Capítulo 4

ABRIL DEU ESPAÇO A MAIO e os dias continuaram a passar. O movimento no restaurante cresceu de forma perceptível e a reserva de dinheiro na lata de café de Katie também cresceu de forma proporcional e reconfortante. Katie não sentia mais os estertores do pânico ao pensar na possibilidade de que não teria dinheiro caso precisasse sair da casa.
Mesmo depois de pagar o aluguel, as contas e as despesas com comida, percebeu que, pela primeira vez em anos, tinha algum dinheiro sobrando. Não muito, mas o bastante para que conseguisse se sentir livre e leve. Na manhã de sexta-feira, ela parou em frente à loja Anne Jean’s, um brechó especializado em roupas de segunda mão. Katie levou a manhã inteira para examinar as roupas que estavam à venda e comprou dois pares de sapatos, duas calças, um short, três camisetas elegantes e algumas blusas, a maioria das quais eram de grife e que pareciam ser quase novas. Katie ficava surpresa ao pensar que algumas mulheres tinham tantas peças boas de roupas que poderiam doar algumas que provavelmente custariam uma pequena fortuna em uma loja de departamentos.
Jo estava pendurando um mensageiro dos ventos em sua varanda quando Katie chegou em casa. Desde aquele primeiro encontro, elas não haviam conversado muito. O trabalho de Jo, qualquer que fosse, parecia mantê-la ocupada, e Katie cumpria tantos turnos quanto pudesse no restaurante. À noite, ela notava que as luzes da casa de Jo ficavam acesas, mas já era tarde demais para que fosse até lá. Por sua vez, Jo também não havia passado o fim de semana anterior em casa.
— Há quanto tempo não conversamos, hein? — disse Jo, com um aceno. Ela deu um toque no mensageiro dos ventos, fazendo-o tinir antes de atravessar o jardim.
Katie chegou até sua varanda e colocou as sacolas no chão. 
— Por onde esteve?
Jo deu de ombros. 
— Você sabe como são as coisas. Trabalhando até tarde da noite, acordando cedo pela manhã, indo aqui e ali. Há momentos em que me sinto como se estivesse sendo puxada em todas as direções — disse ela, apontando para as cadeiras de balanço.
— Você se importa? Eu preciso parar um pouco. Passei a manhã inteira limpando a casa e acabei de pendurar aquela coisa. Gosto do som que ele faz.
— Fique à vontade — disse Katie.
Jo se sentou e movimentou os ombros em círculos, tentando relaxar. 
— Você está ficando bronzeada. Tem ido à praia?
— Não. Fiz alguns turnos extras nas últimas semanas e trabalhei na área externa — disse Katie, afastando uma das cadeiras e abrindo espaço para que pudesse esticar as pernas.
— Sol e água... o que mais há ali? Trabalhar no Ivan’s deve ser muito parecido com uma temporada de férias.
Katie riu. 
— Não é bem assim. E você, o que tem feito?
— Nada de sol nem diversão para mim ultimamente — disse Jo, olhando para as sacolas de compras. — Eu queria ter vindo mais cedo para tomar outra xícara de café, mas você já havia saído.
— Fui fazer compras.
— Estou vendo. Achou algo interessante?
— Acho que sim — confessou Katie.
— Bem, não fique sentada aí. Mostre-me o que você comprou.
— Tem certeza de que quer ver?
Jo riu. 
— Eu moro em uma cabana no fim de uma rua de cascalhos que fica no meio do fim do mundo, passei a manhã inteira lavando e enxugando meus armários. Que outras opções eu tenho para me divertir?
Katie tirou uma calça jeans da sacola e a entregou a Jo, que a segurou em frente ao rosto, observando os dois lados com cuidado. 
— Uau! — disse ela. — Você provavelmente encontrou esta calça na Anna Jean’s. Eu adoro aquele lugar.
— Como você sabe que eu a comprei na Anna Jean’s?
— Porque nenhuma outra loja da cidade vende roupas tão boas. Isto veio do armário de alguém. Provavelmente de alguma mulher rica. Muitas das coisas naquela loja são praticamente novas.
Pousando o jeans sobre o colo, Jo deslizou os dedos sobre o bordado nos bolsos de trás. — Os detalhes são maravilhosos, gostei muito dos desenhos — disse ela, olhando em direção às sacolas. — E o que mais você comprou?
Katie passou-lhe as peças uma por uma, divertindo-se com a empolgação de Jo com cada uma. Quando a sacola estava vazia, Jo suspirou. 
— Bem, agora estou oficialmente morrendo de inveja. E deixe-me adivinhar: não sobrou nada parecido com isso na loja, não é?
Katie deu de ombros, sentindo-se repentinamente acanhada. 
— Desculpe. Eu passei um bom tempo lá escolhendo.
— Bem, não tem problema. Você fez excelentes escolhas. Estas roupas são verdadeiros tesouros.
Katie olhou para a casa de Jo. 
— E como estão as coisas por lá? Já começou a pintar os cômodos?
— Ainda não.
— O trabalho está lhe tomando muito tempo?
Jo fez uma careta. 
— A verdade é que, depois de desencaixotar minhas coisas e limpar a casa do chão até o telhado, eu acho que minha energia acabou. Mas eu fico feliz por ser sua amiga, pois isso significa que eu ainda posso vir até sua casa, que é alegre e colorida.
— Pode vir a qualquer hora.
— Obrigada, isso significa muito para mim. Mas o Sr. Benson, aquele homem maldoso, vai me trazer algumas latas de tinta amanhã. Acho que isso explica por que estou aqui. Estou quase em pânico ao pensar que vou passar o final de semana com tinta respingando na minha roupa.
— Não é tão ruim assim. O tempo até que passa rápido.
— Está vendo estas mãos? — perguntou Jo, exibindo as palmas.
— Elas foram feitas para acariciar homens bonitos, para serem adornadas com unhas bonitas e anéis de diamante. Não foram feitas para segurar rolos de pintura, ficarem manchadas com tinta ou para fazer outros tipos de trabalho braçal.
Katie deu uma risadinha. 
— Quer que eu te ajude?
— De jeito nenhum. Sou especialista em deixar as coisas para depois, mas a última coisa que eu quero é que você pense que eu sou incompetente. Porque sou muito boa no que faço.
Um bando de andorinhas saiu das árvores, movendo-se em um ritmo quase musical. O balanço das cadeiras fazia com que as tábuas da varanda rangessem levemente.
— O que exatamente você faz?
— Trabalho com aconselhamento psicológico, por assim dizer.
— Em uma escola?
Jo balançou a cabeça negativamente. 
— Não. Em situações de luto e perda.
Katie parou por um momento para pensar. 
— Acho que não entendi direito.
Jo deu de ombros. 
— Eu vou até a casa das pessoas e tento ajudá-las. Geralmente isso acontece quando alguém muito querido morre — disse ela. Após uma pausa, sua voz ficou mais suave quando ela prosseguiu. — As pessoas reagem de maneiras muito diferentes, e meu trabalho é descobrir como ajudá-las a aceitar o que aconteceu. Aliás, detesto essa palavra, pois nunca conheci ninguém que realmente estivesse disposto a aceitar os fatos. Mas, basicamente, é isso que eu faço. Afinal, independente do quão seja difícil, a aceitação ajuda as pessoas a seguir em frente com suas vidas. Mas, às vezes...
Ela deixou a frase no ar. Em meio ao silêncio, arrancou um pedaço da pintura da cadeira de balanço que estava descascando. — Às vezes, quando estou cuidando de alguém, outros problemas acabam surgindo. E é com isso que venho trabalhando ultimamente. Em geral, as pessoas precisam de outros tipos de ajuda também.
— Parece ser um belo trabalho.
— E é. Mesmo que tenha suas dificuldades — concluiu ela, virando-se para Katie. — E você, o que me diz?
— Você sabe que eu trabalho no Ivan’s.
— Mas você não me disse mais nada sobre você.
— Não há muito mais a dizer — protestou Katie, desejando que a conversa não enveredasse por aquele rumo.
— É claro que há. Todos têm uma história — comentou Jo, antes de fazer uma pequena pausa. — Por exemplo, qual foi o verdadeiro motivo que a trouxe para Southport?
— Eu já lhe disse. Queria um lugar onde pudesse recomeçar a vida — insistiu Katie.
Jo pareceu estar olhando através dela enquanto absorvia aquela resposta. 
— Tudo bem — disse ela após algum tempo, sem rancor na voz. — Você tem razão. Não é da minha conta.
— Não foi isso o que eu disse.
— Foi, sim. Você disse de uma maneira gentil. E eu respeito sua resposta, porque você tem razão: realmente não é da minha conta. Mas, só para você saber, quando você diz que quer recomeçar a vida, a conselheira que existe dentro de mim se pergunta por que você sente a necessidade de recomeçar. E, mais importante do que isso, o que foi que você deixou para trás.
Katie sentiu seus ombros ficarem tensos. Percebendo o desconforto nela, Jo prosseguiu.
— E se fizermos desta forma? — perguntou ela, de maneira gentil. — Esqueça que eu fiz essa pergunta. Mas saiba que, se algum dia você quiser conversar a respeito, estarei aqui para lhe ajudar. Sou uma boa ouvinte, especialmente quando meus amigos precisam. E, acredite ou não, conversar, às vezes, ajuda bastante.
— E se eu simplesmente não puder conversar a respeito? — disse Katie, em um sussurro involuntário.
— Que tal se você ignorar o fato de eu trabalhar com aconselhamento de pessoas? Somos apenas amigas, e amigas podem conversar sobre qualquer coisa. Como o lugar onde você nasceu, ou algo que lhe deixava feliz quando você era criança.
— E que importância isso tem?
— Não é realmente algo importante. E é exatamente por isso que estou conversando com você. Você não precisa dizer nada que não queira realmente dizer.
Katie absorveu as palavras de Jo antes de olhar para ela com os olhos semicerrados. 
— Você é muito boa no que faz, não é?
— Eu me esforço — concordou Jo.
Katie entrelaçou os dedos sobre o colo. 
— Tudo bem. Eu nasci em Altoona — disse ela.
Jo se recostou na cadeira de balanço. 
— Nunca estive lá. É um lugar bonito?
— É uma daquelas velhas cidades construídas ao redor de uma estação de trem. Você já deve ter visto algum lugar assim. Uma cidade pequena, cheia de pessoas boas e trabalhadoras que estão apenas tentando melhorar suas vidas. Era um lugar bonito, especialmente durante o outono, quando as folhas começavam a mudar de cor. Eu pensava que nenhum lugar no mundo poderia ser mais bonito que aquele.
Katie baixou os olhos, perdida em meio às lembranças.
— Eu tinha uma amiga chamada Emily e nós costumávamos colocar moedas sobre os trilhos do trem. Depois que o trem passava, nós andávamos em volta dos trilhos para tentar encontrá-las e sempre ficávamos abismadas quando víamos que o peso do trem havia apagado todas as marcas de cunhagem das moedas. Às vezes as moedas ainda estavam quentes ao toque. Eu me lembro de quase ter queimado meus dedos certa vez. Quando penso na minha infância, quase sempre são lembranças de pequenos momentos agradáveis como esse.
Ela deu de ombros, mas Jo continuou em silêncio, deixando que Katie prosseguisse.
— De qualquer forma, foi lá que estudei. Sempre na mesma escola. Foi ali que terminei o ensino médio, mas acho que, naquela época... não sei... acho que estava farta de tudo aquilo, sabe como é? A vida em uma cidade pequena, onde todos os fins de semana eram iguais. As mesmas pessoas indo sempre às mesmas festas, os mesmos rapazes bebendo cerveja na carroceria de suas caminhonetes. Eu queria mais, mas não consegui ir para a faculdade. Para encurtar uma longa história, acabei indo para Atlantic City. Trabalhei lá por algum tempo, me mudei algumas vezes e agora, alguns anos depois, estou aqui.
— Em outra cidade pequena onde tudo é sempre igual.
Katie balançou a cabeça. 
— Esta cidade é diferente. Ela faz com que eu me sinta...
Quando Katie hesitou, Jo terminou a frase por ela.
— Segura?
Quando os olhos assustados de Katie se encontraram com os dela, Jo parecia estar estupefata. 
— Não é tão difícil de entender. Como você mesma disse, você quer recomeçar. E que lugar melhor para fazer isso do que este? Onde nada acontece? — Ela parou por um momento. — Bem, não é sempre assim. Eu ouvi que houve uma certa comoção na semana passada. Quando você foi até a loja de conveniência.
— Você ficou sabendo?
— Vivemos em uma cidade pequena. É impossível não ouvir os comentários. O que aconteceu por lá?
— Foi assustador. Em um minuto eu estava conversando com Alex e, quando vi o que estava acontecendo no monitor, acho que ele percebeu a expressão no meu rosto. No instante seguinte ele saiu correndo. Ele passou por mim e correu pela loja como um raio. Kristen olhou para o monitor e entrou em pânico. Eu a peguei nos braços e fui atrás do pai dela. Quando cheguei aos fundos da loja, Alex já havia tirado Josh da água. Foi um alívio ver que ele estava bem.
— Também acho — disse Jo, assentindo. — O que você acha de Kristen? Ela não é a criança mais linda e doce do mundo?
— Ela me chama de senhorita Katie.
— Eu adoro aquela garotinha — disse Jo, erguendo os joelhos e trazendo-os para junto do peito. — Mas não fico surpresa por vocês duas terem se dado bem. Ou pelo fato de ela ter corrido para seus braços quando sentiu medo.
— Por que diz isso?
— Porque ela é uma criança muito sensível e inteligente. Ela sabe que você tem um bom coração.
Katie fez uma expressão cética.
— Talvez ela estivesse com medo por causa do que estava acontecendo com o irmão. Quando o pai dela saiu correndo, eu era a única pessoa que estava na loja.
— Não se deprecie assim. Como eu disse, ela é sensível e consegue perceber essas coisas — retrucou Jo. — E o que houve com Alex? Depois do que aconteceu?
— Ele ainda estava um pouco abalado, mas, apesar do susto, parecia estar bem.
— Chegou a conversar com ele outras vezes desde então?
Katie deu de ombros mais uma vez, como se aquilo não fosse muito importante. — Não muito. Ele é sempre gentil quando vou até a loja e sempre tem os produtos que eu preciso em estoque, mas nada além disso.
— Ele é muito bom no que faz — disse Jo, segura de si.
— Você fala como se o conhecesse muito bem.
Jo balançou-se em sua cadeira. 
— Acho que eu o conheço bem, sim.
Katie esperou que ela falasse mais, mas Jo permaneceu em silêncio.
— Quer falar a respeito? — perguntou Katie, inocentemente. — Afinal de contas, conversar pode ajudar bastante, às vezes. Especialmente se tiver uma amiga para lhe ouvir.
Os olhos de Jo brilharam.
— Sabe, eu sempre suspeitei que você fosse muito mais inteligente do que deixa transparecer. Está usando minhas próprias palavras para conversar comigo. Você devia ter vergonha de se esconder assim.
Katie sorriu, mas não disse nada — da mesma forma que Jo havia feito com ela. E, de maneira surpreendente, aquela estratégia funcionou.
— Não tenho certeza do quanto eu posso dizer — acrescentou Jo.
— Mas posso lhe dizer que ele é um bom homem. É o tipo de pessoa com quem você pode contar para fazer a coisa certa. É possível enxergar isso no amor que ele tem por seus filhos.
Katie juntou os lábios por um momento. 
— Vocês dois já se encontraram alguma vez?
Jo pareceu escolher suas palavras com cuidado. 
— Sim, mas talvez não da maneira que você esteja imaginando. E para que as coisas fiquem bem claras: aconteceu há um bom tempo e todos prosseguiram com suas vidas.
Katie não conseguiu entender a resposta dela, mas não quis insistir no assunto.
— Qual é a história dele, então? Imagino que ele seja divorciado.
— Seria melhor que você perguntasse a ele.
— Eu? E por que iria querer perguntar isso a ele?
— Porque você perguntou a mim — disse Jo, erguendo uma sobrancelha. — O que significa claramente que você está interessada nele.
— Não estou interessada nele.
— Então por que você quer saber coisas a respeito dele?
Katie fez uma careta. 
— Para uma amiga, até que você é bastante manipuladora.
Jo deu de ombros. 
— Eu simplesmente digo às pessoas aquilo que elas já sabem, mas têm medo de admitir para si mesmas.
Katie pensou naquilo.
— Para que as coisas fiquem bem claras, estou oficialmente retirando minha oferta de ajudá-la a pintar sua casa.
— Você já disse que faria isso.
— Eu sei, mas quero retirá-la assim mesmo.
Jo soltou uma risada. — Tudo bem, tudo bem. Ei, o que você vai fazer esta noite?
— Preciso ir trabalhar daqui a pouco. Na verdade, acho que já é hora de começar a me arrumar.
— E amanhã à noite? Você vai trabalhar também?
— Não. Este final de semana estarei de folga.
— Então o que acha de eu trazer uma garrafa de vinho? Estou precisando beber um bom vinho e não quero ter que sentir o cheiro da tinta fresca por mais tempo do que o necessário. Podemos combinar?
— Parece que vai ser bem divertido.
— Ótimo — disse Jo, levantando-se da cadeira de balanço. — Estamos acertadas, então.

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