Capítulo 7
O VENTO E A CHUVA RASGAVAM os
céus escuros da Carolina do Norte, jogando verdadeiros rios contra as janelas
da cozinha. Um pouco mais cedo, durante a tarde, enquanto Katie lavava suas
roupas na pia e depois de ter prendido o desenho de Kristen em sua geladeira
com fita adesiva, uma goteira havia começado a pingar do teto de sua sala de
estar. Ela havia colocado uma panela sob a goteira e já a havia esvaziado duas
vezes. Quando a manhã chegasse, ela pensava em ligar para Benson, mas duvidava
que ele viria reparar o vazamento imediatamente, se é que ele algum dia viria
arrumar o problema, claro.
Na cozinha, ela cortou um pedaço de queijo cheddar em
pequenos cubos, mordiscando alguns deles enquanto trabalhava. Em um prato de
plástico amarelo havia alguns biscoitos e fatias de to- mates e pepinos, embora
ela não tivesse conseguido arrumá-los do jeito que havia imaginado. Nada que
ela fizesse ficava do jeito que imaginava. Na casa em que ela morava antes de vir
a Southport, ela tinha uma bela tábua de frios e uma faca de prata para queijos
com um cardeal entalhado, além de um conjunto completo de taças de
vinho. Tinha também uma
mesa de jantar feita de cerejeira e cortinas de renda nas janelas; porém, aqui,
nesta casa, sua mesa era bamba e as cadeiras eram diferentes umas das outras.
Além disso, ela e Jo teriam que beber o vinho em xícaras de café. Por mais
horrível que sua outra vida fosse, ela gostava de organizar as peças que
compunham seu lar. Entretanto, como tudo o que havia deixado para trás, ela
agora via aqueles objetos como um grupo de inimigos que haviam passado para o
lado dos seus antagonistas.
Pela janela, viu uma das luzes da casa de Jo se
apagar. Katie foi até a porta da frente. Ao abrir, ela observou Jo andando por
entre as poças a caminho da varanda, com um guarda-chuva em uma mão e uma
garrafa de vinho na outra. Com mais duas passadas, ela havia chegado ao
alpendre e sua capa de chuva amarela estava toda encharcada.
— Acho que agora eu entendo como Noé se sentia. Dá
para acreditar numa tempestade assim? Minha cozinha está cheia de poças
d’água.
Katie apontou para a casa, por cima do ombro.
— Minha
goteira está na sala.
— Lar, doce lar, não é mesmo? Aqui está — disse ela,
entregando a garrafa de vinho. — Conforme o prometido. Pode acreditar em mim,
estou precisando muito.
— Teve um dia difícil?
— Você nem imagina o quanto.
— Entre.
— Deixe eu pendurar minha
capa aqui fora, ou você vai ter duas poças na sua sala de estar — disse ela, se
desvencilhando do impermeável amarelo. — Mesmo morando na casa ao lado,
fiquei toda ensopada.
Jo largou a capa e o guarda-chuva sobre a cadeira de
balanço e entrou na casa logo depois de Katie. As duas foram juntas até a
cozinha.
Katie deixou a garrafa de vinho sobre o balcão.
Enquanto Jo observava o que havia na mesa, Katie abriu a gaveta ao lado da
geladeira e tirou um canivete suíço enferrujado, levantando a lâmina do
saca-rolhas.
— Esse aperitivo parece estar delicioso. Estou
faminta, não comi nada o dia inteiro.
— Sirva-se, fique à vontade. Conseguiu terminar a
pintura?
— Bem, eu consegui terminar a sala. Mas não fiz muito
mais do que isso e o dia não foi dos melhores.
— O que houve?
— Eu te conto depois. Primeiro, preciso do vinho. E
você? O que fez de bom?
— Nada de mais. Fui até a loja de conveniência, limpei
a casa, lavei roupa.
Jo se acomodou à mesa e pegou um dos biscoitos. — Em
outras palavras, material para o seu livro de memórias.
Katie riu enquanto
começava a torcer o saca-rolhas. — Ah, é claro. Experiências incríveis.
— Quer ajuda com a rolha? — perguntou Jo.
— Acho que consegui.
— Ótimo — disse Jo, com um sorriso torto. — Porque eu
sou a visita e espero ser bem tratada.
Katie encaixou a garrafa entre as pernas e a rolha saiu
com um som agudo.
— Mas, falando sério agora, obrigada por me receber —
suspirou Jo. — Você não faz ideia do quanto eu estava esperando por este
momento.
— É mesmo?
— Não faça isso.
— Não faça o quê? — perguntou Katie.
— Não finja que está surpresa por eu ter vindo até
aqui. Ou por eu querer reforçar nossa amizade com uma garrafa de vinho. Amigos
são para essas coisas — disse ela, levantando uma sobrancelha. — Ah, e já que
tocamos no assunto, antes que você comece a se perguntar se somos realmente amigas
e o quanto realmente conhecemos uma sobre a outra, confie em mim quando eu digo
que considero você uma amiga. De maneira sincera e absoluta.
Ela deixou que aquelas palavras causassem seu efeito
antes de prosseguir.
— Bem, que tal um pouco de vinho agora?
***
A TEMPESTADE FINALMENTE perdeu
força no começo da noite, e Katie abriu a janela da cozinha. A temperatura
havia despencado e o ar estava frio e límpido. Enquanto um pouco de neblina
estava se formando e cobrindo o chão, as nuvens carregadas passavam em frente à
lua, trazendo porções iguais de luz e sombra. As folhas assumiam uma
coloração prateada, depois negra e, por fim, prateada novamente ao reluzirem na
brisa noturna.
Katie se distraiu e se deixou devanear em meio ao
vinho, à brisa e ao riso fácil de Jo. Ela percebeu que estava saboreando cada
mordida que dava nos biscoitos amanteigados e no queijo de gosto forte e
pungente, lembrando-se de uma época em que havia passado fome. Houve um tempo
em que ela fora magra como um ramo de roseira.
Suas lembranças estavam aflorando. Ela se lembrou de
seus pais. Não dos tempos difíceis, mas das épocas boas, quando sua mãe fazia
ovos com bacon e o aroma preenchia a casa, e ela via seu pai andar de
mansinho pela cozinha e se aproximar da esposa. Ele afastava os cabelos dela e
lhe beijava o pescoço, fazendo com que ela risse. Katie se lembrou que, certa
vez, seu pai as levara a Gettysburg. Ele havia pegado em sua mão enquanto eles
caminhavam pelo lugar e ela ainda conseguia se lembrar da rara sensação de força
e gentileza no toque dele. Seu pai era alto e tinha ombros largos, com cabelos
castanho-escuros. E tinha também uma tatuagem da marinha no braço. Ele havia
servido em um navio de guerra durante quatro anos, viajando para lugares como o
Japão, Coreia e Cingapura, embora não falasse muito sobre seu tempo nas forças
armadas.
Já sua mãe era pequena, loira e havia participado de
um concurso de beleza certa vez, terminando em terceiro lugar. Ela adorava
flores e sempre plantava bulbos em vasos de cerâmica que eram
colocados na frente de
casa durante a primavera. Tulipas, narcisos, begônias e violetas, todas aquelas
flores explodiam em cores tão vivas que quase faziam os olhos de Katie doer.
Quando eles se mudavam, os vasos eram colocados no banco de trás do carro e
presos com os cintos de segurança. Frequentemente, quando limpava a casa, sua
mãe cantarolava consigo mesma, entoando melodias de sua infância. Algumas eram
canções polonesas e Katie se escondia em algum outro cômodo para escutá-las,
tentando entender as palavras.
O vinho que Jo e Katie estavam bebendo tinha toques de
carvalho e damasco e o sabor era delicioso. Katie terminou de tomar seu copo e
Jo lhe serviu outro. Quando uma mariposa começou a dançar ao redor da lâmpada,
batendo as asas de maneira vigorosa e confusa, as duas começaram a rir. Katie
cortou mais cubos de queijo e colocou mais biscoitos no prato. Elas conversaram
sobre filmes e livros, e Jo soltou um gritinho de prazer quando Katie disse que
seu filme favorito era A felicidade não se compra3, dizendo que aquele
também era seu filme favorito. Quando era pequena, Katie se lembrava de pedir à
sua mãe para comprar uma sineta, de modo que pudesse ajudar os anjos a
conseguirem suas asas. Katie terminou de tomar seu segundo copo de vinho,
sentindo-se leve como uma pena em uma brisa de verão.
Jo fez poucas perguntas. Em vez disso, as duas
mantiveram a conversa em assuntos superficiais, e Katie voltou a se sentir
feliz com a companhia de Jo. Quando o luar prateado iluminou o mundo para além
da janela, as duas foram até a varanda. Katie percebeu que estava cambaleando
levemente e se segurou no corrimão. Elas degustavam o vinho enquanto as
nuvens continuavam a se abrir e, de repente, o céu estava pontilhado de
estrelas. Katie apontou para a constelação da Ursa Maior e para a estrela
polar, as únicas cujo nome sabia, mas Jo começou a identificar dezenas de
outras. Katie olhou
fixamente para o céu,
maravilhada, encantada com o conhecimento que a amiga tinha sobre as
constelações, até que percebeu quais eram os nomes que Jo estava recitando.
— Aquela ali é chamada de Hortelino e, do outro lado,
logo acima daquele pinheiro, dá para ver a constelação do Patolino.
Quando Katie finalmente se deu conta de que Jo
conhecia tanto sobre constelações quanto ela mesma, Jo começou a rir como uma
criança travessa.
De volta à cozinha, Katie se serviu do que restava do
vinho e tomou um gole. O líquido desceu quente pela garganta dela, o que a fez
sentir-se um pouco zonza. A mariposa continuava a voar ao redor da lâmpada,
embora, quando ela tentava focar o olhar, parecesse haver duas delas ali. Katie
se sentia feliz e segura e pensou novamente no quanto aquela noite estava
agradável.
Ela tinha uma amiga, uma amiga de verdade, alguém que
ria e fazia piadas com as estrelas, e não tinha certeza se queria rir ou chorar por causa daquilo. Fazia muito tempo que não vivia nada tão tranquilo e
natural.
— Você está bem? — perguntou Jo.
— Estou ótima — respondeu Katie. — Estava só
pensando... Fiquei muito feliz por você ter vindo.
Jo a olhou com mais atenção.
— Acho que você exagerou
um pouco no vinho.
— E eu acho que você tem razão — concordou Katie.
— Então está bem. O que
você quer fazer? Já que obviamente está um pouco bêbada e pronta para se
divertir.
— Não sei do que você está falando.
— Você quer fazer algo especial? Ir até a cidade,
encontrar algum lugar legal para se divertir?
Katie balançou a cabeça.
— Não.
— Você não quer conhecer novas pessoas?
— Estou melhor sozinha.
Jo deslizou a ponta do dedo pela borda do copo antes
de dizer algo.
— Bem, pode confiar no que eu digo: ninguém realmente está
melhor quando está sozinho.
— Eu estou.
Jo pensou na resposta de Katie antes de se inclinar em
direção a ela.
— Quer dizer então que, se presumirmos que você tenha comida,
uma casa, roupas e tudo o mais que precisa para simplesmente sobreviver, você
preferiria ficar isolada em uma ilha deserta no meio do nada, totalmente
sozinha, para sempre, pelo resto da vida? Seja honesta.
Katie piscou, tentando focar os olhos em Jo. — Por que
você acha que eu não responderia honestamente?
— Porque todo mundo mente. É necessário para viver em
sociedade. Não me entenda mal, eu creio realmente que é necessário. A última
coisa que uma pessoa pode querer é viver em uma sociedade onde a honestidade
irrestrita seja a regra. Consegue imaginar uma conversa desse tipo? “Você
é gorda e baixa”, diria uma pessoa, e a outra poderia responder: “Eu sei. E
você cheira mal”. As coisas não iriam funcionar. As pessoas mentem por omissão,
e isso acontece o tempo todo. As pessoas sempre contam a maior parte da
história... E eu aprendi que a parte que elas deixam de contar é sempre a mais
importante. As pessoas escondem a verdade porque têm medo.
Com as palavras de Jo, Katie sentiu um dedo tocar seu
coração. De repente, até mesmo respirar ficou difícil.
— Está falando sobre mim? — perguntou ela, com a voz
estrangulada.
— Não sei. Estou?
Katie sentiu-se empalidecer, mas, antes que pudesse
responder, Jo abriu um sorriso.
— Na verdade, estava falando sobre o dia que tive
hoje. Eu disse que foi um dia complicado, não foi? Bem, o que acabei de lhe
dizer é parte do problema. É frustrante quando as pessoas se recusam a contar
a verdade. Afinal, como é que eu posso ajudá-las se elas insistem em esconder
certas coisas? Se eu não consigo entender realmente o que se passa?
Katie sentiu algo se contorcendo e se estrangulando
dentro do seu peito.
— Talvez elas queiram falar a respeito, mas sabem que não
há nada que você possa fazer para ajudá-las — sussurrou ela.
— Sempre há algo que eu possa fazer.
Sob a luz do luar que entrava pela janela da cozinha,
a pele de Jo pareceu reluzir num tom branco, e Katie teve a sensação de que ela
não era o tipo de pessoa que costumava se expor ao sol. O vinho fazia a cozinha girar e as
paredes se moviam. Katie sentia as lágrimas começando a se formar em seus olhos
e tudo o que ela pôde fazer foi piscar para contê-las. Sua boca estava seca.
— Nem sempre — sussurrou Katie. Ela virou o rosto em
direção à janela. Do lado de fora, a lua pairava por sobre as árvores. Katie
engoliu em seco, sentindo-se como se estivesse observando a si mesma, do
outro lado da cozinha. Ela conseguia se ver sentada à mesa com Jo, e, quando
começou a falar, a voz que ela ouviu não parecia realmente ser a sua.
— Eu tinha uma amiga. O casamento dela era horrível, e
ela não conseguia falar com ninguém. Ele costumava bater nela, ela lhe disse
que se aquilo voltasse a acontecer, ela o deixaria. Ele jurou que nunca mais
faria aquilo e ela acreditou nele. Mas as coisas pioraram muito depois daquilo.
Por exemplo, quando o jantar dele estava frio ou quando ela dizia ter
conversado com um dos vizinhos que estava passeando com seu cachorro. Ela só
tinha conversado com o rapaz, mas, naquela noite, seu marido a empurrou em cima
de um espelho.
Katie olhou para o chão. O linóleo estava se
desprendendo do chão nos cantos da cozinha, mas ela não sabia como consertar
aquilo. Ela havia tentado colá-lo, mas não teve sucesso. Os cantos haviam
voltado a se enrolar.
— Ele sempre se desculpava e às vezes chegava até
mesmo a chorar por causa dos hematomas que havia causado nos braços, nas pernas
ou nas costas dela. Ele dizia que odiava ter feito aquilo, mas, no momento
seguinte, dizia-lhe que ela havia merecido tudo o que acontecera. Que, se ela
fosse mais cuidadosa, nada daquilo teria acontecido. Que, se ela prestasse
atenção no que fazia, ou se não fosse tão imbecil, ele não teria perdido a
paciência. Ela tentou
mudar. Ela se esforçou
para tentar ser uma esposa melhor e fazer as coisas do jeito que ele queria.
Mas nada era o bastante, nunca.
Katie sentia a pressão das lágrimas por trás dos olhos
e, embora tentasse novamente contê-las, ela as sentia rolando pela face. Jo estava imóvel do outro lado da mesa, observando-a.
— E como ela o amava! No começo, ele era muito
carinhoso com ela. Fazia com que ela se sentisse segura. Na noite em que eles
se conheceram ela estava trabalhando. Quando terminou seu turno, dois homens a
seguiram. Quando ela virou a esquina, um deles a agarrou e lhe cobriu a boca
com a mão. Por mais que ela tentasse se desvencilhar, os homens eram muito mais
fortes e ela não sabia o que iria lhe acontecer, mas seu futuro marido estava
vindo logo atrás e acertou um dos agressores na nuca e ele caiu no chão. E
depois ele agarrou o outro e o jogou contra a parede. Tudo estava acabado. Ele
a ajudou a se levantar e a levou para casa. No dia seguinte, ele a levou para
tomar café. Ele era gentil e a tratava como uma princesa, até que saíram em lua
de mel.
Katie sabia que não deveria contar nada daquilo para
Jo, mas não conseguia evitar.
— Minha amiga tentou escapar duas vezes. Uma vez
ela acabou voltando para casa, porque não tinha nenhum outro lugar para onde
pudesse ir. E na segunda vez que ela fugiu, realmente pensou que estivesse
livre. Mas seu marido a procurou por toda parte e a arrastou de volta para
casa. Lá, ele a espancou e encostou um revólver na cabeça dela, dizendo que,
se ela fugisse mais uma vez, a mataria. Ele mataria qualquer homem de que ela
gostasse. E ela acreditou nele, porque, àquela altura, já sabia que se tratava
de um louco. Mas ela estava presa. Ele nunca dava qualquer dinheiro a ela,
nunca permitia que saísse de casa. Ele passava de carro em frente à casa onde
moravam durante seu horário de trabalho apenas para se certificar de que ela
estava lá. Ele monitorava os registros das lig- ações telefônicas e ligava para
ela a todo momento. E não permitia que tirasse uma carteira de motorista. Certa
vez, quando acordou no meio da noite, minha amiga percebeu que ele estava em pé
ao lado da cama, olhando fixamente para ela. Ele estava bebendo e com o re-
vólver na mão de novo. Ela estava amedrontada demais para dizer qualquer coisa
além de lhe pedir que viesse para a cama. Mas foi naquele momento que ela
percebeu que, se ficasse ali, seu marido certamente a mataria.
Katie enxugou os olhos, seus dedos estavam úmidos com
as lágrimas. Ela mal conseguia respirar, mas as palavras continuavam a
transbordar.
— Minha amiga começou a roubar dinheiro da carteira dele. Nunca
mais do que um dólar ou dois, porque, de outra forma, ele acabaria percebendo.
Normalmente ele deixava sua carteira em uma gaveta trancada à chave durante a
noite, mas em algumas ocasiões ele se esquecia de fazer aquilo. Demorou muito
para ela conseguir juntar todo o dinheiro de que precisava para escapar.
Porque era aquilo que precisava fazer. Fugir. Ela tinha que ir para algum lugar
onde ele nunca a encontrasse, porque sabia que seu marido nunca desistiria de
procurar por ela. E ela não podia contar nada a ninguém, porque não tinha mais
família e a polícia não faria nada. Se ele suspeitasse de qualquer coisa,
certamente a mataria. Assim, ela roubou e guardou o pouco dinheiro que podia e
encontrou moedas entre as almofadas do sofá e na máquina de lavar roupas. Ela escondeu o dinheiro em um saco plástico que ficava embaixo de um vaso de flores, mas
sempre que ele saía de casa, a esposa tinha certeza de que ele acabaria
encontrando o dinheiro. Ela demorou muito tempo para juntar a quantia de que
precisava, porque queria ir para algum lugar bem distante, um lugar onde ele
nunca conseguiria encontrá-la. Para que pudesse recomeçar sua vida.
Katie não havia percebido
o momento em que aquilo havia acontecido, mas Jo estava segurando sua mão. E
ela não tinha mais a sensação de se observar do outro lado da cozinha. Ela
sentia o sal das lágrimas em seus lábios e imaginava que sua alma estava
escorrendo para fora do corpo. Katie queria dormir, desesperadamente.
No silêncio, Jo continuou a olhar nos olhos dela.
—
Sua amiga tem muita coragem — disse ela, em voz baixa.
— Não. Minha amiga passa o tempo todo com medo.
— Ter coragem é exatamente isso. Se não fosse assim,
ela não precisaria de coragem para suplantar o medo que sente. Eu admiro o que
ela fez — disse Jo, dando um leve aperto em sua mão. — E acho que eu iria
gostar muito dessa sua amiga. Fico feliz por você ter me contado sobre ela.
Katie desviou o olhar, sentindo-se completamente
exausta e drenada.
— Acho que não devia ter contado tudo isso.
Jo deu de ombros.
— Não me preocuparia tanto. Uma
coisa que você vai aprender a meu respeito é que sou muito boa quando preciso
guardar segredos. Especialmente segredos de pessoas que não conheço, sabe?
Katie fez que sim com a cabeça.
— Sei.
***
JO FICOU COM KATIE por mais uma hora, mas
guiou a conversa para tópicos menos dolorosos. Katie falou sobre seu trabalho
no Ivan’s e sobre alguns clientes que ela estava começando a conhecer. Jo perguntou sobre a melhor maneira de tirar a camada de tinta que ficava debaixo das
unhas depois de pintar as paredes. Sem mais vinho para
beber, a tontura que Katie
sentia começou a desaparecer, deixando apenas o cansaço. Jo também começou a
bocejar e elas finalmente se levantaram da mesa. Jo ajudou Katie a limpar e
organizar a cozinha, embora não houvesse muito a fazer além de lavar dois
pratos. Katie a acompanhou até a porta.
Quando Jo saiu para a varanda, ela parou. — Acho que
tivemos visitas — disse ela.
— Do que você está falando?
— Há uma bicicleta ao lado da sua árvore.
Katie a seguiu para fora da casa. Apesar do brilho
amarelado da luz da varanda, o mundo estava escuro e os contornos dos pinheiros
ao longe faziam com que Katie se lembrasse da borda irregular de um buraco
negro. Vaga-lumes imitavam as estrelas, piscando e brilhando, e Katie apertou
os olhos para enxergar, percebendo que Jo tinha razão.
— De quem será essa bicicleta? — perguntou Katie.
— Não sei.
— Você ouviu alguém chegando?
— Não. Mas acho que alguém a deixou para você. Está
vendo? Aquilo ao redor do guidão não é um laço de fita?
Katie se inclinou para frente, percebendo o laçarote.
Uma bicicleta feminina. Tinha uma cestinha de metal de cada lado da roda
traseira e outra instalada em frente ao guidão. Havia também uma corrente
enrolada ao redor do selim, com a chave no cadeado.
— Quem me daria uma
bicicleta?
— Por que você fica me fazendo essas perguntas? Não
faço a menor ideia do que está acontecendo.
Katie e Jo desceram as escadas para a rua. Embora a
maior parte das poças já tivesse secado depois que o solo arenoso absorveu a
água, o gramado ainda estava bem úmido por causa da chuva, encharcando as
pontas dos sapatos de Katie enquanto ela atravessava o jardim. Ela tocou na
bicicleta e depois no laço de fita, deslizando seus dedos por ele como um
vendedor de tapetes faria. Havia um cartão sob o laço e Katie o apanhou.
— Foi Alex — disse ela, com espanto na voz.
— Alex da loja de conveniência? Ou outro Alex?
— O cara da loja.
— O que diz o cartão?
Katie balançou a cabeça, tentando compreender as
palavras antes de estendê-lo para que Jo o lesse. Imaginei que você gostaria
dela.
Jo tocou o cartão com os dedos.
— Acho que isso
significa que ele está tão interessado em você como você está interessada nele.
— Não estou interessada nele!
—
É claro que não — disse Jo, piscando o olho. — Por que estaria?
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