deixe que nossa
irmãzinha fique no dormitório. Ela ainda é um bebê.
— Propus a vocês um acordo
muito bom — disse o homem. — Garanto
que, enquanto ficarem do lado de dentro do portão, esse conde Olaf não chegará
perto de vocês. E lembrem-se que estou dando de lambuja um lugar onde dormir,
um jantar quentinho e uma goma de mascar no almoço. Tudo o que vocês precisam
dar em troca são uns poucos anos de trabalho. Parece-me um acordo muito bom. Bem,
foi um prazer conhecê-los. A menos que vocês tenham alguma pergunta a fazer,
vou me retirar agora. Minha pizza está esfriando, e se há uma coisa que eu detesto
é comer o almoço frio.
— Tenho uma pergunta — disse
Violet, embora na verdade ela tivesse muitas perguntas. A maioria começava com ‘’Como
o senhor pode...’’ ‘’ Como o senhor pode obrigar crianças pequenas a trabalhar
numa serraria?’’ era uma delas. ‘’Como o senhor pode tratar-nos de forma tão
horrível, depois de tudo por que passamos?’’ era outra. E ainda ‘’Como o senhor
pode pagar seus empregados com tíquetes em vez de dinheiro?’’ e ‘’Como o senhor
pode nos dar só um chiclete para almoço?’’ e ‘’ Como o senhor pode aguentar ter
uma nuvem de fumaça a cobrir o seu rosto?’’. Porém não parecia conveniente
fazer nenhuma dessas perguntas, pelo menos não em voz alta. Violet então
encarou o seu tutor, fixando o olhar na nuvem, e perguntou: — Qual é o seu nome?
— Não se preocupe com meu
nome — disse o homem. — De qualquer
forma, ninguém é capaz de pronunciá-lo. Chame-me simplesmente de Senhor.
— Levarei as crianças até a
porta, Senhor — disse Charles rapidamente, e despedindo-se com um aceno de mão
o proprietário da Serraria Alto-Astral retirou-se. Nervoso, Charles esperou um
momento para ter certeza de que Senhor já se afastara o suficiente. Voltou-se
então para os garotos e estendeu-lhes o pêssego. — Não liguem para o que ele disse sobre vocês
já terem almoçado — falou. — Tomem este
pêssego.
— Oh, obrigado — disse
Klaus, e mais que depressa dividiu o pêssego com suas irmãs, dando o pedaço
maior para Sunny porque ela nem ao menos se servira do chiclete. Os Baudelaire
devoraram o pêssego; e em circunstâncias normais não teria sido educado comer
algo tão depressa e tão ruidosamente, sobretudo diante de alguém que eles mal
conheciam. No entanto, a presente circunstância nada tinha de normal, de forma
que até um perito em boas maneiras haveria de desculpá-los pela voracidade.
— Querem saber de uma
coisa? — disse Charles. — Por me
parecerem ser crianças tão legais, e porque trabalharam tão pesado hoje, vou
fazer algo para vocês. Adivinhem o quê?
— Falar com Senhor — disse
Violet, enxugando o sumo do pêssego que grudara no seu queixo, — e convencê-lo de que não deveríamos trabalhar
na serraria.
— Não é bem isso — admitiu
Charles. — Não adiantaria nada. Ele não
me atenderia.
— Mas você é sócio dele — ,ssinalou
Klaus.
— Isso não importa — respondeu
Charles. — Uma vez que Senhor toma uma
decisão, a decisão está tomada. Sei que às vezes ele é um pouco mesquinho, mas
vocês têm que desculpá-lo. Passou uma infância terrível. Entendem?
Violet olhou para o quadro da praia e tornou a pensar naquele dia
pavoroso do passeio à beira-mar.
— Entendo, sim — suspirou
ela. — Entendo muito bem. Acho que eu
também estou vivendo uma infância terrível.
— Bem, sei o que vai fazer
vocês se sentirem melhor — disse Charles,
— pelo menos um pouquinho que seja. Deixem-me mostrar a biblioteca antes
de vocês voltarem ao trabalho. Depois podem visitá-la sempre que quiserem.
Venham comigo, fica no fundo do corredor.
Charles seguiu à frente dos Baudelaire e atravessou o corredor;
ainda que logo fossem voltar ao trabalho, e ainda que lhes tivessem oferecido o
menos justo dos acordos já oferecidos a crianças, os três irmãos se sentiram um
pouco melhor.
As bibliotecas sempre tinham esse efeito de fazê-los se sentir
melhor, fosse a biblioteca do tio Monty com livros sobre répteis, ou a
biblioteca da tia Josephine com livros de gramática, ou a da juíza Strauss com
livros jurídicos, ou, e sobretudo, a biblioteca de seus pais com toda a sorte
de livros — hoje todos queimados, desgraçadamente. Saber que poderiam ler algo
já foi bastante para que os órfãos Baudelaire sentissem que poderia haver uma
luz em suas vidas tenebrosas. No final do corredor ficava uma portinha; Charles
parou ao chegar a ela, sorriu para os garotos e abriu-a.
A biblioteca era uma sala ampla, arrumada com elegantes estantes
de madeira e sofás que pareciam confortáveis, onde as pessoas podiam sentar-se
para desfrutar a leitura. Numa das paredes tinha uma série de janelas através
das quais entrava luz bastante para a leitura, e em outra parede estavam
enfileiradas pinturas de paisagens, ideais para descanso dos olhos. Ao entrar
na sala, os Baudelaire fizeram um exame do que havia à sua volta. Mas não se
sentiram melhor de maneira alguma.
— Onde estão os livros? — perguntou
Klaus. — Todas essas estantes elegantes inteiramente
vazias!
— Esse é o único defeito da
biblioteca — admitiu Charles. — Senhor
não quis me dar dinheiro para comprar livros.
— Você quer dizer que é uma
biblioteca sem nenhum livro? — perguntou Violet.
— Com apenas três — disse
Charles, e andou até a estante mais afastada. lá, na prateleira de baixo,
viam-se três livros isolados. — Sem
dinheiro, é claro, ficou difícil comprar livros, mas houve três doações. Senhor
doou o seu livro A história da Serraria Alto-Astral. O prefeito de Paltry ville
doou seu livro A Constituição de Paltry ville. E este aqui é Ciência ocular
avançada, doado por uma figura bastante respeitada, Orwell, oftalmologista
residente na cidade.
Charles apanhou os três livros, para que os Baudelaire vissem cada
um deles, e as crianças não despregaram os olhos dos volumes, demonstrando
aflição e medo. Na capa de A história da Serraria Alto-Astral tinha, um retrato
de Senhor, com uma nuvem de fumaça cobrindo seu rosto. A Constituição de Paltry
ville tinha uma foto da agência dos correios de Paltry ville, com o sapato
velho pendurado no topo do mastro que ficava na fachada. Porém foi a capa de
Ciência ocular avançada que deixou os Baudelaire de olhos esbugalhados.
Vocês já devem ter ouvido falar — muitas vezes, aposto — que não
se deve julgar um livro pela capa. Mas assim como é difícil acreditar que um
homem que não é médico usa uma máscara cirúrgica e uma peruca branca possa
revelar-se uma pessoa encantadora, para os meninos era difícil acreditar que
Ciência ocular avançada pudesse trazer-lhes algo além de problemas. A palavra ‘’ocular’’,
talvez vocês não saibam, significa ‘’relativo ao olho’’, mas, mesmo que não
soubessem, poderiam ter imaginado pela capa. Pois lá estava uma imagem que os
meninos reconheceram de imediato. Reconheceram por tê-la visto em pesadelos e
na vida real. Era a imagem de um olho, e os Baudelaire logo reconheceram que se
tratava da marca do conde Olaf.
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