Capítulo 9
Não existem muitas pessoas no mundo que apreciem ser portadoras de
más notícias, mas lamento dizer que a Sra. Morrow era uma delas. Quando avistou
os órfãos Baudelaire reunidos em torno de Jacques, ela se apressou até pátio,
para contar os detalhes.
— Esperem só até que O
Pundonor Diário fique sabendo disto! — disse ela entusiasticamente, e apontou
para Jacques com a manga do seu robe cor-de-rosa. — Antes que ele pudesse ser queimado na
fogueira, o conde Ornar foi assassinado misteriosamente na sua cela.
— Conde Olaf — corrigiu
Violet automaticamente.
— Então você finalmente
admite que sabe quem é ele! — exclamou ela, triunfante.
— Nós não sabemos quem é
ele! — insistiu Klaus, pegando no colo a sua irmã bebê, que estava começando a
chorar baixinho. — Só sabemos que ele é
um homem inocente!
A oficial Luciana avançou batendo as botas pretas e a multidão de
cidadãos se dividiu para deixá-la passar diretamente até as crianças.
— Não acho que este seja um
assunto para ser discutido por crianças — disse ela, e ergueu no ar as suas
mãos enluvadas de branco para chamar a atenção da multidão.
— Cidadãos de C.S.C. —
disse ela solenemente, — eu tranquei o conde Olaf na cadeia central esta noite,
e quando cheguei aqui pela manhã ele tinha sido morto. Estou com a única chave
da cadeia, portanto a sua morte é um mistério e tanto.
— Um mistério! — disse a Sra.
Morrow alvoroçada, enquanto a multidão murmurava por trás dela. — Que delícia, adoro mistérios!
— Choart! — disse Sunny
chorosa. Ela queria dizer algo como ‘’Um homem morto não é uma delícia! — mas
só os seus irmãos estavam prestando atenção.
— Vocês todos ficarão
felizes em saber que o famoso detetive Dupin aceitou investigar este
assassinato — continuou a oficial Luciana. Ele está agora lá dentro da cadeia,
examinando a cena do crime.
— O famoso detetive Dupin!
— disse o Sr. Lesko. — Imaginem só!
— Nunca ouvi falar dele —
disse um Ancião que estava por perto.
— Nem eu — admitiu o Sr.
Lesko, — mas tenho certeza de que ele é muito famoso.
— O que aconteceu? —
perguntou Violet, tentando não olhar para o lençol branco no chão. — Como Jacques foi morto? Não havia ninguém de
guarda? Como poderia alguém ter entrado na cela dele se você a trancou?
Luciana voltou-se e encarou Violet, que pôde ver o seu próprio
reflexo atônito refletido no lustroso capacete da policial.
— Como eu já disse antes —
Luciana disse de novo, — não acho que
este seja um assunto a ser discutido por crianças. Talvez aquele homem de
macacão devesse levar vocês para um parquinho, em vez de uma cena do crime.
— Ou para fazer as tarefas
matinais na cidade baixa — disse outro Ancião balançando o seu chapéu de corvo.
— Hector, leve os órfãos embora.
— Não tão depressa — bradou
uma voz vinda da porta da cadeia central. Era uma voz, lamento dizer, que os
órfãos Baudelaire reconheceram na hora. A voz era roufenha, e estridente, e
possuía um quê de sorriso sinistro, como se a pessoa que falava estivesse contando
uma piada. Mas não era uma voz que desse às crianças vontade de rir como depois
de uma fala cômica. Era uma voz que as crianças reconheceram de todos os lugares
por onde viajaram desde que seus pais tinham morrido, e uma voz que as crianças
conheciam de todos os mais desagradáveis pesadelos. Era a voz do conde Olaf.
Com o coração nas mãos, as crianças se voltaram para ver Olaf em
pé na soleira da porta, usando mais um dos seus absurdos disfarces. Ele estava
usando uma japona turquesa tão brilhantemente colorida que fez os Baudelaire
apertarem os olhos, e um par de calças prateadas e ornamentadas com espelhinhos
que reluziam ao sol da manhã. Um par de enormes óculos de sol cobriam toda a
parte superior do seu rosto, escondendo a sobrancelha única e os olhos muito,
muito brilhantes. Em seus pés havia um par de cintilantes sapatos de plástico
verde com raios de plástico amarelo saindo deles, cobrindo os tornozelos e
escondendo a sua tatuagem. Mas o mais desagradável de tudo era o fato de que
Olaf estava sem camisa, usando só uma grossa corrente de ouro com uma insígnia
de detetive no meio. Os Baudelaire podiam ver o seu peito pálido e peludo olhando
furtivamente para eles, o que somava uma camada extra de mal-estar ao seu medo.
— Simplesmente não é legal
— disse o conde Olaf, estalando os dedos para enfatizar a palavra ‘’legal’’— dispensar
suspeitos da cena do crime antes que o detetive Dupin dê o seu ‘‘de acordo’‘.
— Mas certamente os órfãos
não são suspeitos — disse um dos Anciãos. — Afinal, são apenas crianças.
— Simplesmente não é legal
— disse o conde Olaf, estalando os dedos mais uma vez, — discordar do detetive
Dupin.
— Concordo — disse a
oficial Luciana, e deu um grande sorriso de batom para Olaf quando ele
atravessou a porta. — Agora vamos ao que
interessa, Dupin. Você tem alguma informação importante?
— Nós temos uma informação
importante — disse Klaus audaciosamente. — Este homem não é o detetive Dupin. — Ouviram-se
alguns arquejos no meio da multidão. — Ele
é o conde Olaf.
— Você quer dizer conde
Ornar — disse a Sra. Morrow.
— Nós queremos dizer Olaf —
disse Violet, e depois voltou-se para encarar o conde Olaf diretamente nos
óculos de sol. — Esses óculos de sol
podem estar escondendo a sua sobrancelha, e esses sapatos podem estar
escondendo a sua tatuagem, mas você não pode esconder a sua identidade. Você é
o conde Olaf, e você raptou os trigêmeos Quagmire e assassinou Jacques.
— Quem diabo é Jacques? —
perguntou um Ancião. — Estou confuso.
— Não é legal — disse Olaf
com um estalar de dedos, — estar confuso, portanto deixe-me ver se posso
ajudá-lo. — Ele apontou para si mesmo
com um floreio. — Eu sou o detetive
Dupin. Estou usando estes sapatos de plástico e estes óculos porque eles sãolegais.
Conde Olaf é o nome do homem que foi assassinado na noite passada, e estas três
crianças... — e aqui o conde Olaf fez uma pausa para se certificar de que todos
estavam ouvindo — são responsáveis pelo crime.
— Não seja ridículo, Olaf —
disse Klaus, enojado.
Olaf deu um sorriso sórdido para os três Baudelaire.
— Vocês estão cometendo um erro
ao me chamar de conde Olaf — disse ele, — e se continuarem a fazer isso, verão exatamente
que grande erro estão cometendo. — O
detetive Dupin voltou-se e ergueu os olhos para dirigir-se à multidão. — E claro que o maior erro que estas crianças
cometeram foi achar que poderiam se safar impunes do assassinato.
Ouviu-se um murmúrio de assentimento da multidão.
— Eu nunca confiei nessas crianças
— disse a Sra. Morrow. — Elas não
fizeram um trabalho muito bom quando apararam as minhas cercas vivas.
— Mostre as provas a eles —
disse a oficial Luciana, e o detetive Dupin estalou os dedos.
— Não é legal — disse ele,
— acusar pessoas de assassinato sem provas, mas por sorte encontrei algumas. — Ele
enfiou a mão no bolso da japona e tirou de lá uma comprida fita cor-de-rosa
decorada com margaridas de plástico. — Achei
isto bem na frente da cela do conde Olaf — disse ele. — É uma fita — exatamente o tipo de fita que
Violet Baudelaire usa para prender o cabelo.
Os cidadãos arquejaram e Violet voltou-se para ver que os cidadãos
de C.S.C. estavam olhando para ela com suspeita e medo, o que não é um jeito
agradável de ser olhado.
— Essa não é a minha fita!
— gritou Violet, tirando a sua própria fita de cabelo do bolso. — A minha fita está bem aqui!
— Como podemos saber? —
perguntou um Ancião franzindo o cenho. —
Todas as fitas de cabelo são parecidas.
— Elas não são parecidas! —
disse Klaus. — A que foi encontrada na
cena do crime é enfeitada e cor-de-rosa. Minha irmã prefere fitas simples, e
ela detesta cor-de-rosa!
— E dentro da cela —
continuou o detetive Dupin, como se Klaus não tivesse falado nada, — eu
encontrei isto. — Ele ergueu um pequeno círculo feito de vidro. — Esta é uma das lentes dos óculos de Klaus.
— Mas não está faltando
lente nenhuma nos meus óculos! — gritou Klaus quando todos se voltaram e
olharam para ele com suspeita e medo. Ele tirou os óculos e mostrou à multidão.
— Podem ver vocês mesmos.
— Só porque vocês
substituíram a sua fita e a sua lente — disse a oficial Luciana, — isso não
quer dizer que não sejam assassinos.
— Na verdade, eles não são
assassinos — disse o detetive Dupin. — Eles
são cúmplices. — Ele se inclinou para a frente de modo a ficar cara a cara com
os Baudelaire, e as crianças puderam sentir o seu hálito azedo enquanto ele
continuava falando. — Vocês órfãos não
são suficientemente espertos para saber o que a palavra ‘‘cúmplice’‘ significa,
mas ela significa ‘‘ajudante de assassinos’‘.
— Nós sabemos o que
significa a palavra ‘‘cúmplice’‘ — disse Klaus. — Do que você está falando?
— Estou falando das quatro
marcas de dentes no corpo do conde Olaf — disse o detetive Dupin, com um
estalar de dedos. — Só existe uma pessoa
não legal o bastante para morder as pessoas até a morte, e essa pessoa é Sunny
Baudelaire.
— E verdade que os dentes
dela são afiados — disse um outro membro do Conselho. — Notei isso quando ela serviu o meu sundae
com cobertura de chocolate.
— A nossa irmã não mordeu
ninguém até a morte — disse Violet indignada, uma palavra que aqui quer dizer ‘’em
defesa de um bebê inocente’’. — O
detetive Dupin está mentindo!
— Não é legal me acusar de
mentir — retrucou Dupin. — Em vez de
acusar os outros de coisas, por que vocês três crianças não nos contam onde
estavam na noite passada?
— Estávamos na casa de
Hector — disse Klaus. — Ele mesmo pode
confirmar. — O Baudelaire do meio ficou na ponta dos pés e gritou por cima da
multidão. — Hector! Diga a todos que
estávamos com você!
Os cidadãos olharam para um lado e para outro, os chapéus de corvo
dos
Anciãos bamboleando enquanto eles aguardavam uma palavra de
Hector. Mas não veio nenhuma palavra. As três crianças esperaram um momento no
silêncio tenso, achando que Hector certamente iria vencer o seu desassossego a
fim de salvá-los. Mas o factótum ficou em silêncio. Os únicos sons que as
crianças podiam ouvir era o marulhar do Chafariz Corvídeo e o crocitar dos
corvos empoleirados.
— Hector às vezes fica
desassossegado na frente de multidões — explicou Violet, — mas é verdade. Eu
passei a noite trabalhando no seu ateliê, e Klaus estava lendo na biblioteca
secreta, e...
— Chega de disparates! —
disse a oficial Luciana. — Você
realmente espera que nós acreditemos que o nosso excelente factótum está
construindo dispositivos mecânicos e tem uma biblioteca secreta? Imagino que a
seguir você vai dizer que ele está construindo coisas com penas!
— Já é bastante ruim que
vocês tenham matado o conde Olaf — disse um Ancião, — mas agora estão tentando
enquadrar Hector em outros crimes! Eu proponho que C.S.C. não sirva mais de
tutora para esses órfãos tão terríveis!
— Ouçam, ouçam! — gritaram
várias vozes dispersas na multidão, exatamente como as crianças tinham
planejado fazer elas mesmas.
— Vou enviar uma mensagem
ao Sr. Poe imediatamente — continuou o Ancião, — e o banqueiro virá retirá-los
daqui dentro de alguns dias.
— Alguns dias é demais para
esperar! — disse a Sra. Morrow, e diversos cidadãos aplaudiram concordando. — É preciso dar um jeito nessas crianças o
mais depressa possível.
— Eu proponho que as
queimemos na fogueira! — gritou o Sr. Lesko, que deu um passo à frente e
sacudiu o dedo para as crianças. — A
Regra nº 201 reza claramente: nada de assassinatos!
— Mas nós não assassinamos
ninguém! — exclamou Violet. — Uma fita,
uma lente e algumas marcas de mordida não são prova suficiente para acusar
alguém de assassinato!
— São provas suficientes
para mim! — gritou um Ancião. — Nós já
temos as tochas, vamos queimá-los agora mesmo!
— Esperem um momento —
disse outro Ancião. — Não podemos
simplesmente queimar pessoas na fogueira à hora que nos dá vontade! — Os
Baudelaire se entreolharam, aliviados porque um cidadão parecia imune à
psicologia das turbas. — Tenho um compromisso
muito importante daqui a dez minutos — continuou o Ancião. — Portanto é muito tarde para fazer isso
agora. Que tal hoje à noite, depois do jantar?
— Não vai dar — disse outro
membro do Conselho. — Tenho um jantar de
cerimônia hoje à noite. Que tal amanhã à tarde?
— Sim — disse alguém na
multidão. — Logo depois do almoço! É a
hora perfeita!
— Ouçam, ouçam! — gritou o Sr.
Lesko.
— Ouçam, ouçam! — gritou a Sra.
Morrow.
— Glaji! — gritou Sunny.
— Hector, ajude-nos! —
gritou Violet. — Por favor, diga a essas
pessoas que nós não somos assassinos!
— Eu já disse a vocês antes
— disse o detetive Dupin, sorrindo embaixo dos óculos de sol. — Somente Sunny é assassina. Vocês dois são
cúmplices, e vou pôr vocês todos na cadeia, que é onde devem estar. — Dupin agarrou os pulsos de Violet e Klaus com
uma mão descarnada e se inclinou para baixo para recolher Sunny com a outra. — Vejo vocês amanhã à tarde para queimá-los na
fogueira! — bradou ele para o resto da multidão, e arrastou os Baudelaire, se
debatendo, pela porta da cadeia central. As crianças foram arrastadas aos
tropeções para um corredor mal iluminado e assustador, ouvindo os sons distantes
da turba aplaudindo quando a porta bateu atrás delas.
— Vou pôr vocês na Cela de
Luxo — disse Dupin. — É a mais suja de
todas. — Ele os fez marchar por um
corredor escuro com muitas voltas e curvas, e os Baudelaire puderam ver
fileiras e mais fileiras de celas com as pesadas portas abertas. A única luz na
cadeia vinha de uma minúscula janela gradeada no alto de cada cela, mas as
crianças viram que todas as celas estavam vazias e cada qual parecia mais
imunda que as outras.
— É você quem vai estar na
cadeia dentro de pouco tempo, Olaf — disse Klaus, esperando ter se expressado
usando um tom muito mais seguro do que se sentia. — Você nunca vai se safar impune.
— Meu nome é Detetive Dupin
— disse o detetive Dupin, — e a única coisa que me interessa é levar vocês três
criminosos à Justiça.
— Mas se você nos queimar
na fogueira — disse depressa Violet, — jamais porá as mãos na fortuna
Baudelaire.
Dupin virou a última esquina do corredor e empurrou os Baudelaire
para dentro de uma pequena cela com apenas um banco de madeira à guisa de
mobiliário. À luz da janela gradeada, os irmãos puderam ver que a cela era bem
imunda, como Dupin prometera. O detetive estendeu a mão para fechar a porta,
mas, com os óculos de sol, estava escuro demais para enxergar a maçaneta, de
modo que ele teve de abrir mão da dissimulação — uma expressão que aqui
significa ‘’remover parte do seu disfarce por um momento’’ — e tirar os óculos
de sol. Por mais que as crianças detestassem o disfarce ridículo de Dupin, era
ainda pior ver a sobrancelha única do seu inimigo e os olhos muito, muito
brilhantes que havia tanto tempo os acossavam.
— Não se preocupem — disse
ele com sua voz roufenha. — Vocês não
serão queimados na fogueira — pelo menos não todos. Amanhã à tarde um de vocês
fará uma fuga miraculosa — se é que vocês consideram ser levados
clandestinamente por um dos meus assistentes para fora de C.S.C. como uma fuga.
Os outros dois serão queimados na fogueira conforme planejado. Vocês, seus
pirralhos órfãos, são bobos demais para perceber isto, mas um gênio como eu
sabe que é preciso uma cidade para educar uma criança, mas basta uma só criança
para herdar uma fortuna. — O vilão soltou uma gargalhada sonora e vulgar, e
começou a fechar a porta da cela. — Mas
eu não quero ser cruel — disse ele, sorrindo para mostrar que na verdade queria
ser tão cruel quanto possível. — Vou
deixar vocês três decidirem quem terá a honra de passar o resto da sua vidinha
insignificante comigo, e quem vai ser queimado na fogueira. Estarei de volta na
hora do almoço para ouvir a sua decisão.
Os órfãos Baudelaire ouviram a risadinha roufenha do seu inimigo
quando ele bateu a porta da cela e foi andando de volta pelo corredor com seus
sapatos de plástico, e sentiram uma sensação de peso no estômago, onde os
huevos rancheros que Hector preparara para eles na noite anterior ainda estavam
sendo digeridos. Quando alguma coisa está sendo digerida, é claro, ela vai
ficando cada vez menor à medida que o organismo vai usando todos os nutrientes
contidos na comida, mas não era assim que as três crianças se sentiam. Os
jovens não se sentiam como se as batatinhas que tinham comido no jantar
estivessem ficando menores. Os órfãos Baudelaire se agarraram uns nos outros na
luz pálida e, ouvindo a risada reverberar nas paredes da cadeia central, se perguntaram
até que tamanho ainda iriam crescer as batatas de suas vidas.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)