Capítulo 6
A parte da manhã
é uma das melhores horas para se pensar. O momento em que uma pessoa acabou de
acordar mas ainda não saiu da cama é perfeito para ficar olhando para o teto,
refletindo sobre a vida e se perguntando o que o futuro irá trazer. Na manhã em
que estou escrevendo este capítulo, me pergunto se o futuro trará alguma coisa
que me possibilite serrar estas algemas e me arrastar para fora da janela de
tranca dupla, mas no caso dos órfãos Baudelaire, quando o sol da manhã luziu
através das oitocentas e quarenta e nove janelas do apartamento de cobertura
dos Squalor, eles estavam se perguntando se o futuro iria permitir esclarecer
as dificuldades que, sentiam, estavam fechando um círculo em volta deles.
Violet ficou vendo os primeiros raios de sol iluminarem a sua bancada de trabalho
reforçada e sem ferramentas enquanto tentava imaginar que espécie de plano
deletério Gunther teria arquitetado. Klaus ficou vendo os raios do alvorecer criarem
formas cambiantes na parede que separava o seu quarto da biblioteca dos
Squalor, enquanto dava tratos à bola para descobrir que jeito Gunther teria dado
para sumir sem deixar vestígio. E Sunny ficou vendo o sol emergente iluminar
todos os brinquedos de bebê impossíveis de morder enquanto tentava imaginar se
eles ainda tinham tempo para discutir a questão antes que os Squalor viessem
acordá-los.
Esta última
dúvida era razoavelmente fácil de esclarecer. A menorzinha dos Baudelaire
engatinhou para fora do seu quarto, foi buscar o irmão e abriu a porta de
Violet. Encontrou-a fora da cama, sentada à sua bancada de trabalho, com os cabelos
presos por uma fita para evitar que caíssem nos olhos.
— Tageb — disse Sunny.
— Bom dia — respondeu Violet. — Achei que prender o cabelo me ajudaria a
pensar e sentei à bancada, como se estivesse inventando alguma coisa. Mas ainda
não consegui pensar em nada.
— Já é suficientemente terrível que Olaf tenha
aparecido de novo — disse Klaus, — e que
tenhamos de chamá-lo de Gunther. Mas não temos o menor indício do que ele está planejando.
— Bem, ele quer pôr as mãos na nossa fortuna,
isto é certo — disse Violet.
— Clofi — disse Sunny, querendo dizer ‘’É
claro. Mas como?’’.
— Talvez tenha algo a ver com o Leilão In —
presumiu Klaus. — Por que ele haveria de
se disfarçar de leiloeiro se isto não fosse parte do seu plano? Sunny bocejou e Violet abaixou-se e ergueu a
irmã para sentá-la no seu colo.
— Você acha que ele vai tentar nos leiloar?
perguntou Violet enquanto Sunny se inclinava para a frente para mordiscar a
bancada, pensativa. — Ele poderia mandar
um daqueles seus terríveis assistentes para dar lances cada vez mais altos por
nós até ganhar, e então estaríamos nas suas garras, exatamente como os pobres
Quagmire.
— Mas Esmé disse que é contra a lei leiloar
crianças — lembrou Klaus. Sunny parou de mascar a bancada e olhou para os
irmãos. — Nolano? perguntou ela, o que queria
dizer algo como ‘’Você acha que os Squalor estão trabalhando junto com Gunther?’’.
— Não creio — disse Violet. — Eles foram muito gentis conosco — bom, pelo
menos Jerome — e, de qualquer modo, não precisam da fortuna dos Baudelaire.
Eles já têm tanto dinheiro!
— Mas não muito bom senso — disse Klaus,
infeliz. — Gunther os engambelou completamente,
e tudo o que precisou foram umas botas pretas, um terno riscade- giz e um
monóculo.
— E mais, ele os engambelou para pensarem que
já tinha ido embora — disse Violet, — mas o porteiro tinha certeza que não.
— Gunther também me engambelou — disse Klaus. — Como ele poderia ter ido embora sem que o
porteiro percebesse?
— Não sei — disse Violet, infeliz. — A coisa toda parece um quebra-cabeça, mas estão
faltando muitas peças para completar.
— Será que ouvi alguém falar em quebra-cabeças?
perguntou Jerome. — Se vocês estão atrás
de uns quebra-cabeças, acho que há alguns no armário de uma das salas de
visitas, ou talvez em uma das salas de estar, não me lembro qual. Os Baudelaire ergueram os olhos e viram o seu
tutor na porta do quarto de Violet, com um sorriso na cara e uma bandeja de
prata nas mãos.
— Bom dia, Jerome — disse Klaus. — E obrigado, mas não estamos atrás de
quebracabeças. Violet esta só usando uma expressão. Estamos tentando decifrar
uma coisa.
— Obrigada — disse Violet. — É muito gentil da sua parte nos trazer o
café-damanhã.
— Não tem de quê — disse Jerome. — Hoje Esmé tem uma reunião importante com o
Rei do Arizona, portanto teremos o dia inteiro para nós. Achei que poderíamos caminhar
pela cidade até o Bairro do Vestuário e levar os seus ternos risca-de-giz a um
bom alfaiate. Não adianta ter esses ternos se eles não estão bem ajustados.
— Cniliu! gritou Sunny, o que queria dizer ‘’É
muito atencioso da sua parte’’.
— Não sei o que significa 'Cniliu!' — disse
Esmé, entrando no quarto, — e não me importa,
mas vocês também não vão se importar quando ouvirem a notícia fantástica que
acabei de receber pelo telefone! Os martínis aquosos estão out, e refrigerantes
de salsa estão in!
— Refrigerante de salsa? — disse Jerome
franzindo as sobrancelhas. — Isto me
parece horrível. Acho que vou continuar com os martínis aquosos.
— Você não está me escutando — disse Esmé. — Agora, refrigerantes de salsa são in. Você
vai ter de sair agora mesmo e comprar algumas caixas.
— Mas eu ia levar os ternos das crianças para
o alfaiate hoje — disse Jerome.
— Então você vai ter de mudar os seus planos —
disse Esmé, impaciente. — As crianças já
têm o que vestir, mas nós não temos nenhum refrigerante de salsa.
— Bem, eu não quero discutir — disse Jerome.
— Então não discuta — retorquiu Esmé. — E também não leve as crianças com você. O
Bairro das Bebidas não é lugar para gente jovem. Bem, é melhor irmos andando,
Jerome. Não quero chegar atrasada ao encontro com Sua Alteza do Arizona.
— Mas você não quer passar algum tempo com os
Baudelaire antes de começar o dia de trabalho? perguntou Jerome.
— Não em especial — disse Esmé, e deu uma
olhada rápida no relógio. — Vou só dizer
bom-dia a eles. Bom dia. Bem, vamos, Jerome.
Jerome abriu a
boca como se tivesse mais alguma coisa a dizer, mas Esmé já estava marchando
para fora do quarto, portanto ele apenas encolheu os ombros.
— Um bom dia para vocês — disse ele às
crianças. — Há comida em todas as nossas
cozinhas, então vocês podem preparar o seu almoço sozinhos. Sinto muito que os nossos
planos não tenham dado certo, afinal.
— Depressa! gritou Esmé já no corredor, e
Jerome correu para fora do quarto.
As crianças
ouviram os passos do seu tutor irem ficando mais e mais distantes a caminho da
porta da frente.
— Bem — disse Klaus quando já não dava mais
para ouvi-los, — o que vamos fazer hoje?
— Vinfrei — disse Sunny.
— Sunny tem razão — disse Violet. — É melhor a gente passar o dia tentando descobrir
o que Gunther está tramando.
— Como podemos saber o que ele está tramando —
disse Klaus, — se não sabemos nem mesmo
onde ele pode estar.
— Bem, acho melhor descobrir — disse Violet. — Ele já tinha a vantagem injusta do elemento
surpresa, e nós não queremos que ele tenha também a vantagem injusta de um bom
esconderijo.
— Esta cobertura tem uma porção de bons
esconderijos — disse Klaus. — São tantos
quartos e salas!
— Coundix — disse Sunny, o que quer dizer
alguma coisa como — Mas ele não pode estar
na cobertura. Esmé o viu sair.
— Bem, talvez ele tenha entrado de novo
sorrateiramente — disse Violet, — e
neste momento esteja à espreita por aí.
Os Baudelaire se
entreolharam e depois olharam para a porta de Violet, meio que esperando ver
Gunther na soleira, olhando para eles com os seus olhos muito, muito
brilhantes.
— Se ele estivesse à espreita por aí — disse
Klaus, — não teria nos agarrado no instante
em que os Squalor saíram?
— Talvez — disse Violet. — Se fosse este o seu plano. Os Baudelaire olharam para a soleira vazia de
novo.
— Estou com medo — disse Klaus.
— Ecrifi — concordou Sunny.
— Eu também estou com medo — admitiu Violet, — mas se ele está aqui na cobertura, é melhor
a gente descobrir. Vamos ter de procurar pelo apartamento inteiro para ver se o
encontramos.
— Eu não quero encontrá-lo — disse Klaus. — Em vez disso, vamos correr para baixo e
ligar para o Sr. Poe.
— O Sr. Poe está em um helicóptero, procurando
os trigêmeos Quagmire — disse Violet. — Quando
ele voltar, vai ser tarde demais. Temos de descobrir o que Gunther está tramando
— não só por nós, mas por Isadora e Duncan.
A menção dos
trigêmeos Quagmire, todos os três Baudelaire sentiram a sua determinação se
endurecer, uma expressão que aqui significa — deram-se conta de que teriam de vasculhar a
cobertura atrás de Gunther, mesmo sendo uma coisa assustadora para se fazer. As
crianças se lembraram de como Duncan e Isadora tinham trabalhado para salvá-los
das garras de Olaf na Escola Preparatória Prufrock, fazendo absolutamente tudo
o que podiam para ajudar os Baudelaire a escapar do plano sinistro de Olaf. Os
Quagmire tinham saído sorrateiramente no meio da noite e se colocado em grave
perigo. Os Quagmire tinham vestido disfarces, arriscando suas vidas a fim de
tentar engambelar Olaf.
E os Quagmire
tinham feito muitas pesquisas e descobriram o segredo de C.S.C. — muito embora
tivessem sido sequestrados antes que pudessem revelar o segredo aos Baudelaire.
Violet, Klaus e Sunny pensaram nos dois valentes e leais trigêmeos e perceberam
que teriam de ser igualmente valentes e leais, agora que
tinham uma
oportunidade de salvar os amigos. — Você
tem razão — disse Klaus a Violet, e Sunny concordou com um aceno de cabeça.
— Temos de vasculhar a cobertura. Mas é um
lugar tão complicado! Eu me perdi só de tentar encontrar o banheiro à noite.
Como poderemos procurar sem nos perdermos?
— Hansel! — disse Sunny.
Os dois
Baudelaire mais velhos se entreolharam. Era raro Sunny dizer alguma coisa que
os irmãos não podiam entender, mas esta parecia ser uma daquelas vezes.
— Você quer dizer que temos de desenhar um
mapa? perguntou Violet.
Sunny sacudiu a
cabeça.
— Gretel! disse ela.
— Já é a segunda vez que não entendemos o que
você falou — disse Klaus.
— Hansel e Gretel? O que quer dizer isso?
— Oh! — exclamou Violet de repente. — Hansel e Gretel quer dizer Hansel e Gretel —
você sabe, aquelas duas crianças pouco inteligentes, naquele conto de fadas.
— É claro — disse Klaus. — O irmão e a irmã que insistiam em ficar
perambulando pelo bosque sozinhos.
— Deixando uma trilha de migalhas de pão —
disse Violet, pegando um pedaço de torrada na bandeja de café-da-manhã que
Jerome trouxera para eles, — para não se
perderem. Vamos esmigalhar esta torrada e deixar algumas migalhas em cada sala,
assim saberemos que naquela já procuramos. Bem pensado, Sunny.
— Blized — disse Sunny modestamente, o que
queria dizer algo como ‘’Isto não foi nada’’, ou algo do gênero, e lamento
dizer que no fim ela estava certa. Porque quando as crianças saíram vagando do
quarto para a sala de estar, e a sala de jantar, e a sala de café-da-manhã, e a
sala de lanche, e a sala de sentar, e a sala de ficar em pé, e o salão de
baile, e o banheiro, e a cozinha, e aquelas salas que pareciam não ter nenhuma
serventia, e outra vez de volta, deixando trilhas de migalhas de torrada por
onde passavam, não encontraram Gunther em lugar algum. Elas procuraram nos
armários de cada quarto de dormir e de cada cozinha, e até puxaram a cortina do
chuveiro em cada banheiro para ver se Gunther não estava escondido atrás. Elas
viram prateleiras de roupas nos armários dos quartos, latas de comida nos
armários da cozinha e frascos de creme rinse no chuveiro, mas quando acabou a
manhã e a própria trilha de migalhas dos Baudelaire os levou de volta ao quarto
de Violet, as crianças tiveram de admitir que não tinham encontrado nada.
— Onde será que o Gunther pode estar escondido?
perguntou Klaus. — Já procuramos por
toda parte.
— Talvez ele estivesse em movimento — disse
Violet. — Poderia ter estado em uma sala
atrás de nós o tempo todo, pulando para esconderijos que já tínhamos conferido.
— Acho que não — disse Klaus. — Com certeza o teríamos ouvido, se estivesse batendo
os pés por aí com aquelas botas ridículas. Não acho que ele tenha estado nesta
cobertura desde a noite passada. Esmé insiste que ele saiu do apartamento, mas
o porteiro insiste que ele não saiu. Isto não faz sentido.
— Eu estive pensando nisso — disse Violet. — Acho que pode fazer sentido. Esmé insiste
que ele saiu da cobertura. O porteiro insiste que ele não saiu do edifício. Isto
significa que ele poderia estar em qualquer dos outros apartamentos da Avenida
Sombria 667.
— Você tem razão — disse Klaus. — Talvez ele tenha alugado um dos apartamentos
em outro andar, como quartel-general para o seu último plano.
— Ou talvez um dos apartamentos pertença a alguém
da sua trupe — disse Violet, e contou nos dedos aquelas pessoas terríveis. — O homem com mão de gancho, ou o careca com
nariz comprido, ou aquele que não parece nem homem nem mulher.
— Ou talvez aquelas duas mulheres horrendas
com as caras brancas — aquelas que ajudaram a raptar os Quagmire — morem juntas
aqui — disse Klaus.
— Co — disse Sunny, o que queria dizer algo
como ‘’Ou talvez Gunther tenha conseguido enganar um dos outros residentes da
Avenida Sombria 667 para deixá-lo entrar no apartamento, e então ele amarrou
todo mundo e está lá sentado, escondido na cozinha’’, ou algo do gênero.
— Se encontrarmos Gunther no edifício — disse
Violet, — então, pelo menos, os Squalor
vão saber que ele é um mentiroso. Mesmo se não acreditarem que ele na verdade é
o conde Olaf, ficarão muito desconfiados caso seja pego se escondendo em outro
apartamento.
— Mas como vamos descobrir? — perguntou Klaus.
— Não podemos simplesmente ficar batendo
nas portas e pedindo para ver cada apartamento.
— Nós não precisamos ver cada
apartamento — disse Violet. — Podemos ouvir.
Klaus e Sunny
olharam confusos para a irmã por um momento, e então começaram a arreganhar um
sorriso.
— Você está certa!
disse Klaus. — Se descermos as escadas e
ouvirmos a cada porta, talvez consigamos saber se Gunther está lá dentro.
— Lorigo! — gritou Sunny, o que queria dizer ‘’O
que estamos esperando? Vamos
logo!’’.
— Não tão depressa — disse Klaus. — Descer todas aquelas escadas é uma longa viagem,
e a gente já teve uma boa dose de caminhada — ou engatinhada no seu caso, Sunny.
É melhor calçar os sapatos mais resistentes que temos, e levar também alguns
pares de meias sobressalentes. Assim evitaremos as bolhas.
— E seria bom levar um pouco de água — disse
Violet, — para não ficarmos com sede.
— Lanche! — gritou Sunny, e os órfãos
Baudelaire partiram para o trabalho, tirando os pijamas e vestindo uma
indumentária apropriada para descer escadas, calçando os seus sapatos mais
resistentes e enfiando pares de meias sobressalentes nos bolsos. Depois que
Violet e Klaus se certificaram de que Sunny tinha amarrado os sapatos direito,
as crianças saíram dos seus quartos e foram seguindo as migalhas corredor
abaixo, através de uma sala de estar, passando por dois quartos de dormir,
descendo mais um corredor e entrando na cozinha mais próxima, mantendo-se bem
juntos o tempo todo para não se perderem um do outro na enorme cobertura. Na
cozinha, encontraram algumas uvas, uma caixa de biscoitos e um pote de manteiga
de maca, além de uma garrafa d'água que os Squalor usavam para fazer martínis
aquosos mas que os Baudelaire usariam para saciar a sede durante a longa
descida. Finalmente, saíram do apartamento de cobertura, passaram as portas
deslizantes de elevador e pararam no alto da escadaria curva, sentindo-se mais
como se estivessem prestes a escalar uma montanha e não descer escadas.
— Teremos de descer na ponta dos pés — disse
Violet, — para que possamos ouvir Gunther
mas ele não possa nos ouvir.
— E provavelmente teremos de cochichar —
cochichou Klaus, — para que possamos bisbilhotar
sem que as pessoas possam nos bisbilhotar.
— Philavem — disse Sunny, o que queria dizer ‘’Vamos
indo’’ e os Baudelaire foram indo, descendo na ponta dos pés a primeira curva
da escadaria e parando para escutar junto à porta do apartamento logo abaixo da
cobertura. Nada ouviram durante alguns segundos, mas então, muito claramente,
ouviram uma mulher falando ao telefone.
— Bem, esta não é Gunther — cochichou Violet. — Ele não é mulher. Klaus e Sunny assentiram e as crianças
desceram na ponta dos pés a curva seguinte até o andar de baixo. Assim que
chegaram à próxima porta ela se abriu de repente revelando um homem muito baixo
de terno risca-de-giz. — Até mais ver,
Avery ! exclamou ele e, com um aceno de cabeça para as crianças, fechou a porta
e começou a descer as escadas.
— Este também não é Gunther — cochichou Klaus.
— Ele não é tão baixo e, no momento, não
se chama Avery .
Violet e Sunny
concordaram, e as crianças desceram na ponta dos pés a curva seguinte até o
andar de baixo do andar de baixo. Pararam e escutaram junto àquela porta, e
ouviram uma voz de homem exclamando ‘’Mãe, vou tomar uma ducha!’’ e Sunny
sacudiu a cabeça.
— Mineac — cochichou ela, o que queria dizer —
Gunther jamais tomaria uma ducha. Ele é imundo.
Violet e Klaus
concordaram, e as crianças desceram na ponta dos pés a curva seguinte, depois a
seguinte, e a seguinte, e muitas mais depois disto, escutando a cada porta,
cochichando rapidamente entre si e seguindo adiante. A medida que iam descendo
e descendo a escadaria, começaram a ficar cansadas, como sempre acontecia
quando estavam indo para o apartamento dos Squalor, ou voltando dele, mas desta
vez ainda tinham algumas novas tribulações. As pontas dos pés ficaram cansadas
de tanto andar na ponta dos pés. As gargantas ficaram roucas de tanto
cochichar. Os ouvidos doíam de tanto ficar escutando junto a todas aquelas
portas, e os queixos caíram de tanto balançar a cabeça concordando que nada do
que ouviram soava como sendo Gunther. A manha foi passando, e os Baudelaire
desciam na ponta dos pés e escutavam, cochichavam e concordavam, e quando
chegaram ao saguão do edifício parecia que todos os aspectos físicos dos órfãos
Baudelaire estavam sofrendo de algum modo por causa da longa descida.
— Isto foi exaustivo — disse Violet,
sentando-se no primeiro degrau e passando a garrafa d'água para os outros. — Exaustivo e infrutífero.
— Uva! — disse Sunny.
— Não, não, Sunny — disse Violet. — Eu não quis dizer que nós não temos nenhuma fruta.
Só quis dizer que não descobrimos nada. Vocês acham que deixamos passar alguma
porta?
— Não — disse Klaus, sacudindo a cabeça e
passando a caixa de biscoitos para os outros. — Eu me certifiquei. Até contei os andares
desta vez, para que pudéssemos conferir de novo na volta. Não são quarenta e
oito, nem oitenta e quatro. São sessenta e seis, que por coincidência é a média
desses dois números. Sessenta e seis andares e sessenta e seis portas, e nem um
pio de Gunther atrás de nenhuma delas.
— Eu não entendo — disse Violet, infeliz. — Se ele não está na cobertura, e não está em
nenhum dos outros apartamentos, e não saiu do edifício, onde poderia estar?
— Talvez ele esteja na cobertura — disse
Klaus, — e nós simplesmente não o localizamos.
— Bichui — disse Sunny, o que queria dizer ‘’Talvez
ele esteja em um dos outros apartamentos, e nós simplesmente não o ouvimos’’.
— Ou talvez ele tenha saído do edifício —
disse Violet, passando manteiga de maçã em um biscoito e dando a Sunny. — Podemos perguntar ao porteiro. Aí está ele.
De fato, o
porteiro estava em seu posto costumeiro e acabava de reparar nas três crianças
exaustas sentadas no primeiro degrau da escada.
— Olá — disse ele, andando na direção delas e
sorrindo embaixo da aba larga do seu chapéu. Uma pequena estrela-do-mar
esculpida em madeira e uma garrafa de cola projetavam-se para fora das suas
longas mangas. — Eu estava indo aplicar
esta decoração praiana quando pensei ter ouvido alguém descendo as escadas.
— Nós só estávamos pensando em almoçar aqui no
saguão — disse Violet, não querendo admitir que ela e os irmãos estiveram
escutando atrás das portas, — e depois
subir de volta.
— Me desculpem, mas isto significa que vocês
não podem voltar para a cobertura — disse o porteiro, e encolheu os ombros
dentro do seu casaco grande demais. — Vocês vão ter de ficar aqui no saguão.
Afinal, as minhas instruções foram muito claras: vocês não podem voltar à
cobertura dos Squalor antes do convidado sair. Deixei vocês subirem ontem à
noite porque o sr. Squalor disse que o seu convidado provavelmente estava
descendo, mas ele estava errado, pois Gunther não chegou a aparecer no saguão.
— Você quer dizer que Gunther ainda não saiu
do edifício? — perguntou Violet.
— Claro que não — disse o porteiro. — Fiquei aqui o dia todo e a noite toda, e não
o vi sair. Garanto para vocês que Gunther não chegou a passar por esta porta.
— Quando você dorme? — perguntou Klaus.
— Eu bebo muito café — respondeu o porteiro.
— Isto não faz nenhum sentido — disse Violet.
— É claro que faz — disse o porteiro. — O café contém cafeína, que é um estimulante químico.
Os estimulantes mantêm a pessoa acordada.
— Eu não quis dizer a parte sobre café — disse
Violet. — Eu quis dizer a parte sobre Gunther.
Esmé... isto é, a Sra. Squalor, está segura de que ele saiu da cobertura ontem
à noite, enquanto estávamos no restaurante. Mas você está igualmente seguro de que
ele não saiu do edifício. É um problema que parece não ter solução.
— Todo problema tem a sua solução — disse o
porteiro. — Pelo menos, é isto o que diz
um parceiro muito chegado meu. Só que às vezes leva um bom tempo para achar a
solução — mesmo que ela esteja bem diante do seu nariz.
O porteiro sorriu
para os Baudelaire, que ficaram olhando enquanto ele caminhava para as portas
deslizantes do elevador. Ele abriu a garrafa de cola, que espalhou por uma
pequena área formando uma nódoa globular sobre uma das portas, depois segurou a
estrela-do-mar de madeira contra a cola a fim de fixá-la. Colar coisas em uma
porta não é uma coisa muito emocionante de assistir, e depois de um momento
Violet e Sunny voltaram a atenção de novo para o seu almoço e o problema do
desaparecimento de Gunther. Somente Klaus ficou olhando na direção do porteiro
enquanto ele continuava a decorar o saguão.
O Baudelaire do
meio ficou olhando, e olhando, e olhando, e continuou olhando até depois que a
cola secou e o porteiro voltou ao seu posto junto à porta. Klaus ficou
encarando a decoração praiana que estava agora firmemente afixada a uma das
portas de elevador porque agora, depois daquela manha cansativa vasculhando a
cobertura e daquela tarde exaustiva bisbilhotando nas escadas, se dera conta de
que o porteiro estava com a razão. Klaus não desviou o rosto nem um tiquinho
porque se dera conta de que a solução estava, realmente, bem diante do seu
nariz.
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