Capítulo 6
A Escola Preparatória Prufrock atualmente está fechada. Permanece
fechada há muitos anos, desde que a Sra. Bass foi presa por assalto a banco, e
se vocês viessem visitá-la agora, encontrariam um local vazio e silencioso. Se caminhassem
no gramado, não veriam nenhuma criança correndo, como no dia da chegada dos
Baudelaire. Se passassem pelo prédio das salas de aula, não ouviriam a voz
monótona do Sr. Remora contando uma história, e se passassem pelo auditório,
não ouviriam os rangidos e guinchos do vice-diretor Nero ao violino. Se vocês
fossem à escola e se pusessem debaixo do arco da entrada, erguendo os olhos
para as letras pretas do nome do colégio e seu lema austero (‘’austero’’ aqui
significa ‘’severo e rigoroso’’), não ouviriam mais que o farfalhar da brisa
perpassando na relva marrom e desigual.
Em suma, se hoje vocês fossem visitar a Escola Preparatória
Prufrock, encontrariam o colégio mais ou menos como os Baudelaire o encontraram
bem cedo na manhã seguinte ao concerto, quando acordaram e caminharam até o prédio
administrativo para falar ao vice-diretor sobre o instrutor Genghis. As três crianças
estavam tão ansiosas para falar com ele que se levantaram da cama cedíssimo, e
enquanto atravessavam o gramado tinham a impressão de que todas as pessoas na Prep
Prufrock haviam sumido de mansinho no meio da noite, deixando os órfãos sós
entre os edifícios em forma de lápides. Era uma sensação lúgubre, por isso
Violet e Sunny espantaram-se quando Klaus rompeu o silêncio com uma gargalhada
repentina.
— Está rindo de quê? — perguntou
Violet.
— Acabo de pensar numa
coisa — disse Klaus. — É que estamos
indo para o prédio administrativo sem entrevista marcada. Não vamos poder usar
os talheres nas refeições.
— Não vejo qual é a graça!
— disse Violet. — Imagine se nos derem
mingau de aveia na primeira refeição. Vamos ter que comer com as mãos em
concha.
— Uht — disse Sunny ,
querendo dizer: ''Podem crer, não é
assim tão difíci'', o que levou as duas irmãs a aderir à gargalhada de Klaus.
Claro que não tinha a menor graça que Nero impusesse castigos terríveis como
esse, mas a ideia de tomar mingau de aveia com as mãos provocou um risinho nos
três.
— Ovos fritos, já pensou? —
disse Violet. — Já pensou se nos servem
ovos fritos com a gema mole?
— Ou panquecas com calda! —
disse Klaus.
— Sopa! — gritou Sunny , e
os três desataram a rir novamente.
— Vocês se lembram do
piquenique? — perguntou Violet. — Nós
tínhamos resolvido fazer um piquenique no rio Rutabaga, e papai ficou tão
empolgado com a comida que se esqueceu de levar talheres!
— Claro que me lembro! — disse
Klaus. — Tivemos que comer toda aquela quantidade
de camarão agri-doce com as mãos!
— Grudento! — disse Sunny
com as mãos para o alto.
— Nem me fale — concordou
Violet. — Depois fomos lavar as mãos no
rio e descobrimos um lugar perfeito para experimentar a vara de pesca que eu
tinha inventado.
— E eu fui colher amoras
com mamãe — disse Klaus.
— Iruoz — disse Sunny , o
que significava: ‘’E eu fiquei roendo pedras’’, ou algo do gênero. As crianças
então pararam de rir, ao lembrar-se daquele piquenique que, embora não tivesse
acontecido tanto tempo antes, para elas parecia pertencer a um passado remoto.
Depois do incêndio, as crianças souberam que seus pais tinham morrido, é claro,
no entanto para eles parecia simplesmente que haviam partido para algum lugar e
não demorariam a estar de volta. Agora, ao recordar a luz do sol se refletindo
nas águas do rio Rutabaga e as risadas de seus pais diante da sujeira que
resultou de comerem o camarão agridoce sem talheres, aquela tarde pareceu tão
distante que eles então se deram conta de que os pais jamais voltariam.
— Quem sabe um dia a gente
volta lá — disse Violet baixando a voz. — Quem sabe um dia a gente volta para olhar o
rio novamente, e pescar, e colher amoras.
— Um dia, talvez — disse
Klaus; entretanto os Baudelaire todos sabiam que, ainda que algum dia voltassem
ao rio Rutabaga — o que, diga-se de passagem, não fizeram —, não seria a mesma
coisa. — Um dia, talvez, mas enquanto
isso precisamos falar com Nero. Vamos, aí está o prédio administrativo.
Os Baudelaire deram um suspiro e entraram no edifício, o que
implicava renunciar ao uso dos talheres na Prep Prufrock. Subiram as escadas
até o nono andar e bateram à porta de Nero, surpresos de não o ouvir ensaiando
ao violino.
— Entrem, se necessário — disse
Nero, e os órfãos entraram. Nero estava de costas para a porta, olhando para o
seu reflexo na vidraça enquanto prendia com um elástico um de seus tufos
esparsos de cabelo. Quando terminou, pôs as mãos para o alto. — Senhoras e senhores, o vice-diretor Nero! — anunciou,
e as crianças começaram a aplaudir, em obediência. Nero voltou-se, num giro
ultra-rápido.
— Só esperava ouvir uma
pessoa aplaudindo — disse com severidade. — Violet e Klaus, vocês não têm licença para
subir até aqui. Sabem muito bem disso.
— Peço que nos desculpe,
senhor — disse Violet, — mas nós três
temos uma coisa muito importante para discutir com o senhor.
— Nós três temos uma coisa
muito importante para discutir com o senhor — arremedou Nero no tom hostil
habitual. — Deve ser mesmo muito
importante, para vocês sacrificarem o privilégio de usar talheres. Vamos, digam
lá. Ainda preciso ensaiar bastante para o meu próximo concerto, não tenho tempo
para desperdiçar.
— É coisa rápida — Klaus
prometeu. Fez uma pausa antes de prosseguir, o que é sempre bom quando se têm
que escolher as palavras com o máximo cuidado.
— Estamos preocupados — continuou,
escolhendo as palavras com todo o cuidado, — com o fato de o conde Olaf ter, de
alguma forma, conseguido entrar na Prep Prufrock.
— Absurdo — disse Nero. — Agora saiam e me deixem ensaiar ao violino.
— Talvez não seja absurdo —
disse Violet. — Olaf é um mestre do
disfarce. Ele poderia estar bem debaixo dos nossos narizes sem que
percebêssemos.
— A única coisa debaixo do
meu nariz — disse Nero, — é minha boca, e ela está mandando vocês se retirarem.
— O conde Olaf poderia ser
o Sr. Remora — disse Klaus. — Ou a Sra.
Bass.
— O Sr. Remora e a Sra.
Bass ensinam neste colégio há mais de quarenta e sete anos — disse Nero com voz
de pouco-caso. — Eu perceberia se um
deles estivesse disfarçado.
— E as pessoas que
trabalham no refeitório? — perguntou Violet. — Elas usam sempre aquelas máscaras de ferro.
— Por motivos de segurança,
não por disfarce — disse Nero. — Vocês,
seus pirralhos, andam cheios de idéias idiotas. Não demora muito, menina, você
vai estar dizendo que o conde Olaf se disfarçou no seu namoradinho. Como se
chama, o trigêmeo?
Violet enrubesceu.
— Duncan Quagmire não é meu namorado — disse, — e tampouco é o conde Olaf.
Mas Nero estava muito absorvido em fazer piadinhas bobas para
prestar atenção no que ela dizia.
— Quem sabe? — ele
perguntou e tornou a rir. — Hi, hi, hi.
Talvez ele
tenha se disfarçado em Carmelita Spats.
— Ou em mim! — ouviu-se uma
voz que vinha da porta de entrada. Os Baudelaire viraram-se e deram com o
instrutor Genghis ali parado, com uma rosa vermelha na mão e dirigindo-lhes um
olhar feroz.
— Ou no senhor! — disse
Nero. — Hi, hi, hi. Imaginem esse tal de
Olaf querendo se fazer passar pelo melhor professor de ginástica do país.
Klaus olhou para o instrutor Genghis, e pensou em toda a confusão
que ele havia causado, seja como Stefano, assistente do tio Monty , ou como
capitão Sham, ou Shirley , ou qualquer uma das outras falsas identidades que
usara. Klaus teve uma vontade louca de dizer:
— Você é o conde Olaf! — porém
sabia que, se os Baudelaire fingissem estar sendo enganados pelo instrutor
Genghis, as chances seriam maiores de que Olaf acabasse revelando seu plano,
qualquer que fosse. Tratou então de engolir a língua (expressão que aqui
significa que Klaus ‘’segurou seus pensamentos e ficou quieto’’), ou seja, não
engoliu de verdade a língua, mas abriu a boca e riu.
— Isso, sim, seria
engraçado! — disse hipocritamente. — Imagine
só se o senhor fosse o conde Olaf! Não seria engraçado, instrutor Genghis?
Então na verdade o seu turbante não passaria de um disfarce!
— Meu turbante? — disse o
instrutor Genghis. Seu olhar feroz desarmou-se na mesma hora em que ele
percebeu — incorretamente — que Klaus estava brincando. — Um disfarce? Ho, ho, ho!
— Hi, hi, hi — Nero riu.
Violet e Sunny logo compreenderam o que Klaus estava fazendo, e
seguiram seu exemplo.
— É isso aí, Genghis — exclamou
Violet, como se estivesse brincando, — tire o seu turbante e nos mostre a
sobrancelha única que você tem escondida! Ha, ha, ha!
— Crianças, vocês três são
mesmo muito engraçados! — exclamou Nero. — Eu diria
que parecem três comediantes profissionais!
— Volasocks! — gritou Sunny
, mostrando os quatro dentes num sorriso hipócrita.
— Tem razão — disse Klaus. — Sunny tem razão! Se o senhor de fato fosse
Olaf disfarçado, então os tênis de corrida estariam tapando sua tatuagem!
— Hi, hi, hi — Nero riu. — Vocês, crianças, são como três palhaços!
— Ho, ho, ho! — aprovou o
conde Olaf.
— Ha, ha, ha — saiu de
Violet, que já começava a sentir um certo mal-estar por estar fingindo todas
aquelas risadas. Erguendo os olhos para Genghis, e forçando tanto um sorriso
que seus dentes chegaram a doer, ela ficou na ponta dos pés e tentou alcançar o
turbante. — Vou arrancar isso — disse,
sempre no mesmo tom de brincadeira, — e
expor a sua enorme sobrancelha única!
— Hi, hi, hi — divertiu-se
Nero, balançando com as risadas seus rabichos-de-cavalo. — Vocês parecem três
macaquinhos amestrados!
Klaus jogou-se ao chão e agarrou um dos pés de Genghis.
— E eu vou arrancar seus
tênis — disse, como se também continuasse no mesmo tom de brincadeira, — e expor a sua tatuagem!
— Hi, hi, hi — divertia-se
Nero. — Vocês são três...
Os Baudelaire não chegaram a ouvir três o quê eles eram, porque o
instrutor Genghis estendeu ambos os braços e segurou Klaus com uma das mãos e
Violet com a outra.
— Ho, ho, ho! — riu, mas parou
na mesma hora. — Evidentemente — disse
num tom de voz que de repente se tornou sério, — não posso tirar os tênis de corrida, porque
estive me exercitando e meus pés suaram e estão cheirando mal, e não posso
tirar meu turbante por motivos religiosos.
— Hi, hi... — Nero parou de
rir e tornou-se, ele próprio, muito sério. — Ora, instrutor Genghis — disse, — não lhe
pediríamos que violasse suas crenças religiosas, e com toda a certeza não quero
seus pés fedendo no meu gabinete.
Violet debateu-se para alcançar o turbante e Klaus debateu-se para
tirar um dos tênis do instrutor vilão, entretanto Genghis segurou-os firme.
— Droc! — gritou Sunny .
— Acabou-se a brincadeira!
— anunciou Nero. — Obrigado por terem
alegrado minha manhã, crianças. Até logo, e façam bom proveito de sua refeição
matinal sem talheres! Bem, instrutor Genghis, em que lhe posso ser útil?
— É o seguinte, Nero — disse
Genghis, — só queria lhe dar esta rosa —
um pequeno presente de congratulações pelo maravilhoso concerto com que você
nos brindou a noite passada!
— Ora, obrigado — disse
Nero tomando a rosa da mão de Genghis e aspirando o seu perfume. — Eu estive maravilhoso, não?
— Você estava perfeito! — disse
Genghis. — Na primeira vez que tocou sua
sonata, comoveu-me profundamente. Na segunda, meus olhos se encheram de lágrimas.
Na terceira, solucei incontidamente. Na quarta, sofri uma convulsão emocional. Na
quinta... — Os Baudelaire não ouviram o
que se passou na quinta vez, porque a porta de Nero bateu e fechou-se atrás
deles. Entreolharam-se desanimados. Os Baudelaire tinham chegado bastante perto
de revelar o disfarce do instrutor Genghis, mas chegar perto não bastava.
Saíram do prédio administrativo arrastando os passos em silêncio e assim
seguiram até o refeitório. Era evidente que Nero já havia passado um recado
para os empregados com máscaras de ferro, porque quando Violet e Klaus chegaram
ao final da fila eles se recusaram a dar-lhes talheres. Naquele dia, a primeira
refeição da Prep Prufrock não era mingau de aveia, porém Violet e Klaus sabiam
que comer ovos mexidos com as mãos não ia ser muito agradável.
— Ah, não se preocupem com
isso — disse Isadora quando as crianças se sentaram melancólicas ao lado dos
Quagmire. — Veja só, Klaus e eu nos
revezaremos para usar os meus talheres, e você reveza com Duncan, Violet. Agora
nos contem como foi tudo no gabinete de Nero.
— Não foi muito bem — reconheceu
Violet. — O instrutor apareceu logo
depois de nós, e não queríamos que ele percebesse que sabemos quem ele
realmente é.
Isadora puxou do bolso seu caderno e leu em voz alta para os
amigos:
— Que sorte seria se
Genghis, o vilão, Fosse atropelado por um caminhão.
— Este é o meu poema mais
recente — disse ela. — Sei que não
ajuda, mas achei que, de qualquer modo, vocês poderiam gostar de ouvi-lo.
— Pode crer que gostei — disse
Klaus. — E não resta dúvida que seria
muita sorte se isso acontecesse. Mas é muito difícil.
— Tudo bem, pensaremos num
outro plano — disse Duncan, passando o seu garfo para Violet.
— Assim espero — disse
Violet. — O conde Olaf não costuma
demorar muito para pôr em execução seus projetos maléficos.
— Cosbal! — gritou Sunny .
— Sunny está querendo dizer
'Eu tenho um plano'? — perguntou Isadora. — Estou tentando captar o código dela.
— Acho que o sentido é mais
próximo de Aí vem Carmelita Spats' — disse Klaus, apontando para um ponto
próximo no refeitório. De fato, Carmelita Spats vinha caminhando na direção da
mesa deles, com um grande sorriso presunçoso no rosto.
— Olá, bisbórrias! — disse
ela. — Tenho um recado do instrutor
Genghis para vocês. Ele me escolheu como Mensageira Especial por ser a garota
mais engraçadinha, mais bonitinha e mais simpática de todo o colégio.
— Ora, pare de se gabar,
Carmelita — disse Duncan.
— Você está com ciúmes — respondeu
Carmelita, — só porque o instrutor Genghis gosta mais de mim que de você.
— Estou pouco ligando para
o instrutor Genghis — disse Duncan. — Dê
logo o seu recado e nos deixe em paz.
— O recado é o seguinte — disse
Carmelita. — Os três órfãos Baudelaire
devem comparecer ao gramado da frente, logo depois do jantar.
— Depois do jantar? — disse
Violet. — Depois do jantar temos que ir
ao recital de violino de Nero.
— O recado é esse —
insistiu Carmelita. — Ele disse que, se
vocês não aparecerem, vão ter sérios problemas, por isso eu, se fosse você,
Violet...
— Você não é Violet, graças
a Deus — interrompeu Duncan. Sei que não é educado interromper uma pessoa que
está falando, mas às vezes, quando a pessoa é muito desagradável, não dá para a
gente se conter. — Obrigado pelo recado.
Passe bem.
— A tradição — disse
Carmelita, — manda que o Mensageiro Especial receba uma gratificação depois que
ele termina de dar o recado.
— Se você não nos deixar em
paz — disse Isadora, — vamos gratificá-la despejando ovos mexidos na sua
cabeça.
— Você não passa de uma
bisbórria ciumenta — Carmelita resmungou, mas acabou deixando os Baudelaire e
os Quagmire em paz.
— Não se preocupem — disse
Duncan quando se certificou de que Carmelita não poderia ouvi-lo. — Ainda é manhã. Temos o dia todo para pensar
no que fazer. Coma outra colherada de ovos, Violet.
— Não, obrigada — disse
Violet. — Não estou com muito apetite. —
E era verdade.
Nenhum dos Baudelaire estava com apetite. Ovos mexidos nunca foram
o prato predileto dos irmãos, sobretudo de Sunny , que preferia comida em que
pudesse fincar os dentes com vontade, porém a falta de apetite deles não tinha
nada a ver com os ovos. Tinha a ver com o instrutor Genghis, é claro, e com o
recado que ele lhes mandara. Tinha a ver com o encontro que deveriam ter com
Genghis, depois do jantar, sozinhos. Duncan tinha razão, ainda era manhã e
havia o dia todo para pensar no que fazer. Só que não dava a sensação de ser
manhã. Sentados no refeitório, Violet, Klaus e Sunny não voltaram a tocar na
refeição, e tinham a impressão de que o sol já havia se posto. Tinham a
impressão de que a noite já caíra, e o instrutor Genghis já os estava
esperando. Ainda era manhã, e os órfãos Baudelaire já se sentiam nas garras do
conde Olaf.
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