Capítulo 5

Até de manhã, não vai dar pra falar;
Fechado e tristonho há de o bico ficar.

 — A minha cabeça está girando de novo — disse Violet segurando a tirinha de papel de modo que Klaus e Sunny pudessem ver o que estava escrito.  — E as minhas pernas estão bambeando, e o meu corpo está zunindo, como se eu tivesse sido atingida por um raio. Como, meu Deus do céu, Isadora conseguiu trazer mais um poema para cá? Tomamos o máximo cuidado para ter certeza de que um de nós estaria vigiando a árvore em todos os momentos!
 — Quem sabe ele já estava aqui ontem, mas Hector não viu — disse Klaus. Violet sacudiu a cabeça.  — Uma tirinha de papel branco é muito fácil de enxergar no meio de todas essas penas pretas. Ela deve ter chegado aqui em algum momento durante a noite. Mas como?
 — Como essa tirinha chegou aqui é a menos importante das perguntas — disse Klaus.  — Onde estão os Quagmire? Esta é a pergunta que eu quero ver respondida.
 — Mas por que Isadora simplesmente não nos conta — disse Violet, relendo o dístico e franzindo as sobrancelhas, — em vez de deixar poemas misteriosos para nós no chão, onde qualquer um poderia encontrá-los?
 — Talvez a razão seja esta — disse Klaus pausadamente.  — Qualquer um poderia encontrá-los aqui no chão. Se Isadora simplesmente escrevesse onde eles estão, e o conde Olaf encontrasse a tirinha de papel, ele os mudaria de esconderijo — ou coisa pior. Não tenho muita experiência com leitura de poemas, mas aposto que Isadora está contando onde ela e seu irmão estão. Deve estar oculto em algum lugar no poema.
 — Vai ser difícil de achar — disse Violet relendo o dístico.  — Tem muitas coisas confusas neste poema. Por que ela fala em ‘‘bico’‘? Isadora tem um nariz, e uma boca, mas não um bico.
 — Cra! — disse Sunny, o que queria dizer ‘‘‘‘Ela provavelmente está se referindo ao bico de um corvo de C.S.C’‘‘‘.
 — Você pode estar certa — concordou Violet.  — Mas por que ela diz que ele não pode falar? É claro que um bico não pode falar. Pássaros não falam.
 — Na verdade, alguns pássaros são capazes de falar — disse Klaus.  — Li uma enciclopédia ornitológica que falava do papagaio e do pássaro mainá, que são ambos capazes de imitar a voz humana.
 — Mas não existem papagaios nem pássaros mainá por aqui — disse Violet. — Somente corvos, e corvos certamente não sabem falar.
 — Mas por falar em falar — disse Klaus, — por que o poema diz até de manhã não vai dar pra falar? Por que só de manhã?
 — Bem, ambos os poemas chegaram de manhã — disse Violet.  — Talvez Isadora esteja querendo dizer que só pode nos mandar poemas de manhã.
 — Nada disso faz sentido — disse Klaus.  — Talvez Hector possa nos ajudar a descobrir o que está dando errado.
 — Laper! — disse Sunny, concordando, e as crianças foram acordar o factótum, que ainda estava adormecido na varanda. Violet tocou em seu ombro e, quando ele bocejou e endireitou-se na cadeira, as crianças puderam ver que o seu rosto estava marcado de dormir sobre a mesa de piquenique.
 — Bom dia, Baudelaires — disse ele espreguiçando-se e dando um sorriso sonolento para eles.  — Pelo menos, espero que seja um bom dia. Vocês encontraram algum sinal dos Quagmire?
 — Mais parece um estranho dia — respondeu Violet.  — Encontramos, sim, um sinal deles. Dê uma olhada.
Violet entregou a Hector o segundo poema. Ele leu e franziu as sobrancelhas.
 — ‘‘Curioso, cada vez mais curioso’‘ — disse ele citando um dos livros favoritos dos Baudelaire. — Isto está realmente virando um quebra-cabeça.
 — Mas um quebra-cabeça é apenas alguma coisa que você faz para se divertir — disse Klaus.  — Duncan e Isadora estão em grave perigo. Se não descobrirmos o que estes poemas estão tentando nos dizer, o conde Olaf vai...
 — Nem fale — disse Violet estremecendo.  — Nós precisamos, absolutamente precisamos resolver este quebra-cabeça, e ponto final.
Hector levantou-se para esticar as pernas e olhou para o horizonte achatado e vazio que cercava a sua casa.
 — A julgar pelo ângulo do sol — disse ele, — já está bem na hora de sair. Não temos tempo nem para o café-da-manhã.
 — Sair? — perguntou Violet.
 — É claro — disse Hector.  — Está se esquecendo de quantas tarefas domésticas temos hoje pela frente? —  Ele enfiou a mão no bolso do macacão e tirou de lá uma lista. — Começamos na cidade baixa, é claro, para que os corvos não fiquem no nosso caminho. Temos de aparar a cerca viva da Sra. Morrow, lavar as janelas do Sr. Lesko e polir todas as maçanetas das portas na mansão da família Verhoogen. Temos ainda de varrer todas as penas das ruas e recolher o lixo e os recicláveis de todo mundo.
 — Mas o rapto dos Quagmire é muito mais importante que qualquer uma dessas coisas — disse Violet.
Hector suspirou.
 — Concordo com você — disse ele, — mas não vou discutir com o Conselho dos Anciãos. Eles me deixam muito desassossegado.
 — Terei prazer em explicar a situação a eles — disse Klaus.
 — Não — decidiu Hector.  — E melhor fazermos as nossas tarefas como de costume. Vão lavar o rosto, Baudelaires, e depois saímos.
Os Baudelaire se entreolharam consternados, desejando que o factótum não tivesse tanto medo de um grupo de velhos usando chapéus em forma de corvo, porém não discutiram e entraram em casa, lavaram o rosto e então seguiram Hector através da paisagem achatada até chegarem aos limites da cidade, depois passaram através da cidade alta, onde os corvos de C.S.C. estavam empoleirados, até chegarem à cidade baixa, onde ficava a casa da sra. Morrow, que estava aguardando na varanda em seu robe cor-de-rosa. Sem dizer palavra, ela entregou a Hector um par de aparadores de sebe, que nada mais são que grandes tesouras feitas para cortar ramos e folhas em vez de papel, e deu a cada Baudelaire um grande saco plástico para recolher as folhas e ramos que Hector ia cortar. É claro que aparadores de sebe e um saco plástico não são métodos apropriados de cumprimentar alguém, especialmente logo de manhã, mas os três irmãos estavam tão ocupados pensando no que poderiam significar os poemas que mal notaram.
Enquanto recolhiam as aparas da cerca viva eles consideraram diversas teorias — a frase
‘’consideraram diversas teorias’’ aqui significa ‘’conversaram em voz baixa sobre os dois dísticos de Isadora Quagmire’’ — até a cerca viva ficar com uma aparência bem-arrumadinha e chegar a hora de caminhar até um quarteirão abaixo, onde morava o Sr. Lesko — que os Baudelaire reconheceram como sendo o homem de calças axadrezadas que estava preocupado com a possibilidade de as crianças terem de morar com ele —, o qual foi ainda mais rude do que a Sra. Morrow. Ele simplesmente apontou para uma pilha de materiais para limpeza de janelas e tornou a entrar em sua casa batendo os pés, mas outra vez os Baudelaire estavam concentrados em resolver o mistério das duas mensagens deixadas para eles e nem sequer notaram os maus modos do Sr. Lesko. Violet e Klaus começaram a esfregar a sujeira de uma janela, cada um com um trapo molhado, enquanto Sunny ficava ao lado com um balde de água com sabão e Hector subia em uma escada para lavar as janelas do segundo andar, mas tudo o que as crianças conseguiam pensar era em cada um dos versos do desconcertante poema de Isadora, até terminarem com as janelas e estarem prontas para trabalhar no resto das tarefas domésticas do dia, que não vou descrever para vocês, não só porque eram tão enfadonhas que eu cairia no sono enquanto as escrevesse no papel, como porque os órfãos Baudelaire mal se aperceberam delas. As crianças pensaram sobre os dísticos enquanto poliam as maçanetas das portas dos Verhoogen, e pensaram sobre eles enquanto varriam as penas da rua para dentro de uma pá que Sunny segurava enquanto engatinhava na frente dos irmãos, mas continuavam incapazes de imaginar como Isadora conseguira deixar um poema debaixo da Árvore do Nunca Mais. Elas pensaram sobre os dísticos enquanto recolhiam o lixo e os recicláveis de todos os residentes da cidade baixa de C.S.C., e pensaram sobre eles enquanto almoçavam os sanduíches de repolho que um dos donos de restaurantes de C.S.C. concordara em fornecer como parte do esforço da cidade para educar as crianças, mas elas ainda se mostravam incapazes de imaginar o que Isadora estava tentando lhes dizer. Elas pensaram nos dísticos quando Hector leu a lista de tarefas para a tarde, que incluíam deveres tediosos tais como fazer as camas dos cidadãos, lavar os pratos dos citadinos, preparar sundaes com cobertura de chocolate em número suficiente para o Conselho dos Anciãos inteiro saborear como lanche da tarde, e polir o Chafariz Corvídeo; mas não importa o quanto pensassem, os Baudelaire não conseguiam chegar mais perto da solução do mistério dos dísticos.
 — Estou impressionado em ver como vocês estão trabalhando duro — disse Hector quando ele e as crianças começaram a sua última tarefa da tarde. O Chafariz Corvídeo tinha a forma de um corvo enorme, e ficava bem no meio da cidade alta, em um pátio do qual saíam muitas ruas diferentes. As crianças estavam esfregando o corpo de metal do corvo, que era recoberto de entalhes com o formato de penas para dar uma aparência mais realista. Hector estava no alto de uma escada, esfregando a cabeça de metal do corvo, que olhava direto para cima e cuspia um jorro constante de água por um buraco que imitava a sua boca, como se o pássaro enorme estivesse gargarejando e cuspindo toda a água por cima do próprio corpo. O efeito era repugnante, mas os corvos de C.S.C. deviam pensar de modo diferente, pois o chafariz estava coberto de penas que eles tinham deixado cair em seu pouso matinal na cidade alta.  — Quando o Conselho dos Anciãos me contou que a cidade estava servindo de tutora para vocês — continuou Hector, — fiquei com receio de que três crianças pequenas não fossem capazes de fazer todas essas tarefas domésticas sem reclamar.
 — Estamos acostumados com exercícios pesados — retrucou Violet.  — Quando vivíamos em Paltryville, tirávamos a casca das árvores e as serrávamos para fazer tábuas, e na Escola Preparatória Prufrock tínhamos de correr centenas de voltas todas as noites.
 — Além disso — disse Klaus, — estamos tão ocupados pensando nos dísticos que mal notamos o nosso trabalho.
 — Eu bem que achei que era por isso que vocês estavam tão calados — disse Hector.  — Como eram mesmo os poemas?
Os Baudelaire tinham olhado para as tirinhas de papel tantas vezes no decorrer do dia que eram capazes de recitar os dois poemas de memória.
 — Cá, por safiras, cativos estamos. Hora após hora, em terror aguardamos — disse Violet.
 — Até de manhã, não vai dar pra falar; Fechado e tristonho hã de o bico ficar — disse Klaus.
 — Dulch! — acrescentou Sunny, o que queria dizer qualquer coisa como ‘’E ainda não conseguimos descobrir o que eles significam realmente’’, ou coisa que o valha.
 — São versos bem manhosos, sem dúvida — disse Hector.  — De fato, eu... —  Aqui a sua voz emudeceu, e as crianças ficaram surpresas ao ver o factótum dar meia-volta, ficando de costas para elas, e começar a esfregar o olho esquerdo do corvo de metal, como se alguém tivesse apertado um botão que o fazia parar de falar.
 — O Chafariz Corvídeo não parece estar completamente limpo — disse uma voz severa atrás das crianças. Os Baudelaire se voltaram e viram três mulheres do Conselho dos Anciãos que tinham entrado no pátio e estavam agora olhando carrancudas para eles. Hector ficou tão desassossegado que nem ergueu os olhos para responder, mas as crianças nem de longe ficaram assim tão intimidadas, uma palavra que aqui significa ‘’desassossegadas por causa de três mulheres mais velhas usando chapéus em forma de corvo’’.
 — Nós ainda não acabamos completamente de limpá-lo — explicou Violet educadamente.  — Espero que as senhoras tenham gostado dos sundaes com cobertura de chocolate que nós preparamos.
 — Eles estavam aceitáveis — disse uma delas com um encolher de ombros que fez o seu chapéu de corvo bambolear de leve.
 — O meu tinha nozes demais — disse outra.  — A Regra nº 961 reza claramente que os sundaes com cobertura de chocolate do Conselho dos Anciãos não podem conter mais de quinze pedaços de nozes por unidade, e é possível que o meu contivesse uma quantidade maior.
 — Sinto muito por isso — disse Klaus, sem acrescentar que pessoas tão exigentes com um simples sundae com cobertura de chocolate deviam prepará-lo sozinhas.
 — Nós empilhamos as taças sujas de sorvete no Caramanchão do Lanche — disse a terceira.  — Amanhã à tarde vocês podem lavá-las como parte das suas tarefas vespertinas. Mas viemos aqui para dizer uma coisa a Hector.
As crianças olharam para o topo da escada, pensando que agora Hector teria de se voltar e falar com elas, não importa o quão desassossegado estivesse. Mas ele só tossiu de leve e continuou a esfregar o Chafariz Corvídeo. Violet lembrou-se do que o seu pai lhe ensinara a dizer quando não podia atender o telefone, e falou.
 — Desculpe — disse ela, — mas Hector está ocupado no momento. Quer deixar um recado?
As Anciãs se entreolharam e assentiram com a cabeça, o que fez parecer que os chapéus delas estavam bicando uns aos outros.
 — Acho que sim — disse uma delas.  — Se é que podemos confiar em uma menininha como você para dar o recado.
 — O recado é muito importante — disse a segunda, e mais uma vez acho necessário usar a expressão ‘’um raio em dia de céu claro’’. Vocês poderiam imaginar, depois do aparecimento misterioso de não um, mas dois poemas de Isadora Quagmire ao pé da Árvore do Nunca Mais, que nenhum raio em dia de céu claro iria mais aparecer na cidade de C.S.C. Um raio, afinal, raramente cai de um céu azul em dia de sol e atinge exatamente o mesmo lugar mais de uma vez. Mas para os órfãos Baudelaire, a vida não parecia ser muito mais do que raio após raio caindo, numa infelicidade só, céu azul em dia de sol, desde que o Sr. Poe fora portador do primeiro raio em dia de céu claro ao contar-lhes que os seus pais tinham sido mortos, e não importa quantos raios em dia de céu claro eles experimentassem, suas cabeças nunca giravam menos, suas pernas nunca bambeavam menos e seus corpos nunca zuniam menos de perplexidade quando um novo raio caía do céu azul em dia de sol. Assim, quando os Baudelaire ouviram o recado do Conselho dos Anciãos, eles quase tiveram de se sentar no Chafariz Corvídeo, porque o recado foi uma surpresa total. Era um recado que eles achavam que nunca iriam ouvir, e é um recado que só chega a mim nos meus sonhos mais agradáveis, que são poucos e muito espaçados.
 — Este é o recado — disse a terceira mulher do Conselho dos Anciãos, e ela inclinou a cabeça para tão perto que as crianças puderam ver cada pena de feltro do seu chapéu de corvo.  — O conde Olaf foi capturado — disse ela, e os Baudelaire se sentiram como se um raio os tivesse atingido mais uma vez.

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