Capítulo 2
Bisbilhotar — uma palavra que aqui significa ‘’ouvir conversas
interessantes sem ter sido convidado’’ — é um procedimento muito proveitoso e
divertido, mas não é educado. Os órfãos Baudelaire tinham vasta experiência em
não ser pegos bisbilhotando: as três crianças sabiam como caminhar do modo mais
silencioso possível pela área do Parque Caligari, e como se agachar do modo
mais invisível possível do lado de fora do trailer de madame Lulu. Se você estivesse
naquela fantasmagórica noite azul — e nada nas minhas pesquisas indica que
estivesse —, não teria ouvido sequer um ligeiro sussurro dos Baudelaire
enquanto bisbilhotavam a conversa de seus inimigos.
O conde Olaf e a sua trupe, ao contrário, faziam bastante barulho.
— Madame Lulu! — bradava o
conde Olaf, enquanto as crianças se ocultavam nas sombras. — Madame Lulu, sirva
um pouco de vinho para nós! Provocar incêndios e fugir das autoridades sempre
me deixa com muita sede!
— Eu prefiro leite
desnatado em caixinha — disse Esmé. — É
o que há de mais moderno com relação a bebidas.
— Salta cinco copas de
vinho e um caixinha de leite, faz favor — respondeu uma voz de mulher com um
sotaque conhecido. Não faz muito tempo, quando Esmé Squalor era a tutora dos
Baudelaire, Olaf se disfarçara de uma pessoa que não falava a língua muito bem
e, como parte do disfarce, usava um sotaque muito parecido com aquele que
ouviam agora. Os Baudelaire tentaram espiar pela janela, mas madame Lulu
fechara muito bem as cortinas. — Eu está
emocionada, faz favor, de ver você, meu Olaf. Bem-vinda na minha trailer. Como
está vida para você?
— Estivemos muito atarefados
— disse o homem de mãos de gancho, usando uma expressão que aqui significa ‘’perseguindo
crianças inocentes durante muito tempo’’. — É muito difícil capturar aqueles órfãos.
— Nón se preocupar de
crianças, faz favor — retrucou madame Lulu. — Meu bola de cristal conta pra eu que meu
Olaf vai prevalecer.
— Se isso significa 'vai
assassinar crianças inocentes' — disse uma das mulheres de cara branca, — então
essa é a melhor notícia do dia.
— 'Prevalecer' significa
'vencer' — disse Olaf, — mas no meu caso é a mesma coisa que matar aqueles
Baudelaire. Mas quando, exatamente, a bola de cristal diz que eu vou
prevalecer, Lulu?
— Muito breve, faz favor —
respondeu madame Lulu. — Que presentes
você traz para eu do seu viagem, meu Olaf?
— Bem, vejamos — ele
respondeu. — Tenho aqui um encantador
colar de pérolas que furtei de uma enfermeira do Hospital Heimlich.
— Você prometeu que eu
ficaria com ele — disse Esmé. — Dê a ela
um daqueles chapéus de corvo que você surrupiou da cidade de Cultores Solidários
de Corvídeos.
— Vou lhe dizer uma coisa,
Lulu — disse Olaf, — suas habilidades de vidente são surpreendentes. Eu nunca
teria adivinhado que os Baudelaire estavam escondidos naquela cidadezinha
idiota, mas a sua bola de cristal soube logo de cara.
— Mágica ser mágica, faz
favor — respondeu Lulu. — Mais vinho,
meu Olaf?
— Obrigado — disse o conde.
— E agora, Lulu, precisamos de suas
habilidades de vidente mais uma vez.
— Os fedelhos Baudelaire
escapuliram de novo — disse o careca, — e o chefe tinha esperanças de que você
nos contasse para onde eles foram.
— Além disso — disse o
homem de mãos de gancho, — precisamos saber onde está o dossiê Snicket.
— E também se um dos pais
dos Baudelaire sobreviveu ao incêndio — completou Esmé. — Os órfãos acham que sim, mas a sua bola de
cristal poderia nos dizer com certeza.
— E eu quero mais um pouco
de vinho — disse uma das mulheres de cara branca.
— Tantos egzigências que
vocês faz — disse madame Lulu com o seu estranho sotaque. — Madame Lulu lembra quando
vocês vinha fazer visita só pela prazer de meu companhia, meu Olaf, faz favor.
— Não temos tempo para isso
— cortou Olaf. — Dá para consultar a
bola de cristal agora mesmo?
— Você conhece regras, meu
Olaf — retrucou Lulu. — De noite, bola
de cristal precisa dormir no Barraca do Destino, e quando sol nasce você pode
fazer um pergunta.
— Então vou fazer minha
primeira pergunta amanhã de manhã — disse Olaf, — e vamos ficar aqui até que
todas as minhas perguntas sejam respondidas.
— Oh, meu Olaf — disse
Lulu. — Faz favor, agora tempos muito
difíceis para Parque Caligari. Trazer parque para meio de sertón nón foi bom
idéia comercial, nón tem muito gente para ver madame Lulu ou bola de cristal.
Trailer de presentes de Parque Caligari tem só porcaria. E Casa dos Monstros de
madame Lulu, faz favor, nón tem aberraçóns bastante. Você, meu Olaf, faz visita
com todo o seu trupe, e fica muitas dias, e bebe a meu vinho, e come a meu
comida, tudo, tudo.
— Esse frango assado está
mesmo delicioso — disse o homem de mãos de gancho.
— Madame Lulu nón tem
dinheiro, faz favor — continuou a vidente. — Está difícil, meu Olaf, ler futuro para você
quando madame Lulu é tón pobre. Trailer minha tem goteira na teto, e madame
Lulu precisa dinheiro, faz favor, para poder fazer conserto.
— Eu já falei uma vez —
disse Olaf, — que quando pusermos as mãos na fortuna dos Baudelaire, o parque
terá dinheiro à vontade.
— Você fala este mesmo
coisa de fortuna Quagmire, meu Olaf — disse madame Lulu, — e de fortuna Snicket.
Mas nunca uma centavo madame Lulu viu. Nós precisa pensar, faz favor, em um
coisa para fazer Parque Caligari mais popular. Madame Lulu esperava que trupe
de meu Olaf podia apresentar uma grande espetáculo, como O casamento
maravilhoso. Um porçón de gente ia vim assistir.
— O patrão não pode ficar
subindo no palco — disse o careca. — Maquinar
esquemas é ocupação em tempo integral.
— Além disso — disse Esmé,
— eu já me aposentei da vida artística. Tudo o que quero agora é ser a namorada
do conde Olaf.
Houve um silêncio dentro do trailer, e a única coisa que os
Baudelaire ouviam era a mastigação ruidosa de alguém triturando ossos de
frango. Depois ouviram um suspiro prolongado, então Lulu falou mansamente:
— Você nunca tinha me
contado, meu Olaf, que Esmé era namorada seu. Pode ser que madame Lulu nón vai
deixar você e seu trupe ficar na meu parque.
— Ora, vamos, Lulu — disse
ele, e as crianças estremeceram. Olaf estava falando naquele tom de voz bem
conhecido dos Baudelaire, o que ele usava quando queria se passar por uma
pessoa gentil e decente. Mesmo com as cortinas fechadas, os Baudelaire
adivinharam que ele abria um sorriso cheio de dentes para Lulu e que seus olhos
brilhavam sob a sobrancelha única, como se ele estivesse prestes a contar uma
piada. — Eu já contei como comecei a
minha carreira de ator?
— É uma história fascinante
— disse o homem de mãos de gancho.
— Certamente — concordou
Olaf. — Me sirva um pouco mais de vinho,
e lhe contarei. Pois bem: sempre fui o sujeito mais lindo da escola, desde que
era criança, e um dia um jovem diretor...
Para os Baudelaire era o bastante. Tinham passado tempo suficiente
com o vilão para saber que, quando ele começava a falar de si mesmo, podia
continuar até as galinhas criarem dentes, uma expressão que aqui significa ‘’até
acabar o vinho’’ por isso se afastaram cuidadosamente do trailer e voltaram
para o carro, onde podiam conversar sem que ninguém os ouvisse. Na escuridão da
noite, o automóvel comprido e preto mais parecia um enorme buraco, e enquanto
os Baudelaire tentavam decidir o que fazer, parecia que estavam prestes a cair
lá dentro.
— Acho que devemos ir
embora — disse Klaus, hesitante. — Este
não é um lugar seguro, mas não sei para onde ir. Por quilômetros e quilômetros
só há deserto neste sertão. Se sairmos por aí, podemos morrer de sede ou ser
atacados por animais selvagens.
Violet se virou de repente, como se alguma coisa fosse atacá-los
naquele exato momento, mas o único animal selvagem à vista era o leão pintado
na placa.
— Mesmo que encontrássemos
alguém por aqui — disse ela, — achariam que somos assassinos e chamariam a
polícia. Além disso, madame Lulu responderá a todas as perguntas de Olaf amanhã
de manhã.
— Você não acha que a bola
de cristal funciona mesmo, acha? — perguntou Klaus. — Nunca foi provado que a
vidência seja um fato real.
— É, mas madame Lulu está
sempre contando ao conde Olaf onde estamos — lembrou Violet. — Em algum lugar ela consegue a informação. Se
ela puder descobrir onde está o dossiê Snicket ou confirmar se um de nossos
pais está vivo...
Sua voz falhou, mas nem era preciso terminar a sentença. Os três
Baudelaire sabiam que valia a pena ficar ali se fosse para descobrir alguma
coisa sobre um provável sobrevivente do incêndio.
— Sandover — disse Sunny, o
que queria dizer: ‘’Então vamos ficar’’.
— Pelo menos por esta noite
— concordou Klaus. — Mas onde vamos
ficar? Se não nos escondermos, é provável que nos reconheçam.
— Trólias? — perguntou Sunny.
— As pessoas que moram
naqueles trailers trabalham para madame Lulu — disse Klaus. — Como podemos
confiar neles?
— Eu tenho uma ideia —
disse Violet, e foi até a traseira do carro. Com um crééééc! ela abriu
novamente o porta-malas e se debruçou para dentro.
— Biruts! — disse Sunny, o
que queria dizer: ‘’Não creio que seja uma boa idéia, Violet’’.
— Sunny tem razão — disse
Klaus. — Olaf e seus comparsas podem
voltar a qualquer minuto para tirar as coisas do porta-malas. Não podemos nos
esconder aí.
— Mas não vamos nos
esconder — disse Violet, — não como vocês estão pensando. Afinal, Olaf e sua
trupe nunca se escondem, e no entanto conseguem não ser reconhecidos. Nós vamos
nos disfarçar.
— Gabrowha? — perguntou Sunny.
— Por que não funcionaria?
— respondeu Violet.
— Olaf usa disfarces e
consegue enganar todo mundo. Se conseguirmos fazer a madame Lulu pensar que
somos outras pessoas, poderemos ficar aqui até encontrar as respostas para as
nossas perguntas.
— Parece arriscado — disse
Klaus, — mas não é mais arriscado que nos esconder. Do que vamos nos disfarçar?
— Vamos dar uma olhada
nessas coisas — disse Violet, — e ver se temos alguma ideia.
— Mas teremos de apalpar —
disse Klaus. — Está escuro demais para
enxergar os disfarces.
Os Baudelaire enfiaram as mãos no porta-malas e começaram a procurar.
Como você já deve saber, toda vez que examinamos os pertences de outra pessoa
acabamos descobrindo muitas coisas interessantes sobre ela. Você pode fuçar as
cartas da sua irmã, por exemplo, e descobrir que ela planejava fugir com um
arquiduque. Ou pode mexer nas malas de um passageiro no trem e descobrir que
durante os últimos seis meses ele tirou fotografias suas em segredo. Outro dia
abri a geladeira de uma inimiga e descobri que ela era vegetariana, ou pelo
menos fingia ser, ou recebeu a visita de um vegetariano por alguns dias. E
enquanto os órfãos Baudelaire examinavam os objetos no porta-malas de Olaf,
descobriram muitas coisas desagradáveis. Violet encontrou parte de uma
lamparina de latão da qual se lembrava da época em que vivera com o tio Monty ,
e descobriu que Olaf tinha roubado o seu pobre tutor, além de tê-lo
assassinado. Klaus encontrou uma sacola de compras da loja In, e ficou sabendo
que Esmé Squalor continuava obcecada por roupas na última moda. Sunny encontrou
um par de meias-calças coberto de serragem, e logo percebeu que Olaf ainda não mandara
o seu disfarce de recepcionista para a lavanderia. Mas a coisa mais desalentadora
que as crianças descobriram ao revistar o porta-malas do carro de Olaf foi que
ele tinha uma enorme quantidade de disfarces à sua disposição. Ali estavam o
chapéu que Olaf usara para se disfarçar de capitão de navio, e até a navalha
com a qual ele deve ter raspado a cabeça para ficar parecido com um assistente
de laboratório. Os tênis que ele calçara para se disfarçar de treinador e os
calçados de plástico usados no disfarce de detetive também estavam lá. Mas havia
disfarces naquele porta-malas que os Baudelaire nunca tinham visto, e em quantidade
suficiente para Olaf se disfarçar pelo resto da vida e continuar na captura dos
órfãos sem jamais ser identificado.
— Podemos nos fazer passar
por quase qualquer pessoa — disse Violet. — Vejam, esta peruca me deixa parecida com um
palhaço, e esta outra me faz parecer um juiz.
— Você tem razão — disse
Klaus, erguendo uma caixa cheia de gavetas. — Isso parece um estojo de maquiagem, com
bigodes postiços, sobrancelhas postiças, e até olhos de vidro.
— Twicho! — disse Sunny,
erguendo um véu branco.
— Não, obrigada — disse
Violet. — Já usei esse véu quando Olaf
tentou se casar comigo. Além do mais, por que uma noiva estaria perambulando
pelo sertão?
— Vejam esse manto — disse
Klaus. — É o tipo de coisa que um rabino
usaria, mas não sei se madame Lulu acreditaria num rabino que viesse visitá-la
no meio da noite.
— Toldo! — disse Sunny, se
enrolando numas calças de malha. A mais jovem dos Baudelaire queria dizer
alguma coisa do tipo: ‘’Todas essas roupas são grandes demais para mim’’ e
tinha razão.
— Isso é ainda maior que o
terno risca de giz que Esmé comprou para você — disse Klaus, ajudando a irmã a
se desenrolar. — Ninguém acreditaria em
calças de malha que passeiam sozinhas pelo parque.
— Todas as roupas são
grandes demais — disse Violet. — Vejam
só esse casaco bege. Se eu tentasse usá-lo, acabaria parecendo uma aberração.
— Aberração! — disse Klaus.
— É isso!
— Issoquê? — perguntou Sunny.
— Madame Lulu disse que não
tinha aberrações o suficiente na Casa dos Monstros. Se ficarmos parecidos com
aberrações e dissermos a Lulu que procuramos trabalho, talvez ela nos contrate.
— Mas o que fazem
aberrações? — perguntou Violet.
— Uma vez, li um livro
sobre um tal John Merrick — disse Klaus. — Ele tinha defeitos de nascença que o
deformaram de uma maneira terrível. Um parque de diversões o expôs na Casa dos
Monstros, e as pessoas pagavam para olhar para ele.
— Por que as pessoas iriam
querer olhar para alguém com defeitos de nascença? — perguntou Violet. — Parece cruel.
— E é — disse Klaus. — Muitas vezes atiravam coisas no Sr. Merrick,
e o xingavam. Receio que a Casa dos Monstros não seja uma forma agradável de
entretenimento.
— Alguém devia ter dado um
basta nisso — disse Violet, — mas também deviam ter dado um basta no conde
Olaf, e até hoje ninguém fez isso.
— Radev — disse Sunny,
olhando nervosa ao redor deles. Com ‘’Radev’’ ela queria dizer: ‘’Nós é que
vamos ter um basta, se não nos disfarçarmos de uma vez’’ e seus irmãos
concordaram.
— Achei uma camisa
extravagante — disse Klaus.
— É cheia de babados e
laçarotes. E aqui está uma calça enorme com a barra de pele.
— Será que cabemos nela? —
perguntou Violet.
— Nós dois? — disse Klaus. — Se ficarmos com as nossas roupas por baixo,
imagino que sim. Cada um de nós fica numa perna só e dobra a outra perna dentro
da calça. Para andar, vamos ter de nos apoiar um no outro, mas pode funcionar.
— E podemos fazer a mesma
coisa com a camisa — disse Violet. — Vestimos
apenas um braço cada um e dobramos o outro para dentro.
— Mas não podemos esconder
uma de nossas cabeças — observou Klaus, — e com duas cabeças vamos parecer
uma...
— ... pessoa de duas
cabeças — completou Violet, — e uma pessoa de duas cabeças é o tipo de coisa
que a Casa dos Monstros se orgulharia em exibir.
— Bem pensado — disse
Klaus. — Além do mais, Olaf não está
perseguindo uma pessoa de duas cabeças. Mas precisamos disfarçar nossos rostos
também.
— Uma maquiagem resolve
isso — disse Violet. — Mamãe me ensinou
a desenhar cicatrizes falsas na pele
quando fez aquela peça sobre o assassino.
— E aqui está uma lata de
talco — disse Klaus. — Com isso podemos
deixar nosso cabelo grisalho.
— Você acha que o conde
Olaf vai notar a falta dessas coisas? — perguntou Violet.
— Duvido — respondeu Klaus.
— O porta-malas não está organizado, e
vários desses disfarces não são usados há muito tempo. Acho que podemos pegar o
necessário para nossa transformação sem que Olaf sinta falta de nada.
— Beriu? — disse Sunny, o
que queria dizer: ‘’E eu?’’.
— Esses disfarces foram
feitos para adultos — disse Violet, — mas tenho certeza de que vamos encontrar
alguma coisa para você. Talvez você pudesse se enfiar dentro de um sapato e se
transformar numa pessoa que só tem a cabeça e um pé. Seria uma aberração e
tanto.
— Chelish — disse Sunny, o
que queria dizer alguma coisa como: ‘’Sou grande demais para caber dentro de um
sapato’’.
— É verdade — disse Klaus. — Já faz tempo que você deixou de ser desse
tamanho. — Então ele enfiou a mão no porta-malas e tirou
de lá uma coisa pequena e peluda, parecida com um guaxinim. — Isso pode funcionar — disse. — Acho que essa é a barba postiça que Olaf
usou quando se passou por Stephano. É uma barba comprida, portanto deve
funcionar como um disfarce curto.
— Vamos ver — disse Violet.
— E já.
Em poucos minutos as crianças descobriram como era fácil se transformar
em outras pessoas. Violet, Klaus e Sunny já tinham alguma experiência em disfarces,
é claro — Klaus e Sunny tinham se passado por médicos no Hospital Heimlich, e
até Sunny podia se lembrar das vezes em que os irmãos se fantasiaram por pura
diversão, na época em que moravam na mansão Baudelaire. Mas agora eles se
sentiam mais como o conde Olaf e sua trupe, trabalhando silenciosamente no meio
da noite para apagar todos os sinais das suas verdadeiras identidades. Violet
encontrou no estojo de maquiagem vários daqueles lápis que se usa para tornar
as sobrancelhas mais dramáticas, e muito embora fosse indolor desenhar
cicatrizes no rosto de Klaus, ela tinha a sensação de estar quebrando a antiga
promessa que fizera aos pais de sempre cuidar dos irmãos e mantê-los afastados
do perigo. Klaus, por sua vez, ajudou Sunny a se enrolar na barba postiça, mas
quando viu seus olhos e as pontas de seus dentes emergirem do meio daquela
massa de pêlos, teve a sensação de ter dado a irmãzinha como alimento a algum pequeno
animal faminto. E quando Sunny foi ajudar os irmãos a abotoar a camisa e
salpicar talco nos cabelos, teve a sensação de que eles estavam se fundindo por
baixo das roupas de Olaf. Os três Baudelaire se examinaram atentamente, mas era
como se não houvesse mais Baudelaire nenhum, apenas dois estranhos, um com duas
cabeças e o outro com uma cabeça cheia de pêlos, ambos totalmente sozinhos no
sertão.
— Acho que estamos
irreconhecíveis — disse Klaus, tentando virar o rosto para a irmã mais velha. — Talvez seja porque eu tirei os óculos, mas
não estou nos reconhecendo.
— Você vai ficar sem os
óculos? — perguntou Violet.
— Sim, acho que consigo
enxergar se apertar os olhos — disse Klaus, apertando os olhos. — Desse jeito
não consigo ler, mas pelo menos não tropeço nas coisas. Se eu usar os óculos, o
conde Olaf pode me reconhecer.
— Então não use — disse
Violet, — eu também vou parar de usar fita no cabelo.
— É melhor disfarçarmos
nossas vozes — disse Klaus. — Vou falar
mais agudo. Que tal você falar com voz grave?
— Boa ideia — disse Violet,
já com a voz mais grave que podia fazer. — E você, Sunny, deve apenas rosnar.
— Grr — tentou Sunny.
— Parece um lobo — disse
Violet, já disfarçando a voz. — Vamos
contar à madame Lulu que você é meio lobo meio gente.
— Se fosse verdade, seria
terrível — disse Klaus, com uma voz bem aguda. — Mas nascer com duas cabeças não seria mais
fácil.
— Vamos dizer à Lulu que
passamos por experiências horrendas, mas que trabalhar no parque nos traz
esperanças de dias melhores — disse Violet com um suspiro. — E nem precisamos fingir. Nós realmente
passamos por experiências horrendas, e de fato esperamos que as coisas
melhorem. Somos aberrações, quase tanto quanto fingimos ser.
— Não diga isso — disse
Klaus, e então lembrou-se da nova voz. —
Não diga isso — repetiu, agora num tom bem mais agudo. — Não somos aberrações. Ainda somos os
Baudelaire, mesmo usando os disfarces de Olaf.
— Eu sei — disse Violet com
a nova voz, — mas é um pouco confuso fingir ser outra pessoa.
— Grr — rosnou Sunny,
concordando.
As três crianças devolveram ao porta-malas o resto das coisas de
Olaf e caminharam em silêncio até o trailer de madame Lulu. Andar dentro das mesmas
calças foi desconfortável para Violet e Klaus, e Sunny teve de parar a cada
passo para afastar a barba dos olhos. Era bastante confuso se passar por pessoas
completamente diferentes, ainda mais porque fazia muito tempo que os Baudelaire
não conseguiam ser quem eles realmente eram. Violet, Klaus e Sunny não se viam
como crianças que se escondem em porta-malas, ou que se disfarçam, ou que
tentam arranjar emprego numa Casa dos Monstros. Mesmo assim, eles mal se
lembravam da última vez em que relaxaram e fizeram as coisas de que gostavam.
Parecia que séculos haviam se passado desde que Violet pudera pensar em
invenções sem que fosse para livrá-los de dificuldades. Klaus não se lembrava
do último livro que lera por simples prazer, e não para tentar frustrar os
planos de Olaf. E Sunny tinha usado seus dentes muitas e muitas vezes para
escapar de situações difíceis, mas fazia um bom tempo que não mordia alguma
coisa por pura recreação. Cada passo desengonçado rumo ao trailer de madame
Lulu parecia levá-los cada vez para mais longe de suas vidas reais de órfãos
Baudelaire, e cada vez mais perto de suas vidas disfarçadas de aberrações do
Parque Caligari, e isso era realmente muito confuso. Quando Sunny bateu à porta,
madame Lulu gritou:
— Quem está aí? — e aquela
foi a primeira vez em suas vidas que essa simples pergunta os deixou confusos.
— Somos aberrações —
respondeu Violet, com a voz disfarçada. — Somos três... Quero dizer, duas aberrações à
procura de trabalho.
A porta se abriu com um rangido, e as crianças viram madame Lulu
pela primeira vez. Vestia uma túnica comprida e brilhante que parecia mudar de
cor conforme ela se mexia e um turbante parecido com o que o conde Olaf usara
na Escola Preparatória Prufrock. Tinha olhos escuros e penetrantes, e sobre
eles duas dramáticas sobrancelhas desconfiadas, que examinavam as crianças de
alto a baixo. Atrás dela, sentados a uma pequena mesa redonda, estavam o conde
Olaf, Esmé Squalor e os capangas de Olaf, todos olhando para os jovens com
curiosidade. E como se todos aqueles olhos não fossem suficientes, havia mais
um olho mirando os Baudelaire — um olho de vidro, preso a um cordão no pescoço
de madame Lulu. O olho era igual ao que estava pintado no trailer e tatuado no
tornozelo de Olaf. Era um olho que parecia acompanhar os Baudelaire aonde quer
que fossem, puxando-os cada vez mais fundo para o perturbador mistério de suas
vidas.
— Entra, faz favor — disse
madame Lulu, com seu sotaque esquisito, e as crianças obedeceram. Caminhando do
modo mais bizarro que podiam, os órfãos Baudelaire foram se aproximando
daqueles olhos, e se afastando cada vez mais de suas vidas.
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