Capítulo 8
— O quê? — perguntou
Isadora.
— Eu disse: 'Finalmente,
quando o sol nasceu, o instrutor Genghis mandou que parássemos de dar voltas e
nos deixou ir dormir' — disse Klaus.
— Minha irmã não quis dizer
que não havia escutado — explicou Duncan. — Ela quis dizer que escutou mas não acreditou
que tivesse escutado aquilo mesmo. E, para dizer a verdade, também custo a
crer, apesar de ter visto com meus próprios olhos.
— Nem eu consigo acreditar
— disse Violet franzindo a cara enquanto beliscava um naco da salada que os
atendentes mascarados haviam servido como almoço. Era a tarde seguinte ao
encontro, e os três órfãos Baudelaire estavam fazendo milhões de caretas, ou
seja, franzindo a cara a toda hora num reflexo de susto, ou de medo, ou de
sofrimento. Quando o instrutor Genghis dera o nome de D.O.R. às atividades da
noite anterior, estava apenas abreviando ‘’Disciplina para Órfãos Rápidos’’,
mas as três crianças acharam que D.O.R. tinha mais a ver com aqueles exercícios
do que o nome oficial. Depois de uma noite inteira de D.O.R., passaram o dia
todo sentindo dores no corpo. As pernas doíam por causa do tanto que correram.
Quando enfim se recolheram ao Barraco dos Órfãos para dormir, o cansaço impediu
que calçassem os sapatos barulhentos, e por isso tiveram os dedos dos pés
feridos pelas pinças dos minúsculos caranguejos obsessivamente apegados ao
território. E a cabeça também lhes doía, e não era só dor de cabeça como as
provocadas por noites maldormidas; era dor de cabeça por estarem incessantemente
especulando qual teria sido a intenção do instrutor Genghis ao obrigá-los a
correr aquelas voltas todas. As pernas doíam, os dedos dos pés doíam, a cabeça
doía, e logo os músculos da boca também começaram a doer de tanto que franziram
o rosto fazendo caretas.
Era hora do almoço, e as três crianças comentavam os
acontecimentos da noite anterior com os trigêmeos Quagmire, que não sentiam
aquelas dores, muito menos o cansaço que os abatia. Isso porque haviam ficado
escondidos atrás do arco de pedra, de olho em Genghis e nos Baudelaire, em vez
de correrem todas aquelas voltas em torno do círculo fosforescente. E também
porque os Quagmire haviam feito a vigilância em turnos. Depois de os Baudelaire
terem corrido as primeiras voltas e os amigos perceberem não haver sinal algum
de que iriam parar, os dois trigêmeos resolveram alternar-se no posto, Duncan
dormiu e Isadora vigiou, ou Duncan vigiou e Isadora dormiu. Os dois irmãos
tinham combinado que o vigilante acordaria o adormecido se percebesse alguma
coisa de anormal durante o seu turno.
— O último turno foi meu — explicou
Duncan, — de modo que minha irmã não presenciou
o final de D.O.R. Mas não importa. Tudo o que aconteceu foi: o instrutor
Genghis mandou que vocês parassem de correr e fossem dormir. Pensei que ele fosse
insistir em ficar com a fortuna de vocês antes de permitir que parassem.
— E eu pensei que o círculo
fosforescente fosse servir como pista de pouso para algum helicóptero — disse
Isadora, — um helicóptero pilotado por um ajudante de Genghis, que aterrissaria
e em seguida fugiria levando vocês. A única coisa que eu não conseguia entender
era por que vocês precisavam correr todas aquelas voltas antes de o helicóptero
aparecer.
— Mas nenhum helicóptero
apareceu — disse Klaus, bebendo um gole d'água e franzindo o rosto. — Não apareceu nada.
— Quem sabe o piloto perdeu
o rumo — disse Isadora.
— Ou talvez o instrutor
Genghis tenha ficado tão cansado quanto vocês e tenha esquecido de exigir a
fortuna — disse Duncan.
Violet balançou sua cabeça dolorida.
— Por maior que fosse o
cansaço, ele jamais desistiria de pôr a mão em nossa fortuna — disse ela. — Que ele está a fim de aprontar alguma, disso
não há a menor dúvida, só não consigo imaginar o que possa ser.
— Claro que não consegue
imaginar — disse Duncan. — Você está
exausta. Ainda bem que Isadora e eu tivemos a idéia de nos revezar em turnos.
Vamos usar todo o nosso tempo de folga para investigar. Vamos folhear todas as
nossas anotações, e fazer mais alguma pesquisa na biblioteca. Tem que haver alguma
coisa que nos ajude a descobrir.
— Também vou pesquisar — disse
Klaus, bocejando. — Isso eu sei fazer
bem.
— Não resta dúvida — disse
Isadora, sorrindo. — Mas não hoje,
Klaus. Nós vamos nos empenhar em descobrir o plano de Genghis, e vocês três podem
aproveitar para pôr o sono em dia. Você está muito cansado para fazer algo que
valha a pena numa biblioteca ou seja onde for. — Violet e Klaus olharam para a cara cansada um
do outro, e depois para a irmãzinha bebê, e viram que os trigêmeos Quagmire tinham
razão. Violet estava tão cansada que se limitara a tomar umas poucas notas
sobre as histórias tediosas do Sr. Re-mora. Klaus estava tão cansado que errara
nas medidas de quase todos os objetos trazidos pela Sra. Bass. E, embora Sunny
não houvesse contado o que fizera aquela manhã no gabinete de Nero,
provavelmente não deve ter realizado um bom serviço como assistente administrativa,
porque caiu no sono ali mesmo no refeitório, sua cabecinha tombando sobre a
salada como se as verduras fossem um travesseiro macio em vez de folhas de
alface, fatias de tomate, molho de mostarda e uns poucos croutons (que são
cubinhos de torrada que dão ao prato um crocante especial).
Violet gentilmente tirou a cabeça da irmã do meio da salada e
expulsou alguns croutons que tinham aderido aos cabelos. Sunny fez uma careta,
com um gemido meio fraco, e retomou o sono no colo de Violet.
— Talvez você tenha razão, Isadora
— disse Violet. — O jeito é levar esta
tarde meio aos trancos e barrancos, depois, à noite, tentar um bom sono. Se
tivermos sorte, hoje o vice-diretor Nero toca uma peça tranquila no concerto e
a gente consegue dormir também durante o recital.
Só por essa última frase vocês já podem ter uma idéia de como
Violet estava realmente cansada, porque ‘’Se tivermos sorte’’ não é uma frase
que nem ela nem os irmãos usavam com freqüência. Por motivos óbvios: os órfãos Baudelaire
não tinham sorte. Eram espertos, sim. Encantadores, sim. Capazes de sobreviver
a situações difíceis, sim. Porém não eram crianças ‘’de sorte’’, de modo que
jamais usariam a frase ‘’Se tivermos
sorte’’, assim como jamais diriam ‘’Se
nos tornarmos talos de aipo’’, por não serem, nem uma nem outra, frases apropriadas.
Se houvessem se tornado talos de aipo, não teriam sido crianças aflitas, e se
houvessem tido sorte, Carmelita Spats não teria se aproximado da mesa, como fez
naquele exato momento, e transmitido mais uma mensagem infeliz.
— Olá, seus bisbórrias — disse
ela, — se bem que, a julgar pela
pirralhinha, 'fuçadores-de-saladas' talvez caia melhor como apelido, não sei.
Tenho outra mensagem, outro recado, do instrutor Genghis. Ele me escolheu como Mensageira
Especial por ser a garota mais engraçadinha, mais bonitinha e mais simpática de
todo o colégio.
— Se você fosse de fato a
pessoa mais simpática de todo o colégio — disse Isadora, — não estaria fazendo
troça de um bebê com sono. Mas, deixa pra lá. Qual é o recado?
— Na verdade, é o mesmo da
última vez — disse Carmelita, — mas
repetirei caso vocês sejam estúpidos demais para se lembrar. Os três órfãos
Baudelaire devem comparecer ao gramado da frente, logo depois do jantar.
— O quê? — perguntou Klaus.
— Vocês também são surdos,
além de bisbórrias? — perguntou Carmelita. — Eu disse...
— Sim, sim, Klaus ouviu o
que você disse — Violet apressou-se em dizer. — Não foi esse tipo de 'O quê?' que ele
perguntou. Você já nos deu o recado, Carmelita. Agora, por favor, vá embora.
— Com esta, são duas
gratificações que vocês me devem — Carmelita disse, mas foi dizendo e sumindo
na mesma hora.
— Não posso acreditar — disse
Violet. — Mais voltas! Minhas pernas
doem demais só de andar, imagine correr!
— Carmelita não falou de
mais voltas — observou Duncan. — Talvez
o instrutor Genghis vá pôr em pratica o verdadeiro plano hoje à noite. Seja
como for, tornaremos a escapulir do recital e de novo ficaremos de olho em
vocês.
— Revezando-nos em turnos —
acrescentou Isadora, concordando. — E
aposto que então já teremos uma idéia clara de qual é o plano dele. Temos o
resto do dia para pesquisar.
Isadora fez uma pausa e abriu o caderno de capa preta na página certa.
Leu:
— Baudelaire, não se
aflijam, já, já tudo muda Quando os trigêmeos derem sua
ajuda.
— Obrigado — disse Klaus,
dirigindo a Isadora um sorriso cansado, de agradecimento.
— Minhas irmãs e eu somos
muito gratos pelo apoio de vocês. E vamos pôr nossas cabeças para trabalhar,
ainda que estejamos cansados demais para uma pesquisa. Se tivermos sorte, com
todos trabalhando juntos, poderemos vencer o instrutor Genghis.
Lá estava mais uma vez aquela frase, ‘’Se tivermos sorte’’, saindo
da boca de um Baudelaire, e mais uma vez parecia tão apropriada quanto ‘’Se nos
tornarmos talos de aipo’’. A única diferença era que os órfãos Baudelaire não
desejavam se tornar talos de aipo. Mesmo sendo verdade que se fossem talos de
aipo não seriam órfãos porque aipo é uma planta e dele não se pode dizer que
tenha pais, Violet, Klaus e Sunny não tinham a menor vontade de tornar-se uma
erva fibrosa de baixa caloria. Infortúnios podem acontecer tanto ao aipo como a
crianças. O aipo pode ser fatiado em pequenos pedaços e mergulhado em molho de mexilhões
em festas requintadas. Pode ser coberto com pasta de amendoim e servido como
tira-gosto. Pode simplesmente ser deixado no campo até apodrecer, caso os
plantadores de aipo da região sejam preguiçosos ou estejam em férias. Todas
essas coisas terríveis podem acontecer ao aipo, e os órfãos bem o sabiam, de
modo que, se perguntassem aos Baudelaire se queriam ser talos de aipo, só
poderia haver uma resposta: claro que não. Mas eles queriam ter sorte.
Os Baudelaire não exigiam ser supersortudos, como alguém que num
concurso ganha uma provisão de sorvete para toda a vida, ou como o homem — e, infelizmente,
não foi o meu caso — que era tão sortudo que se casou com minha amada e viveu
feliz com ela enquanto durou a curta vida da estimada Beatrice. Entretanto os
Baudelaire desejavam ter uma sorte pelo menos razoável.
Razoável a ponto de lhes permitir escapar das garras do instrutor
Genghis, e a única chance — tudo levava a crer — dependia de ter essa sorte.
Violet estava cansada demais para inventar o que quer que fosse, e Klaus
cansado demais para ler o que quer que fosse, e Sunny , ainda adormecida no
colo de Violet, cansada demais para morder o que ou quem quer que fosse. Tudo
levava a crer que, mesmo com a dedicação dos trigêmeos Quagmire — entendam ‘’dedicação’’
aqui como ‘’capacidade de fazer boas anotações em cadernos com capa verdevivo e
negro como breu’’ —, eles precisavam ter sorte se quisessem continuar vivos.
Como se no refeitório fizesse um frio tremendo, os Baudelaire estavam bem
agarradinhos uns aos outros, os rostos franzidos de dor e preocupação. Os órfãos
Baudelaire tinham a impressão de que jamais em toda a vida haviam desejado
tanto um pouquinho de sorte
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