Capítulo 4
Se vocês entraram num museu recentemente — para ver uma exposição
ou para se esconder de alguém — devem ter notado um tipo de pintura conhecido
como tríptico. Um tríptico tem três painéis, e em cada painel há uma pintura
diferente.
Por exemplo, um amigo, o professor Reed, fez um tríptico para mim:
num dos painéis representou o fogo, noutro uma máquina de escrever e no
terceiro o rosto de uma bela e inteligente mulher. O tríptico intitula-se O que
aconteceu a Beatrice, e não consigo olhar para ele sem chorar.
Sou um escritor e não um pintor, mas se eu fosse tentar pintar um
tríptico intitulado As infelizes experiências dos órfãos Baudelaire na Prep
Prufrock, pintaria o Sr. Remora num dos painéis, uma caixa de grampos no outro
e a Sra. Bass no terceiro, e o resultado me deixaria tão triste que só de ficar
olhando do tríptico de Beatrice para o tríptico dos Baudelaire, não pararia de
chorar o dia inteiro.
O Sr. Remora era o professor de Violet, e ele era tão terrível que
ela quase preferia ficar no Barraco dos Órfãos durante toda a manhã e fazer
suas refeições com as mãos amarradas às costas a apressar-se para chegar a
tempo na Sala 1 e assistir à aula desse homem abominável. O Sr. Remora tinha um
bigode escuro e espesso, como se alguém houvesse cortado o polegar de um gorila
e colado acima dos lábios do professor; e, assim como um gorila, o Sr. Remora
estava constantemente comendo bananas. Bananas são frutas deliciosas e contêm
um saudável teor de potássio, mas Violet nunca mais quis ver bananas em sua
vida depois que viu o Sr. Remora engolir banana atrás de banana deixando cascas
aos montes pelo chão e besuntando de banana o queixo e o bigode. No intervalo
entre as mordidas de banana, o Sr. Remora ditava histórias, as crianças as
escreviam no caderno, e volta e meia havia um teste.
— Um belo dia fui ao
supermercado e comprei leite — dizia o Sr. Remora mastigando uma banana. — Quando
cheguei em casa, despejei o leite num copo e tomei tudinho. Depois fiquei vendo
televisão. Fim. — Ou: — Uma bela tarde um homem chamado Edward entrou
num caminhão verde e saiu dirigindo até chegar a uma fazenda. A fazenda tinha
gansos e vacas. Fim .
O Sr. Remora ficava puxando história após história, comendo banana
após banana, e cada vez se tornava mais difícil prestar atenção. Para melhorar
as coisas, Duncan sentava-se ao lado de Violet e os dois ficavam trocando bilhetinhos
nos dias especialmente tediosos. Mas, para piorar as coisas, Carmelita Spats
sentava-se logo atrás de Violet e a cada minuto cutucava com um pedaço de pau
que havia encontrado na relva.
— Ei, órfã — sussurrava ela,
cutucando Violet com o pedaço de pau. Violet se distraía e se esquecia de escrever
no caderno algum detalhe da história contada pelo Sr. Remora.
Do outro lado do corredor, na Sala 2, estava a professora de
Klaus, a Sra. Bass. Seus cabelos pretos eram tão longos que faziam com que também
ela mostrasse vaga semelhança com um gorila. A Sra. Bass era fraca como
professora, e não uso ‘’fraca’’ aqui no sentido de ‘’sem forças’’, e sim no
sentido de ‘’uma professora obcecada pelo sistema métrico decimal’’. O sistema
métrico decimal, como vocês talvez saibam, é o sistema que a maior parte do
mundo usa para medir as coisas. Assim como é perfeitamente razoável comer uma
banana ou duas, é perfeitamente razoável interessar-se por medir coisas. Klaus
lembrava-se bem de uma vez, quando tinha cerca de oito anos de idade, em que
mediu a largura de todas as portas da mansão dos Baudelaire numa tarde chuvosa
em que morria de chateação dentro de casa. No entanto, com chuva ou com sol,
tudo o que a Sra. Bass queria fazer era medir coisas e anotar as medidas no quadro-negro.
Todas as manhãs ela entrava na Sala 2 carregando uma mochila repleta de objetos
do dia-a-dia — uma frigideira, uma moldura de quadro, o esqueleto de um gato —
e punha um objeto em cada carteira.
— Meçam! — gritava, e todos
apanhavam suas réguas e mediam o que quer que fosse que a professora houvesse
posto em suas carteiras. Eles diziam as medidas em voz alta para a Sra. Bass,
que em seguida escrevia os números no quadro e mandava os alunos trocarem os
objetos. A rotina se prolongava pela manhã inteira, chegando a deixar Klaus com
os olhos doídos e embaciados de puro tédio.
Do outro lado da sala, os olhos de Isadora Quagmire também
padeciam do mesmo mal, e vez por outra os dois se entreolhavam e punham a língua
para fora como se dissessem: A Sra. Bass é de uma chatice insuportável, não é?
Com Sunny era diferente. Em vez de freqüentar aulas, ela tinha que
trabalhar no prédio administrativo, e devo dizer que a situação dela talvez
fosse a pior de todo o tríptico. Como secretária do vice-diretor Nero, Sunny
era chamada para desempenhar numerosas tarefas que simplesmente eram impossíveis
de ser cumpridas por um bebê. Por exemplo, ela era encarregada de atender o telefone,
mas as pessoas que ligavam para o vice-diretor Nero nem sempre sabiam que ‘’Seltepia!’’
era a sua maneira de dizer ‘’Bom dia, aqui é do gabinete do vice-diretor Nero,
em que posso ajudá-lo?’’.
No segundo dia, Nero estava furioso com Sunny por ela ter criado
tantas trapalhadas com o pessoal que ligava para ele. Além disso, Sunny era
incumbida de datilografar, grampear e pôr no correio todas as cartas do
vice-diretor Nero, o que exigia experiência e habilidade em máquina de
escrever, grampeador e selos, objetos concebidos, como vocês sabem, para
adultos. Ao contrário de muitos bebês, Sunny até que estava acostumada a
trabalhos pesados — afinal, durante algum tempo ela e os irmãos haviam prestado
serviços na Serraria Baixo-Astral —, mas o tipo de equipamento com que lidava
agora era simplesmente inadequado para os seus dedos tão miúdos. Sunny mal era
capaz de mover as teclas da máquina de escrever e, mesmo quando conseguia, não tinha
noção de como escrever a maioria das palavras que Nero ditava. Nunca usara
antes um grampeador, de modo que muitas vezes grampeava os próprios dedos por
engano, o que doía pra caramba. E vez por outra um dos selos colava na sua língua
e não havia jeito de se soltar.
Na maioria das escolas, por mais rigorosas que sejam, as crianças
têm uma chance de se refazer nos fins de semana, quando aproveitam para
descansar e brincar em vez de assistir a aulas mortificantes; e os órfãos
Baudelaire não viam a hora de fazer uma pausa para interromper a rotina de
olhar bananas, réguas e artigos de escritório. Foi uma grande decepção quando
numa sexta-feira ficaram sabendo pelos Quagmire que na Prep Prufrock não havia
folga no fim de semana. Sábados e domingos eram dias de aulas normais,
supostamente por fidelidade ao lema da escola (‘’Lembra-te de que morrerás’’).
Essa regra na verdade não fazia o menor sentido — afinal de contas, lembrar-se
de que vai morrer não depende de ter aulas ou não —, contudo assim eram as
coisas na Prep Prufrock, e os Baudelaire nunca sabiam direito em que dia da
semana estavam, tão repetitiva era a rotina diária. Por isso, lamento, mas não
tenho como contar para vocês exatamente o dia em que Sunny reparou que o
estoque de grampos estava terminando; só posso contar que Nero lhe disse que,
por ter desperdiçado tanto tempo com o aprendizado das funções de secretária,
ele havia resolvido que não renovaria o estoque de grampos. Sunny teria que
fazer, ela própria, os grampos, usando uns arames que Nero guardava numa
gaveta.
— Isso é ridículo! — exclamou
Violet quando Sunny lhe revelou a última determinação de Nero. Foi depois do
jantar, e os órfãos Baudelaire estavam no Barraco dos Órfãos com os trigêmeos
Quagmire atirando sal ao teto. Violet havia encontrado pedaços de metal atrás
do refeitório e fabricara cinco pares de sapatos barulhentos: três para os
Baudelaire e dois para os Quagmire. Assim os caranguejos não os incomodariam
quando fizessem visitas ao Barraco.
O problema do fungo bege-claro, entretanto, ainda estava por ser
resolvido. Com a ajuda de Duncan, Klaus descobrira um livro sobre fungos na
biblioteca e nele havia lido que o sal fazia secar e definhar esse tipo específico
de fungo que existia no teto. Certo dia, os Quagmire deixaram suas bandejas
cair no chão, desviando a atenção de alguns dos empregados mascarados do refeitório;
enquanto Nero gritava com eles por causa da bagunça que haviam feito, os Baudelaire
aproveitaram para passar a mão em três saleiros e enfiá-los no bolso.
Agora, na breve pausa que se seguia ao jantar, as cinco crianças
achavam-se sentadas em pilhas de feno, tentando jogar sal no fungo e
conversando sobre o dia na escola.
— Claro que é ridículo — concordou
Klaus. — Como se não bastasse a
cretinice de obrigar Sunny a ser uma secretária, agora era o que faltava ela
ter de fabricar grampos!... Nunca ouvi falar de nada tão injusto.
— Que eu saiba, os grampos
são feitos em fábricas — disse Duncan, folheando seu caderno verde para
conferir se havia alguma anotação a respeito do assunto.
— Não creio que alguém
tenha feito grampos à mão depois do século XV.
— Se desse para você pegar
um pouco de arame, Sunny — disse Isadora, — todos poderíamos ajudar a fazer grampos
depois do jantar. Se nós cinco pudéssemos trabalhar juntos, o problema seria
muito menor. E, por falar em problema, estou trabalhando num poema sobre o
conde Olaf, mas não sei se conheço palavras terríveis o bastante para descrevê-lo.
— E imagino que seja difícil
encontrar palavras que rimem com 'Olaf' — disse Violet.
— Realmente é bastante difícil
— admitiu Isadora. — Só me vem à cabeça
palavras que rimam com 'conde': 'bonde', 'esconde-esconde', 'monge'. Além
disso, nem são rimas perfeitas.
— Quem sabe um dia você
consiga publicar seu poema sobre o conde Olaf — disse Klaus, — e todo mundo ficará sabendo a peste que ele é.
— E eu escreverei um artigo
de jornal só sobre ele — ofereceu-se Duncan.
— Acho que eu poderia
construir sozinha uma máquina impressora — disse Violet.
— Talvez, quando alcançar a
maioridade, possa usar uma parte da fortuna dos nossos pais para comprar o
material necessário.
— Poderíamos imprimir
livros também? — perguntou Klaus.
Violet sorriu. Violet sabia que seu irmão estava sonhando em
imprimir uma biblioteca inteira só para eles.
— Livros também — disse.
— Fortuna? Como assim? — perguntou
Duncan. — Seus pais também deixaram uma fortuna?
Os nossos possuíam as famosas safiras Quagmire, que não foram danificadas pelo
incêndio. Quando formos maiores de idade, essas pedras preciosas nos pertencerão.
Poderíamos iniciar juntos nossa gráfica.
— Que idéia maravilhosa! — exclamou Violet. — Poderíamos dar o nome de Quagmire &
Baudelaire Associados.
— Poderíamos dar o nome de
Quagmire & Baudelaire Associados! — As crianças ficaram tão surpreendidas
ao ouvir a voz sarcástica do vice-diretor Nero que deixaram cair os saleiros no
chão. No mesmo instante, os minúsculos caranguejos no Barraco dos Órfãos se
apossaram dos saleiros e sumiram com eles tão rápido que nem deu tempo de Nero
perceber nada.
— Lamento interrompê-los no
meio de uma importante reunião de negócios — disse, embora os garotos pudessem
ver que ele não lamentava coisa nenhuma. — O novo professor de ginástica chegou e está
interessado em conhecer nossa população de órfãos antes de ter início o meu
concerto. Ao que parece, os órfãos costumam ter excelente estrutura óssea, ou
algo do gênero. Não foi isso o que o senhor disse, instrutor Genghis?
— Isso mesmo — respondeu um
homem alto e magricela que deu um passo à frente para mostrar-se às crianças.
Vestia calça e blusa leves, folgadas, próprias para exercícios esportivos, como
se espera de qualquer professor de ginástica. Seus pés estavam calçados com tênis
de corrida que pareciam ter custado caro, tênis de cano alto; em volta do pescoço,
tinha um reluzente apito prateado. No alto da cabeça, havia um pano enrolado
preso por uma brilhante pedra vermelha. É um tipo de adorno conhecido como ‘’turbante’’,
que algumas pessoas usam por motivos religiosos, mas Violet, Klaus e Sunny , só
de olharem uma vez para aquele homem, perceberam que estava usando o turbante
por motivo inteiramente diverso.
— Isso mesmo — tornou a
dizer o homem. — Todos os órfãos têm
pernas perfeitas para a corrida, e eu não via a hora de observar os espécimes
que estavam à minha espera aqui nesse barraco.
— Crianças — disse Nero, — levantem-se
aí do feno e cumprimentem o instrutor Genghis.
— Olá, instrutor Genghis — disse
Duncan.
— Olá, instrutor Genghis — disse
Isadora.
Os trigêmeos Quagmire apertaram a mão ossuda do instrutor Genghis
e em seguida viraram-se e lançaram aos Baudelaire um olhar desconcertado.
Estavam surpresos em ver que os três irmãos continuavam sentados no feno com os
olhos pregados no instrutor Genghis em vez de obedecer às ordens de Nero. Mas,
se eu estivesse lá no Barraco dos Órfãos, com certeza não ficaria surpreendido,
e sou capaz de apostar O que aconteceu a Beatrice, meu tríptico que tanto
aprecio, que, se vocês estivessem ali, também não se surpreenderiam. Porque vocês
já devem ter adivinhado, como os Baudelaire adivinharam, por que o homem que se
apresentara como instrutor Genghis estava usando um turbante. Um turbante cobre
o cabelo das pessoas, o que é capaz de alterar bastante a aparência, e se o turbante
estiver cobrindo toda a testa, como era o caso do professor, as dobras de pano
podem cobrir até mesmo as sobrancelhas — ou sobrancelha, no caso.
Porém o turbante não é capaz de cobrir os olhos muito, muito
brilhantes de uma pessoa, ou o olhar ganancioso e sinistro que pode surgir
quando uma pessoa vê três crianças relativamente indefesas. Claro que era um
absurdo aquilo que o homem que se apresentara como instrutor Genghis havia dito
sobre todos os órfãos terem pernas perfeitas para correr, mas, quando os
Baudelaire ergueram os olhos para o novo professor de ginástica, desejaram que
não fosse absurdo.
Quando o homem que se apresentara como instrutor Genghis lhes
retribuiu o olhar com os olhos muito, muito brilhantes, os órfãos Baudelaire
desejaram mais do que qualquer outra coisa que suas pernas pudessem levá-los
para longe, para bem longe daquele homem que na verdade era o conde Olaf.
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