Capítulo 3
Você deve ter estranhado o fato de Sunny Baudelaire quase não ter
sido mencionada nos dois primeiros capítulos deste livro, mas há várias razões
para isso. Uma delas é a dificuldade de pesquisar o que aconteceu com Sunny
durante a jornada no carro do conde Olaf. Os rastros dos pneus desapareceram há
muito tempo, e ocorreram tantas nevascas e avalanches nas Montanhas de
Mão-Morta, que a estrada quase desapareceu. A maioria das testemunhas faleceu
sob circunstâncias misteriosas, ou quem sabe o conde Olaf as tenha deixado tão assustadas
que elas não tiveram coragem de responder aos meus telegramas e cartões
solicitando uma entrevista. Até a carta atirada pela janela do carro de Olaf —
a maior prova de que aquelas pessoas perversas passaram por lá — foi recolhida
da estrada antes de eu começar as investigações. O desaparecimento dessa carta
é um bom sinal, indica que certos animais das Montanhas de Mão-Morta retornaram
aos seus lugares e estão reconstruindo seus ninhos, mas o fato é que isso
tornou muito difícil escrever o relato completo das viagens de Sunny.
Se você está interessado em saber o que aconteceu com ela,
enquanto seus irmãos tentavam deter o trailer, subiam o curso do Arroio
Enamorado rumo à nascente e lutavam contra mosquitos da neve, existe mais uma
história que você deve ler. Diz respeito a uma pessoa chamada Cinderela.
Cinderela era uma jovem a quem pessoas malvadas insultavam e forçavam a fazer
todas as tarefas domésticas. Ela acabou salva por sua fada-madrinha, que num
toque de mágica criou um vestido especial para ela usar em um baile. Foi lá que
Cinderela conheceu um garboso príncipe com quem se casou e viveu feliz para
sempre. Se você substituir o nome Cinderela por Sunny Baudelaire, e eliminar a
fada-madrinha, o vestido especial, o baile, o príncipe garboso, o casamento e o
viver feliz para sempre, terá uma noção clara de como foi a viagem de Sunny.
— Eu gostaria que esse bebê
parasse com essa choradeira irritante — disse o conde Olaf, franzindo a
sobrancelha única ao fazer outra curva violenta. — Nada como uma vítima de sequestro
choramingando para estragar uma agradável viagem de carro.
— Estou beliscando o máximo
que posso — disse Esmé Squalor, dando outro beliscão em Sunny com suas unhas
elegantes, — mas ela não cala a boca.
— Escute aqui, dentuça —
disse Olaf, desviando os olhos da estrada para encarar Sunny.
— Se não parar de berrar
vou arrumar uma boa razão para você chorar. — Sunny gemeu contrariada e enxugou
os olhos com as mãozinhas. Estivera chorando durante a maior parte do dia, desde
que se iniciou a viagem que nem o mais dedicado pesquisador foi capaz de
acompanhar, e agora, ao pôr-do-sol, ela ainda não conseguia se conter. Mas
quando Olaf a ameaçou, ela quase ficou mais irritada do que assustada. Porque é
detestável alguém lhe oferecer uma boa razão para chorar quando você já está
chorando; afinal, se você está chorando, não é preciso que lhe dêem outro
motivo para chorar. E Sunny Baudelaire tinha razões suficientes para estar
triste. Estava preocupada com seus irmãos, e não parava de pensar em como eles
evitariam ser arremessados para um fim trágico caso o trailer não parasse a
tempo. Também estava preocupada consigo mesma, pois o conde Olaf descobrira seu
disfarce, arrancara sua barba e a prendera no colo de Esmé. Além disso, os
beliscões da vilã doíam um bocado.
— Belisca não — dissera
para Esmé, mas a malvada e elegante mulher respondera com uma careta, como se
Sunny tivesse falado alguma bobagem.
— Quando não está chorando,
esse bebê fala em língua estrangeira. Não entendo nada — disse Esmé.
— Crianças sequestradas
nunca são engraçadinhas — disse o homem de mãos de gancho, que era talvez o
menos estimado da trupe de Olaf. — Lembra-se de quando pegamos os Quagmire,
patrão? Só reclamaram. Quando os pusemos na jaula, reclamaram. Quando os
prendemos num chafariz, reclamaram. Reclamações, reclamações, reclamações. Eles
me deixaram tão irritado que quase fiquei feliz quando escaparam.
— Feliz? — disse Olaf,
arreganhando os dentes. — Demos duro para roubar a fortuna dos Quagmire, e
mesmo assim não ficamos com nada. Foi uma perda de tempo.
— Não se sinta culpado,
Olaf — disse uma das mulheres de cara branca que estava no banco de trás. — Erros
acontecem.
— Não desta vez — disse o
conde Olaf. — Com os dois órfãos esmagados embaixo de um trailer destruído e
esse bebê no colo, a fortuna Baudelaire já é minha. E depois que chegarmos ao
Vale das Correntezas que Sopram Constantes e encontrarmos a base de operações,
não haverá com o que nos preocupar.
— Por quê? — perguntou
Hugo, o corcunda que trabalhara no parque.
— Eu também não entendi —
disse Kevin, outro ex-empregado do parque. Como ele tinha muita vergonha de ser
ambidestro, Esmé o convencera a entrar para a trupe de Olaf amarrando sua mão
direita atrás das costas para que ninguém notasse que funcionava tão bem quanto
à esquerda. — Somos novos na trupe, patrão, por isso nem sempre entendemos o
que acontece.
— Logo que me juntei à
trupe de Olaf — disse uma das mulheres de cara branca, — eu nunca tinha ouvido
falar do dossiê Snicket.
— Trabalhar para mim é um
aprendizado — disse Olaf. — Mas você não pode esperar que eu lhe explique tudo.
Sou um homem muito ocupado.
— Deixa que eu explico,
patrão — disse o homem de mãos de gancho. — O conde Olaf, como qualquer homem
de negócios, cometeu uma grande variedade de crimes.
— Só que aqueles
voluntários idiotas reuniram um arquivo de provas contra ele — disse Esmé. — Tentei
explicar que hoje em dia o crime é muito in, mas eles não estavam interessados.
— Sunny enxugou mais uma lágrima e suspirou. A jovem Baudelaire chegou quase a
se convencer de que tomar beliscões era melhor do que ouvir as bobagens de Esmé
Squalor sobre o que era in — a palavra que a vilã costumava usar para se
referir ao que estava ‘’na moda’’.
— Se não destruirmos esses
arquivos, o conde Olaf poderá ser preso — disse o homem de mãos de gancho. — Temos
razões para acreditar que uma parte dos arquivos está na base de operações de
C.S.C.
— O que quer dizer C.S.C.?
— perguntou Colette do chão do automóvel. Olaf tinha ordenado que ela se
valesse dos talentos de contorcionista para se enrodilhar aos pés dos outros
capangas.
— Essa informação é segredo
de Estado! — rosnou Olaf, para decepção de Sunny. — Eu já fui membro da
organização, mas descobri que era mais divertido ser um profissional autônomo.
— O que isso significa? —
perguntou o homem de mãos de gancho.
— Alguém que pratica crimes
— respondeu Esmé. — É muito in no momento.
— Falsa def — Sunny tentou
dizer em meio às lágrimas. Com ‘’Falsa def’’ ela queria dizer algo na linha de:
‘’Um profissional autônomo não tem nada a ver com crimes, é alguém que trabalha
sozinho, e não com um grupo’’. Mas Sunny ficou triste porque ninguém ali era
capaz de compreendê-la.
— Lá vem você com esse
tatibitate — disse Esmé. — E por isso que eu nunca quis ter crianças. A não ser
como serviçais, é claro.
— A viagem será mais fácil
do que eu pensava — disse Olaf. — O mapa indica que só temos de passar por mais
algumas cavernas.
— Existe algum hotel perto
da base de operações? — perguntou Esmé.
— Receio que não, amorzinho
— retrucou o vilão, — mas tenho duas barracas no porta-malas. Vamos acampar no
pico do Monte Fraught, mais conhecido como o Cume das Aflições, o ponto
culminante das Montanhas de Mão-Morta.
— No ponto culminante? — disse
Esmé. — Deve fazer muito frio lá.
— É verdade — admitiu Olaf,
— mas o Falso Manancial fica no caminho, portanto deve ficar mais quente.
— Mas e essa noite? — disse
a vilã. — Definitivamente não é in armar barracas num frio enregelante.
Olaf a encarou e começou a rir, e Sunny pôde sentir o mau hálito
que exalava de suas risadinhas perversas.
— Não seja boba — disse ele
para Esmé. — Você não precisará armar as barracas. É só aguardar boazinha
dentro do carro. O bebê com dentes de coelho é quem vai fazer o serviço para
nós.
Então a trupe inteira de Olaf começou a rir, e o carro foi tomado
pelo bafo dos vilões. Sunny derramou algumas lágrimas e virou o rosto para a
janela, para que ninguém notasse. As janelas estavam sujas, mas a jovem
Baudelaire conseguiu ver os estranhos picos quadrados das Montanhas de
Mão-Morta e as águas escuras do Arroio Enamorado. Na altura em que se
encontravam, o arroio era em grande parte gelo, e Sunny , ao vislumbrar as
águas escuras e congeladas, se perguntou onde estariam seus irmãos e se
chegariam a tempo de salvá-la.
Lembrou-se da primeira vez em que caíra nas garras de Olaf, quando
o vilão a amarrara e trancara numa gaiola pendurada do lado de fora de uma
torre. Foi a experiência mais aterradora que a mais jovem Baudelaire vivenciou,
e até hoje tinha pesadelos com os rangidos da gaiola e a visão de seus irmãos
olhando para ela do quintal de Olaf. Mas Violet construíra um arpéu para
salvá-la e Klaus fizera pesquisas legais, e assim acabaram frustrando o plano
de Olaf. Enquanto o carro levava Sunny para longe de seus irmãos, ela olhava
para o território solitário com a esperança de que eles viessem salvá-la outra
vez.
— Quanto tempo ficaremos no
Cume das Aflições? — perguntou Hugo.
— O tempo que eu quiser, é
claro — respondeu o conde Olaf.
— Você logo vai perceber
que grande parte do nosso trabalho consiste em ter paciência — disse o homem de
mãos de gancho. — Eu sempre trago comigo alguma coisa que ajude a passar o
tempo, como um baralho ou uma pedra.
— Isso pode ser desagradável
— admitiu uma das mulheres de cara branca, — e também perigoso. Vários
camaradas nossos tiveram destinos terríveis.
— Mas valeu a pena — disse
o conde Olaf, indiferente, uma palavra que aqui significa ‘’sem dar a mínima
para os empregados que faleceram em serviço’’.
— Às vezes, é inevitável
que alguns morram queimados ou devorados por leões. O importante é lutar por
uma causa maior.
— E qual é a causa maior? —
perguntou Colette.
— Dinheiro! — gritou Esmé,
gananciosa. — Dinheiro e satisfação pessoal. E é exatamente isso o que vamos
conseguir com esse bebê chorão! Depois que roubarmos a fortuna Baudelaire
teremos dinheiro suficiente para viver uma vida luxuosa e cheia de novos planos
traiçoeiros! — Todos aplaudiram, e, sem dizer palavra, o conde Olaf deu um
sorrisinho sórdido para Sunny , enquanto o carro subia por uma colina íngreme e
esburacada. Quando os últimos raios de sol ameaçavam desaparecer do céu, o
carro freou.
— Aqui estamos — disse o
conde Olaf, e entregou as chaves do automóvel para Sunny. — Desça, órfã.
Descarregue o porta-malas e arme as barracas.
— Aproveite e traga umas
batatinhas para nós — disse Esmé, — vamos comer enquanto esperamos que você
apronte as coisas.
Esmé colocou Sunny no chão e depois bateu a porta do carro. O ar
gélido da montanha fez a mais nova dos Baudelaire tremer. O frio no ponto
culminante das Montanhas de Mão-Morta era tanto que suas lágrimas se congelaram
antes de escorrer, formando uma pequena máscara de gelo em seu rosto.
Cambaleante, Sunny pôs-se em pé e caminhou até o porta-malas. Bem que ela
pensou em andar mais um pouco e escapar de Olaf, mas aonde poderia ir? Sunny
correu os olhos pelos arredores e não viu nenhum lugar onde um bebê sozinho
pudesse ficar em segurança.
O Cume das Aflições não passava de um pequeno quadrado de pedra
suspenso no alto das Montanhas de Mão-Morta, e quando Sunny chegou ao
porta-malas do carro sentiu uma leve vertigem ao se aproximar das beiradas do
cume. À sua frente estendiam-se os picos congelados das outras montanhas,
entrecortados pelas águas negras do Arroio Enamorado e pelo caminho pedregoso
pelo qual o carro de Olaf subira. Mas atrás de si, Sunny encontrou uma paisagem
tão estranha que precisou de alguns minutos para compreender o que via.
Estendendo-se a partir de um dos pontos mais altos das Montanhas
de Mão- Morta, Sunny viu uma faixa branca e reluzente, parecida com um enorme pedaço
de papel dobrado para baixo ou a asa de algum pássaro extraordinário.
Aos poucos foi compreendendo do que se tratava: a nascente do
Arroio Enamorado refletindo os últimos raios de sol. Assim como muitos cursos
d’água, o Arroio se originava no interior das pedras, e era de dentro da pedra
mais alta da cadeia de montanhas que uma enorme queda d'água se projetava
escuridão abaixo. Embora fosse a época mais quente do ano, não fazia calor, e
assim como as lágrimas de Sunny tinham congelado em seu rosto, também a queda
d'água se congelara, formando um enorme escorregador de gelo. A visão era tão fantasmagórica
que Sunny precisou respirar fundo antes de se perguntar por que o gelo era
branco e não preto como as águas do Arroio Enamorado. Fóóón! Uma buzinada
ruidosa do automóvel do conde Olaf fez Sunny despertar dos seus pensamentos e
retomar a tarefa para a qual os vilões a tinham escalado. Abriu o porta-malas,
pegou um saco de batatinha frita e levou até os passageiros.
— Você demorou demais, órfã
— disse Olaf, em vez de dizer ‘’obrigado’. — Agora vá armar as duas barracas,
uma para mim e Esmé, outra para o pessoal da trupe.
— E onde o bebê vai dormir?
— perguntou o homem de mãos de gancho. — Na minha barraca, não. Ouvi dizer que
os bebês são capazes de se aproximar na surdina e roubar o seu fôlego enquanto
você dorme.
— Bem, só sei que comigo é
que ela não vai dormir — disse Esmé. — Não é in ter um bebê na barraca.
— Ela não vai dormir em
barraca nenhuma — decidiu Olaf. — No porta-malas há um grande prato de forno
com tampa. Ela pode muito bem dormir por lá.
— Será que ela estará
segura num prato de forno parecido com uma caçarola? — disse Esmé. — Lembre-se,
Olaf, querido, se ela morrer não botamos as mãos na fortuna Baudelaire.
— A tampa do prato tem
alguns buracos na parte de cima, ela poderá respirar — disse Olaf, — além do
que, a tampa a manterá protegida dos mosquitos da neve.
— Mosquitos da neve? —
perguntou Hugo.
— Mosquitos da neve são
insetos bem organizados e mal-humorados — explicou o conde Olaf, — que vivem em
frias áreas montanhosas e se divertem picando pessoas por puro prazer.
Simpatizo muito com eles.
— Nonat — disse Sunny , o
que queria dizer: ‘’Não vi nenhum inseto desse tipo lá fora’’, mas ninguém lhe
deu atenção.
— Será que ela não vai
fugir enquanto estivermos dormindo? — perguntou Kevin.
— Ela não se atreveria —
disse o conde Olaf, — e mesmo que optasse por sobreviver sozinha nas montanhas,
conseguiríamos vê-la daqui de cima. É por isso que estamos acampando no topo.
Se a fedelha escapar ou alguém tentar nos seguir, saberemos. Daqui é possível
ver tudo e todos a quilômetros de distância.
— Eureca — Sunny deixou
escapar. Ela queria dizer alguma coisa na linha de: ‘’Acabo de me dar conta de
uma coisa’’, mas não tinha intenção de dizer isso em voz alta.
— Pare de balbuciar e vá
trabalhar, fedelha dentuça! — disse Esmé Squalor. Sunny pôde ouvir as risadas
dos vilões e o róc-róc das batatinhas enquanto caminhava em direção ao
porta-malas.
Armar barracas pode ser uma tarefa frustrante, pois é complicado
organizar todo aquele pano e toda aquela armação para que ela funcione direito,
e é por isso que prefiro hotéis ou castelos alugados, que oferecem paredes
sólidas e serviço de camareira. Mas Sunny ainda contava com as desvantagens
extras de estar sozinha e no escuro, sendo que era uma novata na arte de andar
e estava preocupada com os irmãos. Por sorte a mais jovem dos Baudelaire tinha experiência
em desempenhar tarefas hercúleas, uma expressão que aqui significa ‘’realizar
feitos incrivelmente difíceis’’. Como você deve saber, quando o forçam a fazer
alguma coisa contra a sua vontade, o melhor é pensar em algo inspirador e
continuar em frente. Quando Sunny travou um duelo de espada e dente na Serraria
Alto-Astral, por exemplo, ela pensou em quanto se preocupava com os seus
irmãos, e pensar nisso a ajudou a derrotar a perversa Dra. Orwell.
Quando escalou o poço do elevador na Avenida Sombria 667, ela se
concentrou no desejo de reencontrar seus amigos Quagmire, e logo chegou até o apartamento
de cobertura. Assim, quando Sunny cavou um buraco na terra congelada com os
seus dentes para que as estacas da barraca permanecessem no lugar, ela pensou
em algo que a inspirasse, e por estranho que pareça era algo que o conde Olaf
tinha dito sobre ver tudo e todos a quilômetros de distância.
Enquanto armava as barracas e olhava para o escorregador de gelo,
Sunny decidiu que não tentaria escapar de Olaf e sua trupe. Porque se ela
conseguia ver tudo e todos do alto do Cume das Aflições, isso também queria
dizer que tudo e todos, inclusive Violet e Klaus Baudelaire, poderiam vê-la ali
em cima.
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