Capítulo 5
A expressão ‘’seguir o exemplo’’ não significa necessariamente
seguir um bom exemplo, embora muitas pessoas não saibam disso. Se você segue o
exemplo, isso quer dizer que você está fazendo uma coisa que outra pessoa
acabou de fazer. Se todos os seus amigos resolvessem pular de uma ponte sobre
as águas geladas de um rio ou do oceano, e você pulasse também logo depois
deles, você estaria seguindo o exemplo. Dá para ver por que seguir o exemplo
pode ser uma coisa perigosa: você poderia se afogar simplesmente porque alguém
fez o mesmo antes. Isso explica por que, quando Violet se levantou do feno e
disse:
— Como vai o senhor,
instrutor Genghis? — Klaus e Sunny relutaram em seguir o seu exemplo. Era
inconcebível para os Baudelaire mais novos que sua irmã não houvesse
reconhecido o conde Olaf, e que ela não houvesse se levantado de um salto e na
mesma hora contado ao vice-diretor Nero o que estava acontecendo. Por um
instante, Klaus e Sunny chegaram a pensar que Violet havia sido hipnotizada,
como acontecera com Klaus quando os órfãos Baudelaire moraram em Paltry ville.
Mas os olhos de Violet não pareciam esgazeados nem mais
arregalados do que o normal, tampouco o tom de voz com que dissera ‘’Como vai o
senhor, instrutor Genghis?’’ tinha
qualquer semelhança com o tom de voz que Klaus apresentara quando estava sob o
efeito da hipnose.
Por mais intrigados que estivessem, no entanto, os Baudelaire mais
novos confiavam plenamente em sua irmã. No passado, ela havia descoberto um
jeito para escapar do casamento com o conde Olaf quando isso parecia ser inevitável,
palavra que aqui significa ‘’horror e desgosto para a vida toda’’. Noutra ocasião
fabricara uma gazua improvisada quando a necessidade era urgentíssima. E com seu
talento de inventora já havia ajudado os irmãos a escapar de umas sanguessugas
muito famintas. Ou seja: Klaus e Sunny sabiam que Violet devia ter um bom
motivo para cumprimentar polidamente o conde Olaf em vez de denunciá-lo na
mesma hora, embora não soubessem qual, e por isso, depois de uma pausa de
hesitação, seguiram o exemplo.
— Como vai o senhor,
instrutor Genghis? — disse Klaus.
— Guefidô! — gritou Sunny.
— É um prazer conhecê-los —
disse o instrutor Genghis com um risinho no canto da boca. Os Baudelaire
perceberam que ele estava convencido de os haver enganado e que estava muito
contente consigo mesmo.
— Então, o que o senhor
acha, instrutor Genghis? — perguntou o vice-diretor Nero.
— Algum desses órfãos tem
as pernas que o senhor está procurando? — O instrutor Genghis coçou o turbante e baixou
os olhos sobre as crianças como se elas fossem deliciosos pratos num bufê em
vez de cinco órfãos. — Não tenha dúvida
— disse com a voz chiada que os Baudelaire sempre ouviam em seus pesadelos. A mão
ossuda apontou primeiro para Violet, depois para Klaus e enfim para Sunny. — Essas três crianças aqui são exatamente o
que eu procurava, sem sombra de dúvida. Quanto aos gêmeos, entretanto, não me
serviriam para nada.
— A mim tampouco — disse
Nero, sem julgar necessário assinalar que os Quagmire eram trigêmeos. Em
seguida, consultou o relógio. — Bem, está
na hora do meu concerto. Venham comigo para o auditório, vocês todos, a menos
que estejam a fim de comprar um saco de balas para mim. — Os órfãos Baudelaire esperavam
jamais ter que comprar um presente para o vice-diretor — muito menos um saco de
balas, guloseimas que as crianças adoravam e fazia muito tempo não comiam. Por
isso seguiram Nero, deixando o Barraco dos Órfãos, e atravessaram o gramado em
direção ao auditório. Os Quagmire seguiram o exemplo dos Baudelaire, e
caminhavam olhando para os edifícios em forma de lápides, ainda mais sinistros
vistos ao luar.
— Esta noite — disse Nero, —
tocarei uma sonata para violino que eu mesmo compus. Dura apenas cerca de meia
hora, mas tocarei a peça doze vezes seguidas.
— Que ótimo! — disse o
instrutor Genghis. — Se me permite
dizer, vice-diretor Nero, sou um tremendo fã de sua música. Seus concertos
foram uma das principais razões que me trouxeram à Prep Prufrock.
— É sempre bom ouvir isso —
disse Nero. — Difícil encontrar pessoas
que me apreciem na justa medida do meu gênio.
— Sei como se sente — disse
o instrutor Genghis. — Sou o melhor
professor de ginástica do mundo, e no entanto nunca houve uma parada sequer em
minha homenagem.
— Chocante — disse Nero,
balançando a cabeça.
Os Baudelaire e os Quagmire, que caminhavam atrás dos adultos,
entreolharam-se enojados com a conversa de gabolices que lhes chegava aos ouvidos,
mas não ousaram falar um com o outro até entrarem no auditório e escolher
cadeiras o mais longe possível de Carmelita Spats e seus detestáveis amigos.
Há uma vantagem, e uma só, para alguém que não sabe tocar violino
mas insiste em tocá-lo, e a vantagem é que essas pessoas em geral tocam tão
alto que não conseguem ouvir se a platéia está conversando. Conversar durante
um concerto é uma enorme grosseria da platéia, não resta dúvida; entretanto, se
a execução é muito ruim e dura seis horas, pode-se perdoar tal grosseria. Foi o
que aconteceu naquela noite, quando, depois de fazer a própria apresentação com
uma fala curta e gabola, o vice-diretor Nero postou-se no centro do palco do
auditório e começou a tocar sua sonata pela primeira vez. Quando se ouve uma peça
de música clássica, às vezes é divertido tentar adivinhar o que teria inspirado
o compositor a pôr no papel justamente aquelas notas e não outras. O compositor
pode se inspirar na natureza e escrever uma sinfonia que imita os sons de pássaros
e árvores. Ou pode se inspirar na cidade e escrever um concerto que imita os
sons do tráfego e das calçadas.
No caso daquela sonata que as crianças ouviam, Nero parecia ter se
inspirado em alguém espancando um gato, porque além de ser tocada num som altíssimo
a música era entremeada de guinchos, o que permitia que a platéia conversasse
sem atrapalhar o violinista. Enquanto Nero se embevecia atacando as notas de
seu violino como se estivesse serrando uma floresta, os alunos da Prep Prufrock
começaram a conversar entre si. Os Baudelaire puderam até reparar que o Sr. Remora
e a Sra. Bass, em vez de avaliar — como era dever dos professores — quais
estudantes teriam que presentear Nero com um saco de balas, riam às gargalhadas
e repartiam uma banana na última fila. Apenas o instrutor Genghis, que se
sentara bem no centro da primeira fila, parecia estar prestando atenção à música.
— Nosso professor de ginástica
tem qualquer coisa de assustador — disse Isadora.
— Com certeza — concordou
Duncan. — É o traço de dissimulação que
aparece nos olhos dele.
— Aquele olhar dissimulado
— disse Violet olhando, ela própria, dissimuladamente para certificar-se de que
o instrutor Genghis não estava atento às suas palavras, — é porque ele na verdade não é o instrutor
Genghis. Na verdade, ele não é instrutor coisa nenhuma. É o conde Olaf disfarçado.
— Eu sabia que você o havia
reconhecido! — disse Klaus.
— Conde Olaf? — falou
Duncan. — Que horror! Como foi que ele
seguiu vocês até aqui?
— Nusvec — disse Sunny,
melancólica.
— Minha irmã está querendo
dizer algo como: 'Ele nos segue por toda a parte' — Violet explicou, — e ela tem razão. Mas não importa como foi
que nos encontrou. O que importa é que ele está aqui e sem a menor dúvida tem
algum plano para ficar com a nossa fortuna.
— E por que você fingiu não
ter reconhecido ele? — perguntou Klaus.
— Pois é — disse Isadora, — se você tivesse contado ao vice-diretor Nero
que o instutor na verdade é o conde Olaf, Nero poderia expulsar esse... esse
bisbórria para bem longe daqui. — Violet balançou a cabeça indicando que
discordava dela e que não se incomodava com a palavra ‘’bisbórria’’.
— Com o conde Olaf, esperto
como ele é, isso não ia dar certo — disse. — Sei que se eu tentasse contar a Nero que Genghis
não é professor de ginástica, o conde Olaf ia encontrar uma saída, uma escapatória,
como fez com tia Josephine, com tio Monty e com todos os outros.
— Bem pensado — reconheceu
Klaus. — Além do mais, se Olaf está
achando que nos enganou, isso pode nos dar um pouco mais de tempo para
descobrir exatamente o que ele pretende aprontar.
— Alé! — observou Sunny .
— Minha irmã está nos
lembrando que podemos verificar se alguns dos ajudantes dele estão por perto — traduziu
Violet. — Bem lembrado, Sunny. Eu não
tinha pensado nisso.
— Ajudantes do conde Olaf?
— perguntou Isadora. — Não é justo. Ele
já é mau do jeito que é, sem ajuda de outras pessoas.
— Seus ajudantes são tão
maus quanto ele — disse Klaus. — Há duas
mulheres de rosto bem branco que nos forçaram a representar numa peça. Há um
homem cora mãos de gancho que ajudou Olaf a assassinar nosso tio Monty.
— E o careca que mandava na
gente o tempo todo quando trabalhávamos na serraria, não esqueça! — acrescentou
Violet.
— Eginu! — disse Sunny ,
querendo dizer: ‘’E o ajudante que não parecia homem nem mulher’’ , ou algo do
gênero.
— Que quer dizer 'Eginu'? —
perguntou Duncan, tirando seu caderno do bolso. — Vou anotar por escrito todos esses detalhes
sobre Olaf e sua trupe.
— Por quê? — perguntou
Violet.
— Por quê?! — repetiu
Isadora. — Porque vamos ajudar vocês,
isso sim. Ou vocês acham que nós vamos ficar aqui sentados enquanto vocês
tentam escapar das garras de Olaf?!
— Mas o conde Olaf é muito
perigoso — disse Klaus. — Se tentarem
nos ajudar, vão arriscar a vida de vocês.
— Não se preocupe — disse
Duncan, embora eu lamente dizer a vocês que os Quagmire deveriam, sim, ter se
preocupado. Deveriam ter se preocupado, e muito. Duncan e Isadora foram
bastante corajosos e solidários ao tentarem ajudar os órfãos Baudelaire, mas
freqüentemente paga-se um preço alto pela coragem. Quando digo ‘’preço’’ não
estou me referindo a algumas notinhas verdes e pronto. Estou pensando num preço
muito, muito maior, um preço tão terrível que não dá para falar dele agora;
tenho que voltar à cena que eu estava escrevendo.
— Não se preocupe — disse
Duncan. — Precisamos é de um plano. De
saída, precisamos provar a Nero que o instrutor Genghis é na verdade o conde
Olaf. Como podemos fazer isso?
— Nero tem aquele
computador — disse Violet, pensativa. — Há
um retratinho de Olaf gravado no computador, lembra?
— Lembro sim — disse Klaus
concordando com a cabeça. — Ele nos
falou que o computador de última geração manteria Olaf à distância. Não foi bem
o que aconteceu. — Sunny mostrou-se de acordo, e Violet pegou-a no colo. Nero
tinha chegado a um ponto da sonata em que os guinchos eram ensurdecedores, e as
crianças precisaram aproximar-se umas das outras para prosseguir na conversa.
— Se procurarmos Nero logo
de manhã cedo — disse Violet, — poderemos
falar com ele a sós, sem Olaf se intrometer. Pediremos para usar o computador.
Nero pode não acreditar em nós, mas o computador deve ser capaz de convencê-lo
pelo menos a investigar o instrutor Genghis.
— Talvez Nero mande ele
tirar o turbante — disse Isadora, — e aí
apareça a tal sobrancelha única que ocupa o lugar de duas.
— Ou tirar aqueles caríssimos
tênis de corrida — disse Klaus, — e aí
fique à vista a tatuagem no tornozelo.
— Mas se vocês falarem com
Nero — disse Duncan, — o instrutor Genghis ficará sabendo que vocês desconfiam
dele.
— Por isso teremos que agir
com a máxima cautela — disse Violet. — Queremos
que Nero fique de olho em Olaf sem que Olaf fique de olho em nós.
— E enquanto isso — disse
Duncan, — Isadora e eu faremos nossa própria investigação. Talvez a gente
consiga descobrir algum daqueles ajudantes que vocês descreveram.
— Isso seria muito útil — disse
Violet, — se vocês estiverem mesmo
decididos a nos ajudar.
— Assunto encerrado — Duncan
disse e acariciou a mão de Violet. Não tocaram mais no assunto. Não disseram
mais nem uma palavra sobre o conde Olaf por todo o resto da sonata de Nero, nem
quando ele a executou pela segunda vez, ou pela terceira, ou quarta, quinta,
sexta, quando então a noite já avançara bastante.
Os órfãos Baudelaire e os trigêmeos Quagmire limitaram-se a ficar
aquele tempo todo partilhando o conforto do companheirismo, uma expressão que
aqui significa muitas coisas, coisas felizes — apesar de ser bem difícil ser
feliz ouvindo uma sonata horrível executada repetidas vezes sem parar por um homem
que não sabe tocar violino, e vivendo num horrendo colégio interno com um homem
perverso que está nas proximidades, sem dúvida bolando planos atrozes. Momentos
felizes eram raros e inesperados na vida dos Baudelaire, e os três irmãos
tinham aprendido a aceitar esse destino. Duncan continuou segurando a mão de
Violet enquanto lhe falava de concertos horríveis que tinha visto na época em
que os Quagmire pais ainda eram vivos, e ela estava contente de ouvir as histórias
do amigo. Isadora havia começado a trabalhar num poema sobre livros e
bibliotecas e mostrava a Klaus as anotações do caderno; Klaus adorou dar sugestões.
Sunny aninhou-se no colo de Violet e mordia o braço da poltrona, encantada com
pôr os dentes num material ao mesmo tempo tão macio e tão resistente. Tenho
certeza de que vocês saberiam, mesmo se eu não lhes contasse, que as coisas
estavam a ponto de piorar muito para os Baudelaire, mas vou terminar este capítulo
com esse momentâneo conforto do companheirismo, em vez de saltar logo para os
desagradáveis acontecimentos da manhã seguinte, ou para as terríveis provações
dos dias subsequentes, ou para o pavoroso crime que determinou o fim da estada
dos Baudelaire na Prep Prufrock. Tais fatos aconteceram, não há dúvida, e não
adianta tentar negá-los. No entanto, por ora vamos ignorar a terrível sonata, os
medonhos professores, os estudantes implicantes e provocadores, e todas as outras
circunstâncias ainda mais desgraçadas que virão muito em breve. Vamos curtir,
no finzinho deste capítulo, o último momento de felicidade que essas crianças
terão por muito, muito tempo.
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Nada de spoilers! :)