Capítulo 11
— Acho que você tem razão —
disse Violet. — Você já não é um bebê. Mas tome cuidado, Sunny. Ainda que você
seja uma mocinha, é perigoso ficar espionando vilões. E lembre-se, estamos bem
ao pé da queda d'água. Se precisar de nós, é só mandar outro sinal. — Sunny
abriu a boca para responder, mas antes que ela conseguisse emitir um único som,
as três crianças ouviram um prolongado ruído embaixo do carro de Olaf, como se
uma das serpentes do Dr. Montgomery estivesse lá. O carro oscilou de leve, e
Violet apontou para um dos pneus, que tinha murchado. — Eu devo ter furado —
disse Violet, — com os meus sapatos de alpinismo com garfos.
— Essa não é uma coisa
simpática para fazer — disse Quigley, — mas não posso dizer que sinto muito.
— Como vai indo o jantar, dentuça?
— gritou a voz cruel do conde Olaf, sobrepondose ao ruído do vento.
— Acho que é melhor ir
embora, antes que nos descubram — disse Violet, dando outro abraço na irmã e um
beijo na testa. — Logo nos veremos, Sunny.
— Até logo, Sunny — disse
Quigley. — Estou muito contente por conhecê-la em pessoa. Muito obrigado por
nos ajudar a encontrar o último santuário.
Sunny Baudelaire ergueu os olhos para Quigley, depois para a sua
irmã mais velha, e abriu para eles um grande e alegre sorriso com todos os seus
dentes impressionantes. Depois de passar tanto tempo na companhia de vilões,
ela estava alegre por estar com pessoas que respeitavam suas habilidades, apreciavam
seu trabalho e entendiam seu modo de falar. Mesmo que Klaus não estivesse ali,
ela se sentia como se sua família estivesse reunida e a temporada nas Montanhas
de Mão-Morta fosse ter um final feliz. Sunny estava errada quanto a isso, é
claro, mas naquele instante a mais jovem Baudelaire apenas sorriu para aquelas
duas pessoas que se preocupavam com ela, uma que acabara de conhecer e outra
que conhecia desde sempre, e se sentiu como se estivesse ficando mais alta
naquele exato momento.
— Feliz — disse a mocinha.
E todos os que a ouviram entenderam o que ela queria dizer.
Se você já viu o retrato de alguém que acabou de ter uma idéia,
deve ter notado a lâmpada acima da cabeça do retratado. Não é usual uma lâmpada
pairando no ar, mas essa imagem se tornou símbolo do pensamento, assim como a
imagem de um olho se tornou símbolo do crime e do comportamento desonesto.
Quando Violet e Quigley desceram de volta pelo escorregador de gelo, seus
sapatos de alpinismo assistidos por garfos se cravando no gelo a cada passo,
olharam para baixo e viram Klaus, iluminado pelos últimos raios do sol poente.
Ele segurava um farolete acima da cabeça para ajudar os dois alpinistas a
encontrar o caminho, mas parecia que ele tinha acabado de ter uma idéia.
— Ele deve ter encontrado
um farolete no meio dos destroços — disse Quigley. — Parece o que Jacques me
deu de presente.
— Espero que ele tenha
encontrado informações suficientes para decodificar o Colóquio Secreto
Criostático — disse Violet, e bateu o candelabro no gelo abaixo dos pés. — Tenha
cuidado aqui, Quigley. O gelo parece fino. Vamos contornar.
— Quando subimos o gelo
parecia estar mais sólido que agora — disse Quigley.
— Não é de admirar — disse
Violet. — Na subida furamos o gelo com os nossos garfos. Quando chegar a Falsa
Primavera, toda essa queda d'água estará meio descongelada.
— Quando chegar a Falsa
Primavera — disse Quigley, — espero que estejamos a caminho do último
santuário.
— Eu também — disse Violet,
e os dois alpinistas não disseram mais nada até chegar ao pé da queda d'água e
atravessar a lagoa congelada pelo caminho que Klaus indicava com o farolete.
— Estou tão contente por
vocês terem voltado inteiros — disse Klaus, iluminando os restos da sala de
jantar. — Está frio, mas se nos sentarmos atrás da entrada da biblioteca
estaremos protegidos do vento.
Mas Violet estava tão ansiosa por contar quem eles tinham
encontrado no cume da montanha que não podia esperar mais.
— É Sunny — disse ela. — É
Sunny quem está lá em cima. Era ela que estava nos mandando sinais.
— Sunny? — disse Klaus, com
os olhos tão arregalados quanto o sorriso. — Como ela foi parar lá? Ela está
bem? Por que você não a trouxe?
— Ela está bem — disse
Violet. — Está com o conde Olaf, mas está bem.
— Ele a machucou? —
perguntou Klaus.
Violet sacudiu a cabeça.
— Não — disse. — Ele a
obriga a cozinhar e a fazer toda a limpeza.
— Mas ela é um bebê! —
disse Klaus.
— Não é mais — disse
Violet. — Nós nem percebemos, Klaus, mas ela cresceu um bocado. Ela é jovem
demais para se encarregar de todas as tarefas domésticas, é claro, mas no meio
de todo o sofrimento que passamos, ela deixou de ser um bebê.
— Ela já tem idade
suficiente para espionar — disse Quigley. — Já descobriu quem ateou fogo na
base de operações.
— Foram duas pessoas
horríveis, um homem e uma mulher de auras ameaçadoras — disse Violet. — Até o
Olaf tem medo deles.
— O que eles estão fazendo
lá em cima? — perguntou Klaus.
— Uma espécie de reunião
vilanesca — disse Quigley. — Eles mencionaram um plano de recrutamento e uma
grande rede.
— Isso não me soa muito bem
— disse Klaus.
— Ainda há mais — disse
Violet. — O conde Olaf está com o dossiê Snicket e descobriu alguma coisa sobre
um local secreto — o último santuário onde C.S.C., pode se reunir. E por isso
que Sunny ficou lá. Se ouvir alguém comentar onde fica esse lugar, saberemos
onde encontrar os outros voluntários.
— Espero que ela consiga
descobrir — disse Klaus. — Sem ela, tudo o que eu descobri é inútil.
— O que você descobriu? —
perguntou Quigley.
— Vou mostrar — disse
Klaus, e seguiu na frente até as ruínas da biblioteca, onde Violet reparou que
ele estivera trabalhando. Seu caderno azul-escuro estava aberto, e várias
páginas estavam cheias de anotações. Ali perto havia uma porção de pedaços de
papel meio queimados, empilhados debaixo de uma xícara chamuscada que Klaus
usou como peso de papel, e todo o conteúdo da geladeira estava disposto em
semicírculo: o pote de mostarda, o vidro de azeitonas, três vidros de geléia e
as cebolinhas semicongeladas. O pote da conserva de um pepino só e o suco de
limão tinham sido postos de lado. — Essa é uma das pesquisas mais difíceis que
já fiz — disse Klaus, sentando-se junto ao seu caderno. — A biblioteca do juiz
Strauss era confusa, e a biblioteca gramatical da tia Josephine era maçante,
mas a biblioteca arrasada de C.S.C, é um desafio maior. Mesmo que soubesse que
livro estou procurando, ele pode ter se desfeito em cinzas.
— Você encontrou alguma
coisa sobre o Colóquio Secreto Criostático? — perguntou Quigley, sentando-se ao
lado dele.
— No começo, não — disse
Klaus. — O pedaço de papel que nos levou até a geladeira estava no meio das
cinzas, o que dificultou a busca. Mas depois encontrei uma página que devia ser
do mesmo livro. — Ele pegou o seu caderno e ergueu o farolete para poder
enxergar as páginas. — A página estava tão gasta — disse, — que a copiei para o
meu livro de lugar-comum. Ela explica o funcionamento do código.
— Leia para nós — disse
Violet, e Klaus aquiesceu, uma palavra que aqui significa ‘’aceitou a sugestão
de Violet e leu em voz alta um parágrafo muito complicado’’.
— O ‘’Colóquio Secreto
Criostático’’ — leu ele, — ‘’é um sistema de comunicação de emergência que se
vale dos produtos mais esotéricos que se pode encontrar em uma geladeira. Os
voluntários saberão que o código está sendo usado pela presença de cebol... — Ele
ergueu os olhos do caderno. — A sentença acaba aqui — disse, — mas suponho que
'cebol' seja a primeira parte de 'cebolinhas semicongeladas’’. Se houver alguma
cebolinha semicongelada na geladeira, deverá haver também uma mensagem.
— Entendi — disse Violet, —
mas o que quer dizer esotéricos?
— Neste caso — disse Klaus,
— acho que quer dizer coisas que não são muito usadas, as coisas que ficam
muito tempo na geladeira.
— Como mostarda, geléias e
coisas assim — disse Violet. — Entendi.
— O recipiente da mensagem
encontrará as iniciais dele ou dela, conforme especificado por um dos nossos
voluntários poetas, como se segue' — continuou Klaus. — E então vem um
poeminha: — Dos potes de geléia, o mais escuro Contém o destinatário seguro.
— Isso é um dístico — disse
Quigley. — Como os que a minha irmã escreve.
— Não creio que a sua irmã
tenha escrito esse poema — disse Violet. — O código deve ter sido inventado
antes de ela nascer.
— Foi o que pensei — disse
Klaus, — mas quem será que ensinou Isadora a fazer dísticos? Pode ter sido um
voluntário.
— Ela teve um professor de
poesia quando éramos pequenos — disse Quigley, — mas nunca cheguei a
conhecê-lo. Sempre tive aulas de cartografia.
— E a sua habilidade para
fazer mapas — disse Violet, — nos levou à base de operações.
— E a sua habilidade de
inventora — disse Klaus, — possibilitou escalar o Cume das Aflições.
— E a sua habilidade em
pesquisas está nos ajudando agora — disse Violet. — E como se estivéssemos em
treinamento sem saber.
— Nunca pensei que aprender
cartografia fosse um treinamento — disse Quigley. — Era apenas algo de que eu
gostava.
— Bem, eu nunca tive
treinamento em poesia — disse Klaus, — mas o dístico parece dizer que dentro do
pote de geléia mais escuro está o nome da pessoa que deve receber a mensagem. —
Violet olhou para os três potes de geléia. — Tem de damasco, morango e
amora-preta — disse. — Amora-preta é a mais escura.
Klaus desatarraxou a tampa do pote de geléia.
— Olhem — disse ele, e
apontou o farolete para que Violet e Quigley pudessem ver. — Alguém escreveu
duas letras na superfície da geléia com uma faca: J e S.
— J.S. — disse Quigley. — Jacques
Snicket. —
— A mensagem não pode ser
para ele — disse Violet. — Jacques Snicket está morto.
— Talvez quem escreveu a
mensagem não soubesse — disse Klaus, e continuou a ler o livro de lugar-comum.
— ‘’Se necessário, o colóquio usará um calendário de dias da semana, baseado em
frutos, a fim de anunciar um encontro. Domingo é representado por um
solitário...’’ Aqui a frase foi cortada, mas acho que significa que essas
azeitonas são um código. Domingo é uma azeitona, segunda-feira, duas azeitonas,
e assim por diante.
— Quantas azeitonas há
naquele vidro? — perguntou Quigley.
— Cinco — disse Klaus,
franzindo o nariz. — Desde que os Squalor nos prepararam martínis aquosos, o
sabor das azeitonas me enjoa.
— Cinco azeitonas quer
dizer quinta-feira — disse Violet.
— Hoje é sexta — disse
Quigley. — O encontro dos voluntários vai ser daqui a menos de uma semana.
Os dois Baudelaire assentiram com a cabeça, e Klaus abriu seu
caderno de novo.
— ‘’Os condimentos preparados
à base de especiarias’’ — leu, — ‘’devem trazer uma etiqueta codificada,
remetendo os voluntários a poemas em código.’’
— Não entendi — disse
Quigley.
Klaus pegou o pote de mostarda.
— É aqui que a coisa fica
complicada. A mostarda é um condimento feito à base de especiarias e, conforme
o código, deveria nos remeter a um poema.
— Como a mostarda pode nos
remeter a um poema? — perguntou Violet. Klaus sorriu. — No começo eu também
fiquei confuso — disse ele, — mas depois resolvi dar uma olhada na lista de
ingredientes. Escutem só: ‘’Vinagre, sementes de mostarda, sal,
açafrão-da-índia, a quadra final da décima primeira estância de ‘’O jardim d Proserpina’’
de Algernon Charles Swinburne, e cálcio dissódico, um conservante supostamente
natural’’. Quatro linhas de um poema formam uma quadra, e uma estância é o
mesmo que uma estrofe, ou seja, uma seqüência de versos. Essa é a referência a
um poema.
— A lista de ingredientes
de uma geléia é um lugar perfeito para esconder um código — disse Violet. — Mas
você encontrou o poema?
Klaus franziu a testa e ergueu a xícara de chá.
— Encontrei uma pilha de
papéis queimados quase se desintegrando — disse ele,
— mas aqui está o que
restou dela. A quadra final da décima primeira estância de ‘’O jardim de
Proserpina’’, de Algernon Charles Swinburne.
— Conveniente — disse
Quigley.
— Um pouco conveniente
demais — disse Klaus. — A biblioteca inteira foi destruída, e o único poema que
sobreviveu é aquele que precisamos. Seria muita coincidência. — Ele ergueu o
pedaço de papel para que Violet e Quigley pudessem vê-lo. — Parece que alguém
sabia que iríamos procurar por isso.
— O que diz a quadra? —
perguntou Violet.
— Nada muito alegre — disse
Klaus, e iluminou o poema:
— Que não há vida que
sempre viva; Que não há defunto que reviva; Que mesmo exausto o rio à deriva
Tortuoso e seguro chega ao mar.
As crianças estremeceram e, sentadas no chão, chegaram ainda mais
perto uma da outra. Havia escurecido, e só o que se enxergava era o farolete de
Klaus. Se você já esteve no escuro munido de um farolete, talvez tenha sentido
que alguma coisa na escuridão em volta do facho de luz estava à espreita. Mas
se você resolver ler um poema sobre defuntos, com certeza não vai se sentir
melhor.
— Gostaria que Isadora
estivesse aqui — disse Quigley. — Ela poderia nos dizer o que significa esse
poema.
— Que mesmo exausto o rio à
deriva, tortuoso e seguro chega ao mar — repetiu Violet. — Você acha que isso
se refere ao último santuário?
— Não sei — disse Klaus. — Não
consegui encontrar mais nada que nos ajude a compreender o poema.
— E o suco de limão? —
perguntou Violet. — E o pepino em conserva? — Klaus sacudiu a cabeça. — Talvez
houvesse algo mais na mensagem — disse ele, — mas o fogo deu cabo de todo o
resto. Não achei mais nada na biblioteca que parecesse útil.
Violet pegou o pedaço de papel das mãos do irmão e leu mais uma
vez a quadra.
— Há alguma coisa meio
apagada aqui — disse ela. — Alguma coisa que foi escrita a lápis. — Quigley
enfiou a mão na sua mochila. — Esqueci que temos dois faroletes — disse, e
acendeu uma segunda luz sobre o papel. De fato havia uma palavra escrita a
lápis, quase apagada. Violet, Klaus e Quigley se inclinaram o máximo que
puderam para tentar ler. Os ventos noturnos fizeram o papel farfalhar, e as crianças
tremeram com os faroletes nas mãos. Mas por fim conseguiram direcionar os
fachos de luz sobre a quadra e ler o que estava escrito.
— Açucareiro — disseram em
uníssono, e se entreolharam.
— O que será que quer
dizer? — perguntou Klaus.
Violet suspirou.
— Quando estávamos embaixo
do carro de Olaf — disse ela a Quigley, — um dos vilões disse alguma coisa
sobre procurar um açucareiro. Lembra? — Quigley assentiu e pegou o seu caderno
roxo. — Jacques Snicket já mencionou um açucareiro — disse ele, — quando
estávamos na biblioteca do Dr. Montgomery. Disse que era importante
encontrá-lo. Anotei isso no topo de uma página do meu caderno de lugar-comum e
deixei o resto da página em branco, para o caso de conseguir mais alguma
informação. — Ele ergueu a página e os dois Baudelaire viram que não havia mais
nada escrito. — Nunca mais soube de nada a respeito — disse ele.
Klaus suspirou.
— Parece que quanto mais
sabemos, mais mistérios encontramos. Chegamos à base de operações de C.S.C., e
decodificamos uma mensagem, mas tudo o que sabemos é que existe um último
santuário e que os voluntários vão se reunir quinta-feira nesse lugar.
— Pode ser o suficiente —
disse Violet, — caso Sunny descubra onde fica o santuário.
— Mas como vamos tirar
Sunny das garras do conde Olaf? — perguntou Klaus.
— Com os nossos sapatos de
alpinismo assistidos por garfos — disse Quigley. — Podemos voltar lá em cima e
resgatar Sunny.
Violet sacudiu a cabeça.
— Se Sunny desaparecer —
disse ela, — vão procurar por nós. Do Cume das Aflições é possível enxergar
tudo, por quilômetros e quilômetros. E nós somos minoria absoluta.
— É verdade — admitiu
Quigley. — Há dez vilões lá em cima contra apenas quatro de nós. O que faremos
para salvá-la?
— Olaf está com alguém que
amamos — disse Klaus, pensativo. — Se tivéssemos alguma coisa que ele ama,
poderíamos trocá-la por Sunny. O que Olaf ama?
— Dinheiro — disse Violet.
— Incêndios — disse Quigley.
— Nós não temos dinheiro —
disse Klaus, — e Olaf não trocaria Sunny por um incêndio. Deve haver alguma
coisa que o deixaria muito infeliz se tirássemos dele. — Violet e Quigley se
entreolharam e sorriram. — O conde Olaf ama Esmé Squalor — disse Violet. — Se
Esmé fosse nossa prisioneira poderíamos negociar uma troca.
— É verdade — disse Klaus,
— mas Esmé não está em nosso poder.
— Mas podemos fazê-la
prisioneira — disse Quigley, e todos se calaram. Fazer uma pessoa prisioneira é
uma coisa vilanesca, e quando você pensa em fazer uma coisa vilanesca — mesmo
que tenha uma boa razão para isso —, você se sente como um vilão. Nos últimos
tempos os Baudelaire usaram disfarces e ajudaram a incendiar um parque de
diversões, e com isso estavam começando a se sentir como vilões. Mas Violet e
Klaus nunca tinham feito nada tão vilanesco como fazer alguém prisioneiro, e
olhando para Quigley puderam perceber que ele se sentia igualmente
desconfortável por estar ali sentado no escuro maquinando um plano vilanesco.
— Como agiríamos? —
perguntou Klaus.
— Poderíamos atraí-la —
disse Violet, — e fazê-la cair em uma armadilha. — Quigley escreveu alguma
coisa no seu livro de lugar-comum. — Poderíamos usar os Cilindros Sempre-verdes
Combustíveis — disse. — Esmé pensa que são cigarros e acha que cigarros são in.
Se acendermos alguns, pode ser que ela desça até aqui.
— Mas, e depois? —
perguntou Klaus.
Violet sentiu frio e enfiou a mão no bolso. Encontrou o que estava
procurando. De dentro do bolso, ela tirou uma fita de cabelo que estava ao lado
da faca de pão, esquecida ali dentro. A mais velha dos Baudelaire prendeu os
cabelos e pensou que era estranho usar seus talentos de inventora para capturar
alguém numa armadilha.
— A armadilha mais fácil de
construir — disse ela, — é um buraco. Podemos cavar um buraco fundo e cobri-lo
com um pouco dessa madeira queimada, para que Esmé não possa vê-lo. A madeira
está enfraquecida pelo fogo, quando ela pisar...
Violet não precisou terminar a sentença para que Klaus e Quigley concordassem.
— Há séculos os caçadores
usam armadilhas assim — disse Klaus, — para capturar animais.
— Isso não me consola.
Continuo me sentindo mal por fazer isso — disse Violet.
— Como poderíamos cavar um
buraco desses? — perguntou Quigley.
— Bem — disse Violet, — nós
não temos nenhuma ferramenta, mas podemos usar as mãos. A medida que o buraco
for ficando mais fundo, removeremos a terra com a ajuda de algum instrumento.
— Eu ainda tenho aquele
jarro — disse Klaus.
— Precisamos tomar cuidado
para não cairmos em nossa própria armadilha — disse Violet.
— Eu tenho uma corda na
mochila — disse Quigley. — Podemos amarrar uma ponta na arcada da biblioteca e
usá-la para sair do buraco.
Violet passou a mão na terra. Estava muito fria, porém solta, e
ela percebeu que eles não teriam problemas para cavar o buraco.
— Será que isso é certo? — perguntou
Violet. — Vocês acham que os nossos pais fariam a mesma coisa?
— Os nossos pais não estão
aqui — disse Klaus. — Podem ter estado, mas não estão aqui agora.
As crianças ficaram em silêncio e tentaram pensar um pouco, apesar
do frio e da escuridão. Decidir qual a coisa certa a fazer é mais ou menos como
decidir o que usar numa festa. É fácil perceber que vestir um equipamento de
mergulho ou levar um par de travesseiros seria uma grande mancada. Mas decidir
qual a coisa certa a fazer é muito mais delicado. Pode parecer certo vestir um
terno azul-marinho, mas se você chegar lá e outra pessoa estiver com a mesma
roupa, você pode acabar sendo confundido com aquela pessoa e algemado em seu lugar.
Usar seus sapatos favoritos pode parecer certo, mas uma súbita inundação na
festa pode estragá-los para sempre. Usar uma armadura nessa festa pode parecer
certo, mas pode haver muitas outras pessoas usando a mesma coisa, e nesse caso
você poderia acabar sendo pego em uma inundação devido a um caso de identidade
trocada, e quando fosse arrastado pela fúria das águas até o mar, desejaria
apenas ter vestido o equipamento para mergulho. A verdade é que você jamais
pode ter certeza de ter decidido vestir a coisa certa até que seja tarde demais
para voltar e mudar de idéia, e é por isso que o mundo está cheio de pessoas
maléficas e malvestidas e carentes de voluntários capazes de impedi-las.
— Eu não sei qual a coisa
certa a fazer — disse Violet, — mas o conde Olaf raptou Sunny, e pode ser que
tenhamos de capturar alguém para detê-lo.
Klaus concordou.
— Vamos combater fogo —
disse ele, — com fogo.
— Então é melhor pôr mãos à
obra — disse Quigley, e pôs-se em pé. — Quando surgir o sol, acenderemos os
Cilindros Sempre-verdes Combustíveis com a ajuda do espelho.
— Se queremos que o buraco
esteja pronto ao alvorecer — disse Violet, — vamos ter de cavar a noite
inteira.
— Onde vamos cavar? —
perguntou Klaus.
— Na frente da entrada —
decidiu Violet. — Depois podemos nos esconder atrás da arcada da biblioteca,
até que Esmé caia.
— Como vamos saber se ela
caiu — perguntou Quigley, — sem enxergá-la?
— Vamos ouvir — respondeu
Violet. — A madeira vai quebrar, e talvez Esmé grite.
Klaus estremeceu.
— Não será um som
agradável.
— Nossa situação é que não
é agradável — disse Violet, e a mais velha dos Baudelaire tinha razão. Não foi
agradável se ajoelhar na frente da entrada destruída da biblioteca, nem cavar
através das cinzas e da terra com as mãos nuas, enquanto as quatro correntezas
do vale sopravam. Não foi agradável para Violet e seu irmão transportar a terra
removida no jarro, enquanto Quigley amarrava sua corda na arcada para entrar e
sair do buraco que cada vez ia ficando mais fundo. Não foi agradável nem mesmo
fazer uma pausa para comer uma cenoura ou olhar para a reluzente queda d'água
congelada e imaginar Esmé Squalor se aproximando da base de operações em busca
de um Cilindro Sempre-verde Combustível. Mas a parte menos agradável da
situação não foi a terra fria, nem os ventos gélidos, nem a exaustão de cavar o
buraco noite adentro. A parte menos agradável foi imaginar que eles podiam
estar fazendo uma coisa vilanesca. Os irmãos Baudelaire não tinham certeza de
que cavar um buraco fundo para capturar uma vila era algo que seus pais ou
qualquer outro voluntário aprovariam, mas com tantos segredos de C.S.C.,
perdidos nas cinzas era impossível ter certeza de alguma coisa, e essa
incerteza os perseguiu a cada jarro cheio de terra, a cada subida pela corda e
a cada pedaço de madeira que puseram sobre o buraco para escondê-lo.
Quando os primeiros raios de sol apareceram no horizonte nevoento,
os Baudelaire ergueram os olhos para o escorregador de gelo. No topo das Montanhas
de Mão-Morta estava um grupo de vilões espionado por Sunny. Mas quando Violet e
Klaus olharam para o buraco fundo e escuro que Quigley os ajudara a cavar, se
perguntaram se não haveria um outro grupo de vilões, ao pé do escorregador.
Observando a coisa vilanesca que tinham feito, os três voluntários se
perguntaram se eles mesmos não eram também vilões, e essa era a pior sensação
do mundo.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)