Capítulo 8
A manhã seguinte começou com uma aurora prolongada e colorida, que
Sunny viu do seu esconderijo embaixo da Arvore do Nunca Mais. Ela continuou com
os sons dos corvos que despertavam, que Klaus ouviu de dentro da biblioteca no
celeiro, e prosseguiu com a visão dos pássaros fazendo o seu familiar círculo
no céu, que Violet viu bem no momento em que estava saindo do ateliê de
invenções. Quando Klaus juntou-se à irmã do lado de fora do celeiro e Sunny
engatinhou pela paisagem achatada para chegar até eles, os pássaros já tinham
parado de circular e estavam voando juntos para a cidade alta.
A manhã estava tão linda e tranqüila que, ao descrevê-la, quase
consigo me esquecer de que aquela era uma manhã muito, muito triste para mim,
uma manhã que eu gostaria de riscar para sempre do calendário Snicket. Mas não
posso apagar esse dia, assim como não sou capaz de escrever um final feliz para
este livro, pela simples razão de que a história não acontece assim. Não
importa o quanto era adorável a manhã, ou o quanto os Baudelaire estavam
confiantes com o que já tinham descoberto no decorrer da noite, no horizonte
desta história não há um final feliz, assim como não havia um elefante no horizonte
de C.S.C.
— Bom dia — Violet disse a
Klaus, e bocejou.
— Bom dia — Klaus
respondeu. Ele estava segurando dois livros nos braços, mas mesmo assim
conseguiu acenar para Sunny, que ainda estava engatinhando na direção deles. — Como foram as coisas com Hector no ateliê de
invenções?
— Bem, Hector caiu no sono
algumas horas atrás — disse Violet, — mas eu descobri algumas pequenas falhas
na casa móvel auto-sustentável a ar quente. A condutividade do motor era baixa,
devido a alguns problemas com o gerador eletromagnético que Hector construiu.
Isto significa que a taxa de inflação dos balões freqüentemente se tornava irregular,
e, assim sendo, reconfigurei alguns condutos-chave. Também o sistema de circulação
de água estava operando com tubulações inadequadas, o que significa que o aspecto
auto-sustentável da central de alimentação provavelmente não iria durar tanto quanto
deveria, daí redirecionei uma parte da ciclagem áquea.
— Dia! — exclamou Sunny ao
aproximar-se dos irmãos.
— Bom dia, Sunny — disse
Klaus. — Violet estava justo me contando
que notou algumas coisas erradas com a invenção de Hector, mas acha que
conseguiu consertar.
— Bem, eu gostaria de
testar o dispositivo inteiro antes de subirmos nele, se houver tempo — disse
Violet erguendo Sunny do chão e segurando-a nos braços, — mas acho que tudo
deverá funcionar razoavelmente bem. É uma invenção fantástica. Um pequeno grupo
de pessoas poderia realmente passar o resto da vida em segurança no ar. Você
descobriu alguma coisa na biblioteca?
— Bem, primeiro eu descobri
que os livros sobre as regras de C.S.C. são na verdade muito fascinantes —
disse Klaus. — A Regra nº 19, por
exemplo, reza claramente que as únicas canetas aceitáveis dentro dos limites da
cidade são as feitas de penas de corvo. E, no entanto, a Regra nº 39 reza
claramente que é ilegal fazer qualquer objeto com penas de corvo. Como os
cidadãos conseguem obedecer às duas regras ao mesmo tempo?
— Talvez eles não possuam
caneta nenhuma — disse Violet, — mas isso não é importante. Você descobriu
alguma coisa de útil nos livros de regras?
— Sim — disse Klaus, e
abriu um dos livros que estava carregando. — Ouçam isto: A Regra nº 2493 reza claramente
que qualquer pessoa que esteja para ser queimada na fogueira tem a oportunidade
de fazer um discurso logo antes de o fogo ser aceso. Podemos ir até a cadeia
central da cidade esta manhã para garantir que Jacques tenha essa oportunidade.
Em seu discurso, ele poderá contar às pessoas quem ele realmente é, e por que
tem aquela tatuagem.
— Mas ele tentou fazer isso
ontem na reunião — disse Violet. — Ninguém
acreditou nele. Ninguém sequer ouviu o que ele tinha a dizer.
— Eu estava pensando a
mesma coisa — disse Klaus, abrindo o segundo livro, — até que li isto aqui.
— Touí? — perguntou Sunny,
o que queria dizer alguma coisa como ‘‘‘‘Existe uma regra que reza claramente
que as pessoas têm de ouvir discursos?’‘‘‘.
— Não — respondeu Klaus. — Este não é um livro de regras. E um livro
sobre psicologia, o estudo da mente. Foi removido da biblioteca porque tem um
capítulo sobre a tribo dos cheroquis, na América do Norte. Eles fazem toda
sorte de coisas com penas, o que quebra a Regra nº 39.
— Isso é ridículo — disse
Violet.
— Concordo — disse Klaus, —
mas estou contente por este livro estar aqui e não na cidade, porque ele me deu
uma idéia. Há um capítulo aqui sobre a psicologia das turbas.
— Quediz? — perguntou
Sunny.
— Uma turba é uma multidão
de pessoas — explicou Klaus, — geralmente irada.
— Como os cidadãos e o
Conselho dos Anciãos estavam ontem — disse Violet, — na Prefeitura. Eles
estavam incrivelmente irados.
— Exatamente — disse Klaus.
— Agora escutem isto. — O Baudelaire do
meio abriu o segundo livro e começou a ler em voz alta. — ‘‘O diapasão emocional subliminar da ingovernabilidade
de uma turba jaz na ressonância de opiniões solitárias enfaticamente manifestadas
em diversos pontos do campo estereofônico.’‘
— Diapasão? Ressonância?
Estereofônico? — perguntou Violet. — Até
parece que você está falando de música.
— O livro usa uma porção de
palavras complicadas — disse Klaus, — mas por sorte havia um dicionário na
biblioteca de Hector. Ele foi removido de C.S.C. porque definia a expressão ‘‘dispositivo
mecânico’‘. Tudo o que aquela sentença quer dizer é que se umas poucas pessoas,
dispersas no meio da multidão, começarem a bradar suas opiniões, logo a turba
inteira irá concordar com elas. Isso aconteceu na reunião do Conselho de ontem —
umas poucas pessoas disseram coisas iradas, e logo o salão inteiro ficou irado.
— Viu — disse Sunny, o que
queria dizer ‘’Sim, eu me lembro’’.
— Quando chegarmos à cadeia
— disse Klaus, — vamos nos certificar de que Jacques será autorizado a fazer o
seu discurso. Então, enquanto ele se explica, vamos nos espalhar no meio da
multidão e bradar coisas como ‘‘Eu acredito nele!’‘ e ‘‘Ouçam, ouçam!’‘. A
psicologia da turba fará com que todos exijam que Jacques seja libertado. —
— Você acha mesmo que isto
vai funcionar? — perguntou Violet.
— Bem, eu preferiria fazer
um teste primeiro — disse Klaus, — assim como você preferiria testar a casa
móvel auto-sustentável a ar quente. Mas não temos tempo. E então, Sunny, o que
você descobriu depois de passar a noite debaixo da árvore?
Sunny ergueu uma de suas mãozinhas para mostrar mais uma tirinha
de papel.
— Dístico! — exclamou ela
triunfante, e seus irmãos juntaram-se em volta dela para ler.
A que antes se lê, contém uma pista,
Recurso inicial que o bandido despista.
— Bom trabalho, Sunny —
disse Violet. — Definitivamente, este é
mais um poema de Isadora Quagmire.
— E parece nos remeter de
volta à primeira linha do primeiro poema — disse Klaus. — Ele diz que ‘‘A que
antes se lê, contém uma pista’‘.
— Mas o que significa ‘‘Recurso
inicial que o bandido despista’‘? — perguntou Violet. — Iniciais, como C.S.C?
— Talvez — respondeu Klaus.
— Mas a palavra ‘‘inicial’‘ também pode
significar ‘‘primeiro’‘. Acho que Isadora quer dizer que este é o primeiro
jeito que ela encontrou para se comunicar conosco enganando o bandido — isto é,
Olaf — através destes poemas.
— Mas isto nós já sabemos —
disse Violet. — Os Quagmire não
precisariam nos contar. Vamos examinar todos os poemas juntos. Talvez isso nos
forneça um quadro completo.
Violet tirou do bolso os outros dois poemas, e as três crianças
olharam para todos eles em conjunto.
Cá, por safiras, cativos estamos.
Hora após hora, em terror aguardamos.
Até de manhã, não vai dar pra falar;
Fechado e tristonho há de o bico ficar.
A que antes se lê, contém uma pista,
Recurso inicial que o bandido despista.
— A parte sobre o bico
ainda é a mais confusa — disse Klaus.
— Leucophrys! — disse
Sunny, o que queria dizer ‘’Acho que posso explicar isto — os corvos estão
trazendo os dísticos’’.
— Como isso é possível? —
perguntou Violet.
— Loidya! — respondeu
Sunny. Ela queria dizer alguma coisa tipo ‘’Tenho certeza absoluta de que
ninguém se aproximou da árvore durante toda a noite, e de madrugada o bilhete
caiu dos galhos da arvore’’.
— Já ouvi falar de
pombos-correio — disse Klaus. — São
pássaros que vivem de levar mensagens. Mas nunca ouvi falar de corvos-correio.
— Talvez eles não saibam
que são corvos-correio — disse Violet. —
De algum modo, os Quagmire podem estar prendendo as tirinhas de papel nos
corvos — nos bicos, ou nas penas — e depois os poemas se soltam quando eles
dormem na Árvore do Nunca Mais. Os trigêmeos têm de estar em algum lugar aqui
na cidade. Mas onde?
— Co! — gritou Sunny,
apontando para os poemas.
— Sunny tem razão — disse
Klaus, alvoroçado. — Aqui diz ‘‘Até de
manhã, não vai dar pra falar’‘. Isto quer dizer que eles estão prendendo os
poemas nos corvos de manhã, quando eles se empoleiram na cidade alta.
— Bem, esta é mais uma
razão para irmos à cidade alta — retrucou Violet.
— Podemos salvar Jacques
antes que ele seja queimado na fogueira, e procurar pelos Quagmire. Se não
fosse por você, Sunny, não saberíamos onde procurar pelos Quagmire.
— Hasserin — disse Sunny, o
que queria dizer ‘’E se não fosse por você, Klaus, não saberíamos como salvar
Jacques’’.
— E se não fosse por você,
Violet — disse Klaus, — não teríamos possibilidade de escapar desta cidade.
— E se continuarmos parados
aqui — disse Violet, — não vamos salvar ninguém. Vamos tratar de acordar Hector
e ir andando. O Conselho dos Anciãos disse que eles iriam queimar Jacques na fogueira
logo depois do café-da-manhã.
— Yikes! — disse Sunny, o
que queria dizer — Isto não nos deixa
muito tempo — portanto os Baudelaire não levaram muito tempo entrando no
celeiro e passando através da biblioteca de Hector, que era tão vasta que as
duas irmãs Baudelaire mal podiam acreditar que Klaus tinha conseguido encontrar
informações úteis entre as prateleiras e mais prateleiras de livros. Havia
estantes tão altas que era preciso subir em uma escada para alcançar as últimas
prateleiras, e outras tão baixas que era preciso se arrastar pelo chão para
conseguir ler os títulos. Havia livros que pareciam pesados demais para deslocar,
e livros que pareciam leves demais para permanecer no lugar, e havia livros que
pareciam tão chatos que as irmãs não conseguiam imaginar que alguém fosse capaz
de ler — mas estes eram os livros que ainda estavam amontoados em pilhas
enormes espalhadas pelas mesas depois da sessão de leitura de noite inteira de
Klaus. Violet e Sunny tiveram vontade de parar por um momento para guardar
tudo, mas sabiam que não tinham muito tempo.
Atrás da última estante da biblioteca ficava o ateliê de invenções
de Hector, onde Klaus e Sunny tiveram o primeiro vislumbre da casa móvel
auto-sustentável a ar quente, que era uma engenhoca maravilhosa. Doze cestas
enormes, cada qual do tamanho de um quarto pequeno, estavam empilhadas no
canto, conectadas por toda sorte de diferentes tubos, canos e arames, e
rodeando as cestas havia uma série de grandes tanques metálicos, engradados de
madeira, jarras de vidro, sacos de papel, recipientes de plástico e rolos de
barbante, junto com diversos dispositivos mecânicos grandes, com botões,
interruptores e engrenagens, e uma grande pilha de balões vazios. A casa móvel auto-sustentável
a ar quente era tão imensa e complicada que lembrou aos dois Baudelaire mais
jovens o que eles costumavam pensar ao imaginar como seria por dentro o cérebro
inventivo de Violet, e cada parte da casa parecia tão interessante que Klaus e Sunny
não sabiam para onde olhar primeiro. Mas os Baudelaire sabiam que não tinham muito
tempo, portanto, em vez de explicar a invenção aos irmãos, Violet foi em passos
rápidos diretamente até uma das cestas, a qual deixou Klaus e Sunny surpresos
quando viram que continha uma cama, e esta, por sua vez, continha um Hector
adormecido.
— Bom dia — disse o
factótum depois que Violet o sacudiu gentilmente até acordá-lo.
— É mesmo um bom dia —
retrucou ela. — Nós descobrimos algumas
coisas maravilhosas. Vamos explicar tudo a caminho da cidade alta.
— Da cidade alta? — disse
Hector, saindo da cesta. — Mas os corvos
estão empoleirados na cidade alta. Na parte da manhã, fazemos as tarefas da
cidade baixa, estão lembrados?
— Não vamos fazer tarefa
nenhuma esta manhã — disse Klaus com firmeza. — Esta é uma das coisas que precisamos
explicar.
Hector bocejou, se espreguiçou e esfregou os olhos, depois sorriu
para as três crianças.
— Bem, desembuchem — disse
ele, usando uma expressão que aqui quer dizer ‘’Comecem logo a me contar sobre
os seus planos’’.
Os irmãos seguiram de volta na frente de Hector, passando pelo
ateliê de invenções e pela biblioteca secreta, e aguardaram enquanto ele
trancava o celeiro. Então, enquanto davam os primeiros passos pela paisagem
achatada rumo à cidade alta, os órfãos Baudelaire desembucharam. Violet contou
a Hector sobre os aperfeiçoamentos que fizera na sua invenção, e Klaus
contou-lhe sobre o que aprendera na biblioteca de Hector, e Sunny contou-lhe —
com um pouco de ajuda dos irmãos na tradução — sobre a sua descoberta de como
os poemas de Isadora estavam sendo entregues. Quando os Baudelaire estavam
desenrolando a terceira e última tirinha de papel para mostrar a Hector o
terceiro dístico, eles já tinham chegado à periferia recoberta de corvos da
cidade alta de C.S.C.
— Então os Quagmire estão
em algum lugar na cidade alta — disse Hector. — Mas onde?
— Não sei — admitiu Violet,
— mas é melhor tentarmos salvar Jacques primeiro. Onde fica a cadeia central? —
perguntou Violet a Hector.
— Fica do outro lado do
Chafariz Corvídeo — respondeu o factótum, — mas parece que não vamos precisar
de orientação. Olhem o que está na nossa frente.
As crianças olharam, e viram alguns dos cidadãos portando tochas
flamejantes e caminhando cerca de um quarteirão à frente.
— Já deve ser depois do
café-da-manhã — disse Klaus. — E melhor
a gente se apressar.
Os Baudelaire caminharam o mais depressa que podiam por entre o
bando de pássaros crocitantes pousados no chão, com Hector seguindo
desassossegado bem atrás, e logo eles dobraram uma esquina e chegaram ao
Chafariz Corvídeo — ou pelo menos o que dava para ver dele. O chafariz estava
apinhado de corvos que agitavam as asas na água para tomar o seu banho matinal,
e os Baudelaire mal conseguiam ver uma pena de metal que fosse do hediondo monumento.
Do outro lado do pátio havia um edifício com barras nas janelas e corvos nas
barras, e os cidadãos com suas tochas formavam um semicírculo em volta da porta
do edifício. Mais cidadãos de C.S.C. estavam chegando de todas as direções, e
as três crianças puderam ver alguns membros do Conselho dos Anciãos com seus
chapéus de corvo reunidos em pé e ouvindo alguma coisa que a Sra. Morrow estava
dizendo.
— Parece que chegamos na
hora H — disse Violet. — É melhor nos
espalharmos pelo meio da multidão. Sunny, você vai para a extrema esquerda. Eu
vou para a extrema direita.
— Oqueu — disse Sunny, e
começou a engatinhar através do semicírculo de gente.
— Acho que vou simplesmente
ficar aqui — disse Hector baixinho, olhando para o chão, mas as crianças não
tinham tempo para discutir com ele. Klaus começou a andar diretamente para o
meio da multidão.
— Esperem! — gritou Klaus,
avançando com dificuldade através do povo. — A Regra nº 2493 reza claramente que qualquer
pessoa que esteja para ser queimada na fogueira tem a oportunidade de fazer um
discurso logo antes de o fogo ser aceso!
— Sim! — gritou Violet do
lado direito da multidão. — Que Jacques
seja ouvido!
A oficial Luciana se plantou bem na frente de Violet, que quase
bateu a testa no lustroso capacete da chefe. Atrás do visor do capacete, Violet
pôde ver os cantos da boca cheia de batom de Luciana se erguerem em um
minúsculo sorriso.
— E tarde demais para isso —
disse ela, e alguns cidadãos em volta murmuraram concordando. Com uma batida surda
de uma das botas, ela deu um passo para o lado e deixou Violet ver o que estava
acontecendo. Do lado esquerdo da multidão, Sunny engatinhou por cima dos
sapatos de uma pessoa que estava mais perto da cadeia, e Klaus espiou por cima
do ombro do Sr. Lesko, tentando ver para onde todo mundo estava olhando tão
fixamente.
Jacques estava deitado no chão com os olhos fechados, e dois
membros do Conselho dos Anciãos puxavam um lençol branco por cima dele, como se
o estivessem acomodando para um cochilo. Porém, por mais ardentemente que eu
queira poder escrever que era isso, ele não estava dormindo. Os Baudelaire
tinham chegado à cadeia central antes que os cidadãos de C.S.C. pudessem
queimá-lo na fogueira, mas ainda assim não chegaram na hora H.
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