Capítulo 7
Neste nosso mundo grande e selvagem, há muitos, muitos lugares desagradáveis
para se estar. Você pode estar em um rio infestado de enguias elétricas raivosas,
ou em um supermercado cheio de maratonistas truculentos. Você pode estar em um
hotel que não tem serviço de quarto, ou pode estar perdido em uma floresta que
está pouco a pouco se enchendo de água. Você pode estar em um vespeiro, ou em
um aeroporto abandonado, ou no consultório de um cirurgião pediátrico; mas uma
das coisas mais desagradáveis que podem acontecer é encontrar-se em um dilema,
que é onde os órfãos Baudelaire se encontravam naquela noite. Encontrar-se em
um dilema significa que tudo parece confuso e perigoso, e você não sabe que
diabo fazer a respeito; e esta é uma das coisas mais desagradáveis em que você
pode se encontrar. Os três Baudelaire estavam sentados na cozinha de Hector
enquanto o factótum preparava mais um jantar mexicano e, em comparação com o
dilema em que se encontravam, todos os seus outros problemas ficavam parecidos
com as batatinhas que ele cortava em três.
— Tudo parece confuso — disse
Violet taciturna. — Os trigêmeos
Quagmire estão em algum lugar aqui por perto, mas nós não sabemos onde, e as
únicas pistas que temos são dois poemas confusos. E agora, temos um homem que
não é o conde Olaf porém tem um olho tatuado no tornozelo e queria nos contar
alguma coisa sobre os nossos pais.
— É mais que confuso —
disse Klaus. — É perigoso. Precisamos
salvar os Quagmire antes que o conde Olaf faça algo de pavoroso, e precisamos
convencer o Conselho dos Anciãos de que o homem que eles prenderam é realmente
Jacques, caso contrário irão queimá-lo na fogueira.
— Dilema? — disse Sunny, o
que queria dizer alguma coisa na linha de ‘’Que diabo podemos fazer a respeito?’’.
— Não sei o que nós podemos
fazer a respeito, Sunny — respondeu Violet.
— Passamos o dia todo
tentando descobrir o que significam os poemas, e tentamos o melhor que pudemos
convencer o Conselho dos Anciãos de que a oficial Luciana cometeu um erro. — Ela
e seus irmãos olharam para Hector, que certamente não fizera o melhor que podia
com o Conselho dos Anciãos mas, em vez disso, ficara sentado em sua cadeira de
dobrar sem dizer palavra.
Hector suspirou e olhou para as crianças com um ar infeliz.
— Sei que devia ter dito
alguma coisa — disse ele, — mas eu estava desassossegado demais. O Conselho dos
Anciãos é tão imponente que não consigo dizer nem uma palavra na presença
deles. No entanto, me ocorre algo que podemos fazer para ajudar.
— O que é? — perguntou
Klaus.
— Podemos saborear estes
huevos rancheros, disse ele. — Huevos
rancheros são ovos fritos com feijão, servidos com tortilhas e batatas em molho
apimentado de tomate. Os irmãos se entreolharam, tentando imaginar como um
prato mexicano poderia
tirá-los do seu dilema.
— E como isto vai ajudar? —
perguntou Violet desconfiada.
— Não sei — admitiu Hector.
— Mas já estão quase prontos e a minha
receita é deliciosa, modéstia à parte. Venham, vamos comer. Talvez um bom
jantar os ajude a pensar em alguma coisa.
As crianças suspiraram, mas concordaram com a cabeça e
levantaram-se para sentar-se à mesa, e por curioso que possa parecer, um bom
jantar de fato ajudou os Baudelaire a pensar em alguma coisa. Assim que Violet
pôs na boca o seu primeiro bocado de feijão, sentiu as engrenagens e alavancas
do seu cérebro inventivo entrarem em ação. Assim que Klaus mergulhou a sua
tortilha no molho apimentado de tomate, começou a pensar nos livros que tinha
lido que poderiam ser de ajuda. E assim que Sunny lambuzou a cara toda com
gemas de ovos, bateu os seus quatro dentes afiados uns nos outros e tentou
pensar em como eles poderiam ser de ajuda. Quando os Baudelaire já estavam
terminando a refeição que Hector preparara para eles, suas idéias tinham
crescido e evoluído para planos completos, do mesmo modo como a Árvore do
Nunca Mais crescera muito tempo atrás a partir de uma minúscula
semente, e o Chafariz Corvídeo fora construído muito recentemente a partir do
abominável projeto de alguém.
Foi Sunny quem falou primeiro.
— Plano! — disse ela.
— O que é, Sunny? —
perguntou Klaus.
Com um dedinho coberto de molho de tomate, Sunny apontou para a
Árvore do Nunca Mais através da janela, a qual estava recoberta de corvos de
C.S.C., como acontecia todas as manhãs.
— Merganser! — disse ela
com firmeza.
— Minha irmã está dizendo
que amanhã de manhã provavelmente haverá mais um poema de Isadora no mesmo
lugar — explicou Klaus para Hector, — e quer passar a noite embaixo da árvore.
Ela é tão pequena que, seja quem for que está deixando os poemas ali,
provavelmente nem notará a sua presença, e ela será capaz de descobrir como os dísticos
estão chegando até nós.
— E isto deverá nos levar
mais para perto de encontrar os Quagmire — disse Violet.
— É um bom plano, Sunny.
— Minha nossa, Sunny —
disse Hector. — Você não vai ficar com
medo de passar a noite inteira embaixo de todo um bando de corvos?
— Tríler — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’Isto não vai ser mais assustador do que a vez em que eu
escalei um poço de elevador com os dentes’’.
— Acho que também tenho um
bom plano — disse Klaus. — Hector, ontem
você nos contou o segredo da biblioteca que você tem no celeiro.
— Psiu! — disse Hector,
olhando em volta. — Não fale tão alto!
Você sabe que é contra as regras ter todos esses livros, e eu não quero ser
queimado na fogueira.
— Eu não quero que ninguém
seja queimado na fogueira — disse Klaus. — Olha só, a biblioteca secreta contém livros
sobre as regras de C.S.C.?
— Com certeza — disse
Hector. — Aos montes. Como os livros
descrevem pessoas quebrando regras, eles quebram a Regra nº 108, que reza
claramente que a biblioteca de C.S.C. não pode conter livros que quebrem
qualquer uma das regras.
— Bem, vou ler o maior
número de livros de regras que puder — disse Klaus. — Deve haver um jeito de salvar Jacques de ser
queimado na fogueira, e aposto que vou encontrá-lo nas páginas desses livros.
— Minha nossa, Klaus —
disse Hector. — Você não vai ficar
enjoado de tanto ler todos aqueles livros de regras?
— Não mais do que fiquei
quando tive de ler tudo o que havia sobre gramática, a fim de salvar a tia
Josephine — respondeu ele.
— Sunny está trabalhando
para salvar os Quagmire — disse Violet, — e Klaus está trabalhando para salvar
Jacques. Eu tenho de trabalhar para salvar a nós.
— O que você quer dizer? —
perguntou Klaus.
— Bem, acho que o conde
Olaf deve estar por trás de todos esses problemas — disse Violet.
— Grebe! — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’Como de costume!’’.
— Se a cidade de C.S.C.
queimar Jacques na fogueira — continuou Violet, — todos vão pensar que o conde
Olaf está morto. Aposto que O Pundonor Diário vai até publicar uma matéria
afirmando isso. Serão boas-novas para Olaf — o verdadeiro, quero dizer. Se todo
mundo pensar que ele está morto, Olaf poderá cometer as perfídias que bem entender,
e as autoridades não vão sair à sua procura.
— É verdade — disse Klaus. — O conde Olaf deve ter encontrado Jacques —
seja ele quem for — e o trouxe para a cidade. Sabia que a oficial Luciana iria
pensar que ele era Olaf. Mas o que isto tem a ver com nos salvar?
— Bem, se nós salvarmos os
Quagmire e provarmos que Jacques é inocente — disse Violet, — o conde Olaf virá
atrás de nós, e não podemos confiar no Conselho dos Anciãos para nos proteger.
— Poe! — disse Sunny.
— Nem no Sr. Poe —
concordou Violet. — É por isso que
precisamos encontrar um modo de salvar a nós mesmos. — Ela voltou-se para
Hector. — Ontem você também nos contou
sobre a sua casa móvel auto-sustentável a ar quente.
Hector olhou em volta outra vez, para ter certeza de que ninguém
estava ouvindo.
— Sim — disse ele, — mas eu
acho que vou parar de trabalhar nela. Se o Conselho dos Anciãos ficar sabendo
que estou quebrando a Regra nº 67, posso ser queimado na fogueira. De qualquer
modo, não estou conseguindo pôr o motor dela a funcionar.
— Se você não se importa,
eu gostaria de dar uma olhada — disse Violet. — Talvez eu possa ajudar a acabá-la. Você
queria usar a casa móvel auto-sustentável a ar quente para escapar de C.S.C. e
do Conselho dos Anciãos, e de tudo o mais que deixa você desassossegado, mas
ela também poderia ser um excelente veículo de fuga. —
— Talvez sejam as duas
coisas — disse Hector timidamente, e estendeu a mão através da mesa para dar
uma palmadinha no ombro de Sunny. — Aprecio
muito a companhia de vocês três, crianças, e seria delicioso compartilhar uma
casa móvel com vocês. Há espaço à vontade na casa móvel auto-sustentável a ar
quente, e depois que conseguirmos fazê-la funcionar, poderemos lançá-la e nunca
mais descer outra vez. O conde Olaf e os seus parceiros nunca mais conseguiriam
incomodá-los. O que vocês acham? — Os três Baudelaire ouviram atentamente a
sugestão de Hector, mas quando tentaram dizer a ele o que pensavam, sentiram-se
como se estivessem em um dilema tudo de novo. Por um lado, seria emocionante
viver de um modo tão inusitado, e a idéia de estar para sempre a salvo das
garras perversas do conde Olaf era muito convidativa, para dizer o mínimo.
Violet olhou para a sua irmãzinha bebê e pensou na promessa que tinha feito
quando Sunny nasceu, de que iria sempre cuidar dos seus irmãos mais novos e garantir
que não se metessem em dificuldades. Klaus olhou para Hector, que era o único cidadão
naquela cidade sinistra que realmente parecia se preocupar com as crianças, como
deve fazer um tutor. E Sunny olhou para o céu noturno através da janela e lembrou-se
da primeira vez em que ela e seus irmãos viram os corvos de C.S.C. voando em
círculos superlativos e desejou que também eles pudessem escapar de todas as
suas preocupações. Mas por outro lado, os Baudelaire achavam que voar para
longe de todos os seus problemas e viver para sempre lá em cima no céu não
parecia ser um jeito acertado de viver a vida. Sunny era um bebê, Klaus só
tinha doze anos, e até Violet, a mais velha, tinha catorze, o que na verdade
não é tanto assim. Havia muitas coisas que os Baudelaire esperavam conseguir em
terra, e eles não tinham certeza de que poderiam simplesmente abandonar todas
essas esperanças tão cedo em suas vidas. Os Baudelaire sentaram-se à mesa e
pensaram no plano de Hector, e pareceu às crianças que se passassem o resto de
suas vidas flutuando pelos céus, simplesmente não estariam no seu elemento, uma
expressão que aqui significa ‘’no tipo de lar que os três irmãos prefeririam’’.
— Primeiro o mais
importante — disse Violet afinal, esperando não estar ferindo os sentimentos de
Hector. — Antes de tomarmos uma decisão
sobre o resto das nossas vidas, vamos tirar Duncan e Isadora das garras de
Olaf.
— E garantir que Jacques
não seja queimado na fogueira — disse Klaus.
— Albico! — acrescentou
Sunny, o que queria dizer alguma coisa do tipo ‘’E vamos resolver o mistério de
C.S.C., do qual os Quagmire nos falaram!’’.
Hector suspirou.
— Vocês estão certos —
disse ele. — Essas coisas são mais importantes,
mesmo que me deixem desassossegado. Bem, vamos levar Sunny para a árvore e
depois vamos ao celeiro, onde estão a biblioteca e o ateliê de invenções.
Parece que esta vai ser mais uma longa noite, mas espero que desta vez não
estejamos latindo para a árvore errada.
Os Baudelaire sorriram para o factótum e o seguiram para fora no
escuro da noite. Soprava uma brisa suave e o ar estava fresco, repleto de sons
do bando de corvos que se acomodavam para passar a noite. Eles continuaram
sorrindo quando se separaram, Sunny engatinhando para a Árvore do Nunca Mais e
os dois Baudelaire mais velhos seguindo Hector para o celeiro; e eles
continuaram a sorrir quando começaram a pôr cada um dos seus planos em ação.
Violet sorriu porque o ateliê de invenções de Hector era muito bem equipado,
com uma abundância de alicates, e cola, e arame, e tudo o que a sua mente
inventiva precisava, e porque a casa móvel auto-sustentável a ar quente era um
mecanismo enorme e fascinante — exatamente o tipo de invenção desafiadora em
que ela gostava de trabalhar. Klaus sorriu porque a biblioteca de Hector era
muito confortável, com algumas boas mesas robustas e cadeiras estofadas, simplesmente
perfeitas para leitura, e porque os livros sobre as regras de C.S.C. eram bem
grossos e cheios de palavras difíceis — exatamente o tipo de leitura
desafiadora que ele apreciava. E Sunny sorriu porque havia diversos galhos
mortos da Árvore do Nunca Mais que tinham despencado para o chão, portanto ela
teria alguma coisa para roer enquanto aguardava escondida pelo aparecimento do
próximo dístico. As crianças estavam nos seus elementos. Violet estava no seu
elemento no ateliê de invenções, Klaus estava no seu elemento na biblioteca, e
Sunny estava no seu elemento simplesmente por estar no chão e perto de algo que
podia morder. Violet amarrou o cabelo com uma fita para impedir que lhe caísse
nos olhos, Klaus limpou os óculos e Sunny espichou a boca preparando os dentes
para a tarefa que os aguardava, e os três irmãos sorriram mais do que tinham
sorrido desde a sua chegada na cidade. Os órfãos Baudelaire estavam nos seus
elementos, e esperavam que o fato de estarem nos seus elementos os levasse a
encontrar uma saída para o seu dilema.
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