Capítulo 9
Quando as crianças estão com problemas, é comum vocês ouvirem as
pessoas dizer que é tudo por causa de baixa auto-estima. ‘’Baixa auto-estima’’
é uma expressão usada para descrever pessoas que não valorizam a si próprias.
Podem se achar feias, ou chatas, ou incapazes de fazer qualquer coisa, ou ainda
uma combinação de tudo isso; e, quer tenham ou não razão, dá para entender por
que esses sentimentos podem acabar levando-as a ‘’entrar numa fria’’. Na grande
maioria dos casos, entretanto, ‘’entrar numa fria’’ não tem nada a ver com a
auto-estima de uma pessoa. Em geral, tem muito mais a ver com quem ou o que
está diretamente provocando o problema — um monstro, um motorista de ônibus, uma
casca de banana, abelhas assassinas, o diretor do colégio — do que com a imagem
que a pessoa tem de si própria.
E foi o que aconteceu quando Violet e Sunny Baudelaire puseram os
olhos no conde Olaf — ou, de acordo com o que estava escrito na placa em cima
da escrivaninha, Shirley . Violet e Sunny tinham um nível muito saudável de
auto-estima. Violet sabia que era capaz de fazer as coisas corretamente, porque
inventara uma porção de aparelhos que funcionavam de modo perfeito. Sunny sabia
que não era chata, porque seus irmãos sempre mostravam o maior interesse por
tudo o que ela tinha a dizer. E ambas as irmãs Baudelaire sabiam que não eram
feias, pois podiam ver seus traços faciais refletidos bem no meio dos olhos
muito, muito brilhantes do conde Olaf. De nada adiantava, entretanto, elas
pensarem essas coisas, porque a verdade era que tinham sido apanhados.
— Olá, garotinhas — disse o
conde Olaf com uma voz ridícula de falsete, como se fosse uma recepcionista
chamada Shirley e não o perverso caçador da fortuna dos Baudelaire. — Qual é o nome de vocês?
— Você sabe os nossos nomes
— disse Violet de modo seco, e aqui seco é usado com o sentido de ‘’farta dos
recursos absurdos empregados pelo conde Olaf’’. — Essa peruca e esse batom não nos enganam,
nem o seu vestido marrom-claro nem os seus sapatos bege. Você é o conde Olaf.
— Lamento, mas estão
enganadas — disse o conde Olaf. — Sou Shirley . Vejam o que está escrito nesta
placa.
— Fiti! — gritou Sunny
estridentemente, o que significava: ‘’Essa placa não prova nada, ora essa!.
— Sunny tem razão — disse
Violet. — Só por causa de um pedaço de
madeira com um nome não quer dizer que você seja Shirley .
— Eu lhe digo por que sou
Shirley — disse o conde Olaf. — Sou Shirley porque gostaria que me
chamassem de Shirley , e não fazer isso é uma prova de falta de educação.
— Estou pouco ligando —
disse Violet, — se estamos sendo mal-educadas com uma pessoa tão abominável
como você.
O conde Olaf balançou a cabeça.
— Mas se vocês vierem com
falta de educação pra cima de mim — disse ele,
— eu também poderia responder a vocês com algum ato grosseiro, como, por
exemplo, arrancar o cabelo de vocês com estas mãos aqui, ó. — Violet e Sunny ficaram olhando para as mãos
do conde Olaf. E notaram então que ele deixara as unhas crescerem bastante, e
que como parte do disfarce pintara-as com um esmalte rosa brilhante. As irmãs
Baudelaire se entreolharam. Aquelas unhas pareciam, de fato, muito afiadas.
— Tudo bem, Shirley — disse Violet. — Você esteve espreitando a gente o tempo todo,
em Paltry ville, desde que chegamos, não foi?
Shirley ergueu uma das mãos para ajeitar a peruca que saíra do
lugar.
— Talvez — disse ela,
sempre com aquela voz boba de falsete.
— E o tempo todo esteve
escondida aqui na casa em forma de olho, não foi ? — perguntou Violet.
Shirley ficou pestanejando sem parar, e as duas irmãs notaram que
abaixo de sua longa sobrancelha única — outro traço identificador do conde Olaf
— ela usava longos cílios postiços.
— Talvez — disse ela.
— E você está mancomunada
com a Dra. Orwell! — disse Violet usando uma expressão que aqui significa’’
trabalhando de comum acordo, para apossar-se da fortuna dos Baudelaire’’. — Sim ou não?
— Pode ser — disse Shirley
, cruzando as pernas e revelando longas meias brancas estampadas com olhinhos.
— Popinsh! — gritou Sunny
estridentemente.
— Sunny está tentando dizer
— disse Violet, — que a Dra. Orwell
hipnotizou Klaus e causou aquele terrível acidente, pode ser?
— É viável — disse Shirley
.
— E ele está sendo
hipnotizado de novo, neste exato momento, não é isso? — perguntou Violet.
— É uma hipótese um tanto
quanto provável — disse Shirley . Violet e Sunny se entreolharam, com o coração
pulando.
Violet segurou a mão da irmã e deu um passo para trás, em direção
à porta.
— E agora você vai tentar
dar um sumiço na gente, estou certa
— Claro que não — disse
Shirley . — Vou oferecer a vocês um
biscoitinho, como uma boa recepcionista.
— Você não é uma
recepcionista! — gritou Violet.
— Claro que sou — disse
Shirley . — Sou uma pobre recepcionista
que vive sozinha e que deseja muito ter filhos para cuidar. Três filhos, na
verdade: uma garotinha sabichona, um garotinho hipnotizado e um bebê
dentuço.
— É, mas você não pode
cuidar da gente — disse Violet. — Já
estamos sob a guarda de Senhor.
— Sim, porém muito em breve
ele passará a guarda para mim — disse Shirley , com os olhos brilhando
intensamente.
— Isso é um ab... — disse
Violet, entretanto deteve-se antes de pronunciar ‘’...surdo’’.
Ela quis completar o que estava dizendo com ‘’...surdo’’ . Ela
quis dizer ‘’Senhor não faria uma coisa dessas’’, mas no íntimo tinha suas
dúvidas. Senhor já fizera os três Baudelaire dormir num único beliche. Já os
fizera trabalhar numa serraria. E já lhes servira chiclete como almoço. E, por
mais que ela quisesse achar que era um absurdo pensar que Senhor simplesmente
passaria os órfãos Baudelaire para Shirley , Violet tinha suas dúvidas. Metade
dela tinha dúvidas, e assim deteve-se na primeira sílaba da palavra.
— Ab? — disse uma voz por
trás dela. — Mas o que significa essa
palavra 'ab'? — Violet e Sunny
viraram-se e deram com a Dra. Orwell vindo com Klaus para a sala de espera. Ele
usava um novo par de óculos e parecia confuso.
— Klaus! — gritou
Violet. — Estávamos ficando preo...
— Ela interrompeu-se e não chegou a
pronunciar ‘’...cupadas’’ quando viu a expressão do irmão. Era a mesma expressão
que ele tinha na noite anterior, quando finalmente voltou de sua primeira
consulta com a Dra. Orwell. Por trás do seu mais novo par de óculos, os olhos
de Klaus estavam arregalados e ele sorria com um ar distante e atônito, como se
suas irmãs fossem pessoas que ele não conhecesse tão bem.
— lá vem você com essas
palavras estranhas — disse a Dra. Orwell.
— Primeiro, 'ab'. Agora, 'preo'. 'Preo' quer dizer o quê, pelo amor de
Deus?
— É claro que 'ab' e 'preo'
não são palavras — disse Shirley . — Só
uma pessoa idiota diria palavras como ab ou preo.
— Elas são idiotas, não
são? — concordou a Dra. Orwell, como se eles estivessem comentando sobre o
tempo, e não insultando crianças pequenas.
— Elas devem ter uma auto-estima muito baixa.
— Concordo inteiramente,
Dra. Orwell — disse Shirley .
— Pode me chamar de
Georgina — respondeu a horrível oftalmologista, com um piscar de olho. — Bem, garotas, aqui está o seu irmão. Hoje
um pouco cansado por causa da consulta, mas amanhã de manhã estará ótimo. Mais
do que ótimo, na verdade. Muito mais. —
Ela virou-se e apontou para a porta com sua bengala com castão de
rubi. — Acho que vocês três conhecem o
caminho da saída.
— Eu não — disse Klaus com
uma voz que quase não dava para ouvir. —
Não me lembro de ter entrado aqui.
— Isso é comum acontecer
depois de consultas de oftalmologia — disse a Dra. Orwell polidamente. — Vamos logo, órfãos.
Violet deu a mão para Klaus e começou a levá-lo para fora da sala
de espera.
— Podemos mesmo ir, sem
problema? — perguntou ela, em dúvida por um momento.
— Claro — disse a Dra.
Orwell. — Mas estou certa de que minha
recepcionista e eu não tardaremos a vê-los. Afinal de contas, parece que Klaus
se tornou muito desastrado ultimamente. Está sempre provocando acidentes.
— Rupish! — , gritou Sunny
estridentemente. Com a intenção de dizer: ‘’Não foram acidentes! Foram
resultados da hipnose!’’. Entretanto, os adultos não lhe deram atenção. A Dra.
Orwell simplesmente afastou-se da porta para abrir passagem, e
Shirley fez um aceno para os garotos, tamborilando o ar com seus
dedos ossudos de unhas cor-de-rosa.
— Até mais, órfãos! — disse
Shirley . Klaus olhou para ela e retribuiu o aceno enquanto Violet e Sunny
davam-lhe um puxão para fora da sala de espera.
— Como foi capaz de acenar
para ela? — Violet sussurrou, ríspida, para seu irmão, no corredor de saída.
— Ela parece uma senhora
simpática — disse Klaus, e franziu a testa num esforço de concentração. — Sei que já a encontrei em algum lugar
antes.
— Baliuot! — gritou Sunny
estridentemente, o que sem sombra de dúvida
significava: ‘’Ela é o conde Olaf disfarçado!’’.
— Deve ser, se você está
dizendo — falou Klaus em tom vago.
— Oh, Klaus — disse Violet,
com imensa tristeza. — Sunny e eu
perdemos um tempão discutindo com Shirley quando deveríamos tê-lo salvado. Você
foi hipnotizado de novo; tenho certeza. Tente concentrar-se, Klaus. Tente se
lembrar do que aconteceu.
— Quebrei meus óculos —
disse Klaus bem devagar, — depois saímos
da serraria... Estou muito cansado, Verônica. Posso ir para a cama?
— Violet — disse
Violet. — Meu nome é Violet, e não
Verônica.
— Desculpe — disse
Klaus. — É que estou muito cansado.
— Violet abriu a porta da casa, e os
três órfãos se viram do lado de fora, pisando a deprimente rua de Paltry ville.
Violet e Sunny estacaram; veio-lhes à lembrança o momento em que viram a casa
em forma de olho pela primeira vez, logo depois de descerem do trem. Seus
instintos lhe haviam dito que a casa era um mau presságio, mas não deram
ouvidos aos seus instintos. Deram ouvidos ao Sr. Poe.
— Melhor levarmos Klaus
para o dormitório — Violet disse para Sunny .
— Não sei que outra coisa podemos fazer com ele nesse estado. Depois
deveríamos contar a Senhor o que aconteceu. Espero que possa ajudar-nos.
— Zizim — concordou Sunny
melancolicamente. As irmãs levaram Klaus até os portões de madeira da serraria,
cruzaram o pátio de terra e chegaram ao dormitório. Estava quase na hora do
jantar; quando as crianças entraram no aposento viram os outros empregados
sentados em seus beliches conversando em voz baixa.
— Estou vendo que voltou — disse
um dos empregados. — Espanta-me que
tenha coragem de mostrar a cara aqui, depois do que fez com Phil.
— Ah! Deixe pra lá — disse
Phil, e os órfãos se voltaram para vê-lo deitado no beliche, com a perna
engessada. — Klaus não fez de propósito,
não foi, Klaus?
— Fiz de propósito o quê? —
perguntou Klaus com perplexidade, palavra que aqui significa ‘’espanto por não
saber que causara o acidente que feriu a perna de Phil’’.
— Nosso irmão está muito cansado
— Violet apressou-se em dizer. — Como
está se sentindo, Phil?
— Ah, muito bem — disse
Phil. — Minha perna dói, mas também é só
o que dói. Na verdade, tive muita sorte. Mas chega de falar de mim mesmo.
Deixaram aqui um memorando para vocês. O capataz Flacutono disse que é muito
importante. — Phil passou para Violet um
envelope com a palavra ‘’Baudelaire’’ datilografada, exatamente como o bilhete
de boas-vindas que as crianças encontraram em seu primeiro dia na serraria.
Dentro do envelope, um bilhete:
Memorando
Para: Órfãos Baudelaire
De: Senhor
Assunto: Acidente de hoje
Fui informado de que esta manhã vocês causaram na serraria um
acidente que danificou um empregado e inutilizou o dia de trabalho.
Acidentes são causados por maus funcionários, e maus funcionários
não são tolerados na Serraria Alto-Astral. Se continuarem a causar
inconveniências serei forçado a despedi-los e providenciar outra residência para
vocês. Já localizei uma simpática senhorita que mora na cidade e que ficaria
muito feliz de adotar três crianças pequenas. Seu nome é Shirley e ela trabalha
como recepcionista. Se vocês três continuarem a ser maus operários,
providenciarei para que fiquem sob os cuidados dela.
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