Capítulo 8
Os órfãos Baudelaire cruzaram o portão da Serraria Alto-Astral e
olharam para a ambulância que passou por eles na maior velocidade levando Phil
para o hospital. Olharam para as letras de chiclete mascado que compunham a
placa da serraria. E baixaram os olhos para o calçamento rachado da rua de
Paltry ville. Em suma, olharam para toda parte, menos para a casa em forma de
olho.
— Não precisamos ir — disse
Violet. — Poderíamos fugir. Poderíamos
nos esconder até a chegada do próximo trem, e seguir nele o mais longe
possível. Agora sabemos como trabalhar numa serraria, poderíamos arranjar
serviço em alguma outra cidade.
— Mas e se ele nos
descobrisse? — disse Klaus, fixando na irmã seus olhos semicerrados. — Quem nos protegeria do conde Olaf, se
estivéssemos sozinhos?
— Poderíamos nos proteger
sozinhos — respondeu Violet.
— Como podemos nos proteger
— perguntou Klaus, — se um de nós é um
bebê e outro mal consegue ver?
— Nós já nos protegemos
antes — disse Violet.
— Sempre por um triz, mal e
porcamente — respondeu Klaus. — Toda vez
foi por um triz que escapamos do conde Olaf. Não dá para fugirmos e tentarmos
nos virar sozinhos; estou sem meus óculos. Temos de torcer para que dê certo. —
Sunny deixou escapar um gritinho
estridente de medo. Violet, é claro, já tinha idade bastante para não gritar
estridentemente a não ser em situações de emergência, mas ainda não tinha tanta
idade assim para não se sentir amedrontada.
— Não sabemos o vai
acontecer conosco lá dentro — disse ela, olhando para a porta preta na pupila
do olho.
— Pense, Klaus. Tente
pensar. O que foi que aconteceu quando você entrou lá?
— Não sei — disse Klaus na
maior tristeza. — Lembro de ter tentado
falar com Charles para não me levar ao oftalmologista, mas ele ficava repetindo
que os médicos eram meus amigos, e que eu não deveria ter medo.
— Ah! — gritou
estridentemente Sunny , o que significava: ‘’Ah!’’.
— E depois, do que você se
lembra? — perguntou Violet. Klaus fechou os olhos para concentrar-se. — Gostaria de conseguir dizer. Porém é como se
uma parte do meu cérebro tivesse sido apagada sem deixar vestígios. E como se
eu tivesse adormecido desde o momento em que entrei naquela casa até já estar
na serraria.
— Mas você não estava
dormindo — disse Violet. — Estava
andando de um lado para o outro como se fosse um zumbi. Até causar aquele
acidente que machucou o coitado do Phil.
— Mas não me lembro dessas
coisas — disse Klaus. — E como se... — Sua voz deixou a frase em suspenso, e por um
momento ele ficou olhando perdidamente para o vazio.
— Sim, Klaus? — perguntou
Violet, preocupada.
— ... como se eu estivesse
hipnotizado — Klaus concluiu. Olhou para Violet, depois para Sunny , e suas
irmãs perceberam que ele estava descobrindo algo. — Claro. A hipnose explicaria tudo.
— Eu pensei que hipnose só
existisse em filmes de terror — disse Violet.
— Nada disso — respondeu
Klaus. — Estive lendo a Enciclopédia de
hipnose no ano passado. Li a descrição de todos os casos famosos de hipnose ao
longo da história. Houve um rei do Egito antigo que foi hipnotizado. Bastava o
hipnotizador gritar 'Ramsés!' e o rei na mesma hora começava a cacarejar e
imitar uma galinha, apesar de estar diante da corte real.
— É interessante, não resta
dúvida — disse Violet, — mas...
— Um comerciante chinês que
viveu durante a dinastia Ling foi hipnotizado. Bastava o hipnotizador gritar
'Mao!' e o comerciante começava a tocar violino, apesar de nunca ter visto o
instrumento antes.
— São histórias curiosas —
disse Violet, — mas...
— Um homem que viveu na Inglaterra
na década de 20 foi hipnotizado. Bastou o hipnotizador gritar 'Bloomsbury !' e
ele na mesma hora se tornou um brilhante escritor, apesar de mal saber ler.
— Mazê! — gritou
estridentemente Sunny , talvez com o sentido de: ‘’Não temos tempo para ouvir
todas essas histórias, Klaus!’’.
Klaus abriu um sorriso.
— Desculpem — disse, — era
um livro muito interessante, e que vem tão a propósito.
— Bem, e o que o livro
dizia sobre como tirar a pessoa da hipnose? — perguntou Violet.
O sorriso de Klaus se apagou.
— Nada — disse ele.
— Nada? — repetiu Violet. — Uma enciclopédia inteira sobre hipnose não
dizia nada sobre isso?
— Se dizia, deve ter sido
em alguma parte que não li. Achei mais interessantes as partes sobre casos
famosos. Essas eu li, mas pulei algumas das partes chatas. — Pela primeira vez depois de terem deixado
para trás o portão da serraria, os órfãos Baudelaire olharam para a casa em
forma de olho; tinham a impressão de que a casa lhes retribuía o olhar. Para
Klaus, naturalmente, a mensagem que o consultório poderia transmitir não
passava de um grande borrão, contudo para suas irmãs aquela imagem criava a
expectativa de novos problemas. A porta redonda, pintada de preto para parecer
a pupila do olho, parecia ser um buraco sem fim; as crianças tinham a impressão
de que iam cair nele.
— Nunca mais tornarei a
pular as partes chatas de um livro — lamentou Klaus, e foi andando de modo
cauteloso em direção à casa.
— Imagino que você não
esteja pretendendo entrar!? — disse Violet incredulamente, palavra que aqui
significa ‘’num tom de voz que indicava que Klaus estava agindo como um tolo’’.
— O que mais podemos fazer?
— disse Klaus, resignado. E começou a tatear as paredes da casa para localizar
a porta. A esta altura da história dos órfãos Baudelaire, gostaria de fazer uma
breve interrupção para responder a uma pergunta que vocês com toda a certeza
devem estar se fazendo. É uma pergunta importante, que muitas e muitas pessoas
já fizeram muitas e muitas vezes em muitos lugares do mundo. Os órfãos
Baudelaire fizeram a pergunta, é claro. O Sr. Poe fez a pergunta. Eu fiz a
pergunta. Minha amada Beatrice, antes de sua morte prematura, fez a pergunta,
só que tarde demais. A pergunta é: Onde está o conde Olaf?
Se vocês vêm seguindo a história desses três órfãos desde o
comecinho, sabem que o conde Olaf está sempre à espreita dessas pobres
crianças, com planos e estratagemas para apossar-se da fortuna dos Baudelaire
pais. Em geral, passados alguns dias da chegada a um novo lar, o conde Olaf e
seus nefandos ajudantes — aqui a palavra
‘’nefandos’’ significa ‘’que detestam os Baudelaire’’ — aparecem por
perto, dissimulados, tramando perversidades. E, no entanto, até aqui não houve
sinal dele em parte alguma. De modo que, enquanto os três órfãos se dirigem relutantemente
para o consultório, sei que vocês devem estar se perguntando por onde andará
esse desprezível vilão. A resposta é: Muito perto.
Violet e Sunny caminharam até a casa em forma de olho e ajudaram o
irmão a subir os degraus em frente à porta, mas, antes que chegassem a abri-la,
a pupila preta escancarou-se revelando uma pessoa com um longo jaleco branco
com um crachá de identificação preso à lapela: ‘’Dra. Orwell’’. Doutora!
A Dra. Orwell era uma mulher alta de cabelos louros presos atrás
num coque bem justo. Calçava grandes botas negras e segurava uma longa bengala
negra com um castão de rubi rutilante.
— Olá, Klaus — disse a Dra.
Orwell, com um cumprimento formal de cabeça para os Baudelaire. — Não esperava tê-lo de volta tão cedo. Não me
diga que quebrou seus óculos de novo.
— Infelizmente, sim — disse
Klaus.
— Lamento — disse a Dra.
Orwell. — Mas até que você está com
sorte. Temos poucas consultas marcadas para hoje, por isso você pode entrar já;
farei os exames necessários. — Os órfãos Baudelaire se entreolharam, nervosos.
Não era nada do que estavam esperando. Imaginaram a Dra. Orwell
como uma figura bem mais sinistra — um conde Olaf disfarçado de Dr. Orwell, por
exemplo, ou um de seus terríveis asseclas. Esperavam ser capturados para dentro
da casa em forma de olho e talvez nunca mais voltar. Em vez disso, a Dra.
Orwell parecia realmente profissional, e os convidava gentilmente a entrar.
— Entrem — disse ela,
mostrando o caminho com sua bengala negra. — Shirley , minha recepcionista, preparou
alguns biscoitinhos que vocês, meninas, podem comer na sala de espera enquanto
faço os óculos de Klaus. Não vai demorar tanto quanto ontem.
— Klaus vai ser
hipnotizado? — perguntou Violet.
— Hipnotizado? — repetiu a Dra.
Orwell, sorrindo. — Ora, hipnose só
acontece em filmes de terror.
As crianças, é claro, sabiam que isso não era verdade, mas
imaginaram que, se a Dra. Orwell achava que era verdade, era mais provável que
não fosse uma hipnotizadora. Adentraram com cuidado na casa em forma de olho e
seguiram a Dra. Orwell por um corredor todo decorado com diplomas médicos.
— Por aqui, por favor — disse
ela. — Klaus me contou que gosta muito
de ler. Vocês também são grandes leitoras?
— Ah, sim — disse Violet.
Ela estava começando a relaxar. — Sempre
que surge uma ocasião, aproveitamos para ler.
— Em suas leituras vocês já
encontraram alguma vez — disse a Dra. Orwell, — a expressão: 'Não é com vinagre
que se apanham as moscas, as moscas se apanham com mel'?
— Tuzmo — respondeu Sunny ,
o que significava: ‘’Não acredito nisso’’, ou algo do gênero.
— Não li muitos livros
sobre moscas — admitiu Violet.
— Bem, na verdade, a
expressão não tem nada a ver com moscas — explicou a Dra. Orwell. — É uma forma elegante de dizer que é mais
provável a pessoa conseguir o que quer agindo com doçura, como a do mel, do que
com acidez, como a do vinagre.
— É interessante — disse
Klaus, pensando que razões a Dra. Orwell teria para trazer à conversa aquele
provérbio.
— Imagino que vocês estejam
pensando por que foi que puxei esse assunto — disse a Dra. Orwell, parando em
frente a uma porta com a inscrição: ‘’Sala de Espera’’.
— Mas acho que ficará claro
para vocês em poucos instantes. Klaus, por favor, venha comigo para o
consultório, e vocês, meninas, passem à sala de espera do outro lado desta
porta. — As crianças hesitaram.
— Serão só alguns
minutinhos — disse a Dra. Orwell, e acariciou a cabeça de Sunny.
— Está bom — disse Violet,
e fez um aceno para o irmão quando ele seguiu a oftalmologista até o fundo do corredor.
Violet e Sunny empurraram a porta e entraram na sala de espera, verificando
logo que a Dra. Orwell falara a verdade.
Na mesma hora tudo passou a fazer sentido. A sala de espera era
pequena, e era parecida com a maioria das salas de espera. Tinha um sofá, umas
poucas cadeiras, umas revistas antigas amontoadas sobre uma mesa, e uma recepcionista
sentada diante de uma escrivaninha, exatamente como nas salas de espera em que
vocês ou eu já estivemos. Mas quando Violet e Sunny olharam para a recepcionista,
viram algo que eu espero que vocês jamais tenham visto numa sala de espera.
Numa placa sobre a escrivaninha estava escrito
— Shirley — porém não havia nenhuma Shirley ali, apesar
de a recepcionista estar usando um vestido marrom-claro e sapatos bege
confortáveis para trabalhar.
Porque, acima do batom claro e abaixo da peruca loura, havia um
par de olhos muito, mas muito brilhantes que as duas meninas reconheceram de
imediato. A Dra. Orwell, ao comportar-se com tanta delicadeza e finura, tinha
sido o mel, em lugar do vinagre. As crianças, infelizmente, eram as moscas. E o
conde Olaf, sentado na escrivaninha da recepcionista com um sorriso malvado,
conseguira enfim apanhá-las.
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