Capítulo 3
Tão desagradável quanto cortar-se com papel várias vezes no mesmo
dia, ou descobrir que alguém da família o denunciou aos seus inimigos, é ser entrevistado
para um emprego. É aflitivo explicar a alguém todas as coisas que você sabe
fazer na esperança de que lhe paguem para fazê-las. Uma vez, numa dessas
entrevistas, tive de explicar e demonstrar como era capaz de acertar uma
azeitona com arco-e-flecha, memorizar três páginas de poesia e dizer se havia
ou não veneno misturado no fondue de queijo, mesmo sem experimentar. Na maior
parte dos casos, a melhor estratégia para uma entrevista de emprego é ser
honesto, pois o pior que pode acontecer é você não conseguir o emprego e passar
o resto da vida atrás de comida no deserto, abrigado debaixo de uma árvore ou
de uma ponte. Mas, no caso dos Baudelaire, a situação era ainda mais
desesperadora. Eles não podiam ser honestos com madame Lulu, pois estavam
disfarçados, e o pior que podia acontecer era serem descobertos pelo conde Olaf
e sua trupe e passarem o resto de suas vidas em circunstâncias impensáveis de
tão ruins.
— Senta, faz favor, que
Lulu vai entrevistar vocês para emprego na parque — disse madame Lulu,
apontando para a mesa de Olaf e sua trupe. Sob o olhar de todos, Violet e Klaus
sentaram-se na mesma cadeira e Sunny arrastou-se para cima de outra. A trupe,
com os cotovelos sobre a mesa, comia lanches fornecidos por Lulu, enquanto Esmé
Squalor bebericava o seu leite desnatado e o conde Olaf prestava muita, muita
atenção nos Baudelaire.
— Vocês me parecem muito
familiares — disse ele.
— Talvez você já viu
aberraçóns antes, meu Olaf — disse Lulu. — Como é nome de aberraçóns?
— Meu nome é Beverly — disse Violet, inventando um nome tão
depressa quanto poderia inventar uma tábua de passar roupa. — E essa é a minha outra cabeça, Elliot.
Olaf esticou o braço para um aperto de mãos, e Violet e Klaus
tiveram de refletir por um momento antes de saber de quem era o braço que saía
pela manga direita para cumprimentar o vilão.
— É um prazer conhecê-los —
disse ele. — Deve ser muito difícil ter
duas cabeças
— Oh, sim — disse Klaus,
com a voz mais aguda que sabia fazer. — Você
nem imagina o trabalho que dá comprar roupas.
— A sua camisa — disse Esmé,
— é muito in.
— Não é porque somos
aberrações — disse Violet, — que não nos importamos com a moda.
— E como vocês fazem para
comer? — perguntou Olaf, com um brilho cínico nos Olhos. — Vocês têm
dificuldade para comer?
— Bem, eu..., quero dizer,
nós... — e antes que Klaus terminasse a
fala, Olaf pegou uma espiga de milho que estava num dos pratos e a estendeu
para as duas crianças.
— Vamos ver que grau de
dificuldade você tem — rosnou ele, e os seus capangas deram risadinhas. — Coma essa espiga de milho, aberração de duas
cabeças.
— Sim — concordou madame
Lulu. — Esta é melhor jeito de ver se
você pode trabalhar na parque. Come milho! Come milho!
Violet e Klaus se entreolharam, e então cada um estendeu uma mão
para pegar a espiga de milho e, desajeitados, levaram-na à frente de suas
bocas. Violet se inclinou para dar a primeira mordida, mas o movimento fez a
espiga escorregar da mão de Klaus e cair na mesa, fazendo todos soltarem
gargalhadas cruéis.
— Olhem só para ele! — riu
uma das mulheres de cara branca. — Não
consegue nem comer uma espiga de milho! Como é esquisito!
— Tente outra vez — disse
Olaf, com um sorriso perverso. — Pegue a
espiga da mesa, aberração.
As crianças obedeceram, e de novo levaram a espiga às suas bocas.
Klaus apertou os olhos e tentou dar uma mordida, mas quando Violet mudou a
posição da espiga para ajudá-lo, acabou acertando-lhe o rosto, e todo mundo —
com exceção de Sunny, é claro — desatou a rir mais uma vez.
— Vocês aberraçóns é
engraçadas — disse madame Lulu. De tanto rir ela precisou enxugar os olhos, e
quando fez isso, borrou ligeiramente uma de suas dramáticas sobrancelhas, como
se tivesse um pequeno machucado em cima do olho. — Tenta de novo, aberraçón Beverly -Elliot!
— Essa é a coisa mais
engraçada que eu já vi — disse o homem de mãos de gancho. — Sempre tive pena
das pessoas defeituosas, mas agora acho que elas são hilárias.
Violet e Klaus ficaram com vontade de dizer que um homem com
ganchos no lugar das mãos também devia penar para comer uma espiga de milho.
Depois de algumas mordidas, as crianças começaram a encontrar o caminho das
pedras, uma expressão que aqui significa ‘’descobrir como duas pessoas, com
somente duas mãos, podem comer uma única espiga de milho ao mesmo tempo’’, mas
ainda assim era uma tarefa bastante difícil. A manteiga que lambuzava a espiga
deixava suas bocas engorduradas, quando não escorria por seus queixos. Às
vezes, a posição da espiga era perfeita para um deles morder, mas cutucava a
outra cabeça. E muitas vezes a espiga de milho simplesmente escapava de suas
mãos, e todo mundo soltava aquela gargalhada.
— Isso é mais divertido que
fazer seqüestros! — disse o capanga careca de Olaf, que não parava de rir. — Lulu, essa aberração vai atrair pessoas de
muito longe, e tudo o que você vai ter de comprar é uma espiga de milho!
— Este é verdade, faz favor
— concordou madame Lulu, baixando os olhos para Violet e Klaus. — O multidón adora comilança porca. Vocês está
contratado para atraçón de Casa dos Monstros.
— E aquele outro? — perguntou
Esmé, às risadinhas, limpando o lábio superior sujo de leite. — O que é aquela
aberração, algum tipo de cachecol vivo?
— Chabo! — disse Sunny para
os irmãos. Ela queria dizer alguma coisa do tipo: ‘’Sei que é humilhante, mas
pelo menos os nossos disfarces funcionam!’’ e Violet se apressou em disfarçar a
tradução.
— Esta é Chabo, a Bebê-Lobo
— disse ela, com sua voz grave. — Sua
mãe era uma caçadora que se apaixonou por um belo lobo e teve com ele essa
pobre filha.
— Eu nem sabia que isso era
possível — disse o homem de mãos de gancho.
— Grr — rosnou Sunny.
— Pode ser engraçado vê-la
comendo milho também — sugeriu o careca e, com outra espiga de milho na mão,
acenou para a mais jovem dos Baudelaire. — Aqui, Chabo! Coma uma espiga de milho!
Sunny escancarou a boca, mas quando o careca viu as pontas dos
seus dentes aparecendo por detrás da barba, puxou a mão de volta, assustado.
— Opa! — disse ele. — Aquela aberração é feroz!
— Ela ainda é um pouco
selvagem — disse Klaus, com a voz aguda. — Ficamos com todas estas cicatrizes só por
provocá-la.
— Grr — rosnou Sunny, e
mordeu um talher de prata para demonstrar como era selvagem.
— Chabo vai ficar ecselente
atraçón na parque — pronunciou madame Lulu. — Pessoas sempre gosta de
violência, faz favor. Você também está contractada, Chabo.
— Apenas a mantenha longe
de mim — disse Esmé. — Um bebê-monstro
como esse é bem capaz de estragar a minha roupa.
— Grr! — rosnou Sunny.
— Vem com madame Lulu,
aberraçóns — disse Lulu. — Eu vai
mostrar trailer, faz favor, onde vocês vai fazer naninha.
— Vamos ficar aqui e tomar
mais vinho — disse o conde Olaf. — Congratulações
pelas novas aberrações, Lulu. Eu sabia que você teria sorte se eu estivesse por
perto.
— Todo mundo tem — disse
Esmé, e beijou Olaf na bochecha. Madame Lulu fez uma careta e levou as crianças
para fora do trailer.
— Vem comigo, aberraçóns,
faz favor — disse ela. — Vocês vai morar
na trailer dos aberraçóns. Vocês vai dividir com outros aberraçóns. Tem Hugo, Colette
e Kevin, todos aberraçóns. Todo dia vai ser dia de atraçón de Casa dos
Monstros. Beverly -Elliot, você vai comer milho, faz favor. Chabo, você vai
ficar atacando público, faz favor. Algum pergunta?
— Nós seremos pagos? —
perguntou Klaus. Ele pensou que um pouco de dinheiro podia ajudá-los quando já
tivessem conseguido as respostas que queriam e pudessem escapar dali.
— Na-na-na — disse madame
Lulu. — Madame Lulu nón vai dá dinheiro
para aberraçóns, faz favor. Quando você é aberraçón, tem que agradecer se
alguém dá trabalho para você. Olha homem com gancho nos mons: ele agradecido porque
trabalha para conde Olaf, apesar que conde Olaf nón dá para ele nada de fortuna
Baudelaire.
— Conde Olaf? — perguntou
Violet, fingindo não conhecer seu pior inimigo. — É aquele moço com uma sobrancelha só?
— Aquela é Olaf — disse
Lulu. — Homem brilhanta, mas melhor nón
falar coisas errados pra ele, faz favor. Madame Lulu sempre diz, você precisa
sempre dar para pessoas o que pessoas quer, portanto vocês precisa falar sempre
para Olaf que ele homem brilhanta.
— Vamos nos lembrar disso —
disse Klaus.
— Bom, faz favor — disse
Lulu. — Esta é trailer dos aberraçóns.
Bem-vindos na sua nova lar.
Ela parara diante de um trailer onde a palavra ABERRAÇÕES aparecia
pintada em grandes letras. A tinta parecia escorrer, como se a pintura fosse
fresca, mas a palavra estava tão desbotada que os Baudelaire perceberam que o
trailer tinha sido pintado havia muitos anos. Junto a ele havia uma barraca
esburacada onde estava afixada uma placa com o desenho de uma menina de três
olhos dizendo BEM-VINDO À CASA DOS MONSTROS. Madame Lulu passou pela placa e
bateu à porta do trailer.
— Aberraçóns! — gritou ela.
— Faz favor acorda, faz favor! Nós tem
novos aberraçóns aqui, vocês diz olá!
— Só um minuto, madame Lulu
— gritou uma voz detrás da porta.
— Nada de minuto, faz favor
— disse madame Lulu. — Agora! Eu é dono
da parque!
Quando a porta se abriu, apareceu um homem sonolento e giboso, uma
palavra que aqui significa ‘’que possui uma protuberância nas costas perto do
ombro, dando à pessoa uma aparência irregular’’. Usava um pijama rasgado nos
ombros por causa da corcunda e segurava uma pequena vela.
— Sei que a senhora é a
dona, madame Lulu — disse o homem, — mas estamos no meio da noite. A senhora
não quer que as suas aberrações fiquem descansadas?
— Madame Lulu nón está
muito preocupado com sono de aberraçóns — disse Lulu, desdenhosa. — Faz favor, conta pra novas aberraçóns como
deve fazer para atraçón de amanhã. O aberraçón de dois cabeças vai comer milho,
faz favor, e o pequena aberraçón lobo vai atacar público.
— Violência e comilança
porca — disse o homem com um suspiro. — Acho
que a multidão vai gostar.
— Claro que multidón vai
gostar — disse Lulu, — e entón Parque Caligari vai ganhar muita dinheira.
— E, quem sabe, a senhora
vai poder nos pagar — disse o homem.
— Nem pensar, faz favor —
respondeu Lulu. — Bom noite, aberraçóns.
— Boa noite, madame Lulu —
retrucou Violet, que preferiria ter sido chamada por um nome decente, mesmo que
inventado, a ser chamada de ‘’aberraçón’’, mas a vidente foi embora sem nem
olhar para trás. Os Baudelaire ainda ficaram no vão da porta do trailer por um
momento, vendo Lulu desaparecer na noite, e só então olharam para o homem e se
apresentaram de modo mais apropriado.
— Meu nome é Beverly — disse Violet. — Minha segunda cabeça se chama Elliot, e esta
é Chabo, a Bebê-Lobo.
— Grr! — rosnou Sunny.
— Eu sou Hugo — respondeu o
homem. — É bom ter novos colegas de
trabalho. Entrem no trailer, vou apresentá-los aos outros.
Mesmo com dificuldade para caminhar, Violet e Klaus seguiram Hugo,
e Sunny seguiu seus irmãos, engatinhando para ficar mais parecida com um
bebê-lobo. O trailer era pequeno, mas à luz da vela de Hugo era possível perceber
que estava arrumado e limpo. Havia uma pequena mesa de madeira no centro e
várias cadeiras em volta. Num canto havia várias roupas penduradas, inclusive
uma longa fileira de casacos idênticos, e um grande espelho para alguém se
pentear e se certificar de que está apresentável. Havia um pequeno fogão com
algumas panelas e frigideiras empilhadas e alguns vasos de plantas enfileirados
para receber a luz que vinha da janela. O trailer parecia ser um lugar
confortável, mesmo que não tivesse uma pequena bancada de trabalho onde Violet
pudesse inventar coisas, nem estantes de livros para Klaus fazer pesquisas, nem
tampouco uma pilha de cenouras ou de qualquer outro alimento crocante em que
Sunny pudesse cravar os dentes. Mas do que os Baudelaire realmente sentiram
falta quando entraram no trailer foi de um lugar para dormir, pelo menos até
que Hugo avançasse um pouco mais com a vela e iluminasse três redes penduradas em
ganchos nas paredes. Uma deIas estava vazia — e os Baudelaire presumiram que
Hugo dormia lá —, em outra havia uma mulher alta e magra de cabelos encaracolados,
que olhava para eles com os olhos apertados, e, na terceira, um homem com o
rosto muito enrugado ainda dormia.
— Kevin! — gritou Hugo para
o homem adormecido. — Kevin, acorde!
Temos novos colegas de trabalho. Vou precisar de ajuda para pendurar mais
redes.
O homem franziu o cenho e lançou um olhar furibundo para Hugo.
— Você não devia ter me
acordado — disse. — Estava sonhando que
não era uma aberração e não havia nada de errado comigo. Era maravilhoso.
Os Baudelaire deram uma boa conferida em Kevin quando ele desceu
da rede, e não encontraram nada que fosse aberrante; em compensação, quando ele
olhou para os Baudelaire, arregalou os olhos como se tivesse visto um fantasma.
— Palavra de honra — disse.
— Vocês dois são bem defeituosos.
— Tente ser gentil, Kevin —
disse Hugo. — Esta é Beverly -Elliot, e
lá no chão está Chabo, a Bebê-Lobo.
— Bebê-Lobo? — repetiu
Kevin, sacudindo a mão direita de Violet-Klaus. — Ela morde?
— Ela não gosta de
provocações — disse Violet.
— Eu também não — disse
Kevin, e baixou a cabeça. — Mas onde quer que eu esteja ouço as pessoas
cochichando: 'Lá vai Kevin, o monstro ambidestra'.
— Ambidestra? — disse
Klaus. — Isso não quer dizer que você é
destro e canhoto ao mesmo tempo?
— Então já ouviu falar de
mim — disse Kevin. — E foi por isso que
viajou até aqui, para o meio do sertão, só para ver alguém capaz de escrever o
próprio nome tanto com a mão esquerda como com a direita?
— Não — disse Klaus. — Apenas conheço a palavra ‘’ambidestra’’.
— Bem que eu notei que você
era sabido — disse Hugo. — Afinal, tem
duas vezes mais cérebro que todo mundo.
— Eu só tenho um cérebro —
disse Kevin, tristemente. — Um cérebro,
dois braços ambidestros e duas pernas ambidestras. Que aberração!
— É melhor do que ser
corcunda — disse Hugo. — As suas mãos
podem ser uma aberração, mas você tem os ombros absolutamente normais.
— De que me valem ombros
normais — disse Kevin, — se eles estão ligados a mãos que usam garfo e faca com
a mesma facilidade?
— Oh, Kevin — disse a
mulher, e desceu da rede para fazer-lhe um carinho na cabeça. — Eu sei que é deprimente ser tão bizarro, mas
tente ver o lado bom das coisas. Pelo menos, você está melhor do que eu. — Ela se voltou para as crianças com um sorriso
tímido. — Meu nome é Colette — disse, — e
se é para vocês rirem de mim, prefiro que riam agora e acabem com isso de uma
vez. — Os Baudelaire olharam para Colette e depois se entreolharam.
— Renufl — disse Sunny, o que
queria dizer alguma coisa como: ‘’Eu não
vejo nada de aberrante em você, mas mesmo que visse não daria risada, porque
não seria gentil’’.
— Aposto que isso é algum
tipo de risada de lobo — disse Colette, — mas não culpo Chabo por rir de uma
contorcionista.
— Contorcionista? —
perguntou Violet.
— Sim — suspirou Colette. — Posso dobrar o meu corpo em diversas
posições inusitadas. Vejam.
Colette suspirou novamente e iniciou uma seqüência de contorções.
Primeiro ela se curvou para baixo, pôs a cabeça entre as pernas e se enroscou
até virar uma bola no chão. Depois suspendeu o corpo inteiro com apenas alguns
dedos e trançou as pernas em espiral. Por fim, deu uma cambalhota no ar, ficou
um momento se equilibrando na cabeça e entrelaçando braços e pernas como se fosse
um novelo de barbante, e depois mirou os Baudelaire com uma expressão triste.
— Viram? — disse ela. — Sou uma completa aberração.
— Uau! — guinchou Sunny.
— Achei incrível — disse
Violet, — e Chabo também.
— É muito gentil da sua
parte — disse Colette, — mas eu tenho vergonha de ser assim.
— Mas se você tem vergonha
— disse Klaus, — por que não movimenta o seu corpo normalmente, em vez de fazer
contorções?
— Porque estou na Casa dos
Monstros, Elliot — respondeu Colette. — Ninguém
pagaria para me ver movimentando o corpo normalmente.
— É um dilema interessante
— disse Hugo, usando uma palavra difícil para ‘’problema’’ a qual os Baudelaire
aprenderam num livro jurídico na biblioteca da juíza Strauss. — Nós três gostaríamos de ser normais, e não
aberrações, mas pela manha as pessoas estarão na barraca esperando que Colette
se contorça em estranhas posições, que Beverly -Elliot coma milho, que Chabo
rosne e ataque a multidão, que Kevin escreva seu nome com as duas mãos e que eu
experimente um daqueles casacos. Madame Lulu diz que devemos dar às pessoas o
que elas querem, e elas querem aberrações fazendo seus números num palco.
Agora, vamos dormir, já é tarde. Kevin, me dê uma mão aqui para pendurar essas
redes, e depois vamos todos descansar um pouco.
— Eu daria até as duas mãos
— disse Kevin, taciturno. — Ambas são
ágeis. Oh, como eu queria ser ou destro ou canhoto!
— Tente se alegrar — disse
Colette, gentilmente. — Talvez amanhã
aconteça um milagre e consigamos todas as coisas que desejamos.
Ninguém no trailer disse mais nada, mas enquanto Hugo e Kevin
preparavam duas redes para os três Baudelaire, as crianças ficaram pensando
sobre o que Colette havia dito. Milagres são como almôndegas, porque ninguém
está exatamente de acordo sobre do que são feitos, de onde vêm ou com que frequência
devem aparecer. Algumas pessoas dizem que o nascer do sol é um milagre porque é
algo misterioso e muito bonito, mas há quem diga que é apenas um fato da vida,
porque acontece todos os dias e exageradamente cedo pela manha. Algumas pessoas
dizem que o telefone é um milagre, porque o fato de você poder falar com alguém
que está a milhares de quilômetros de distância é algo prodigioso, mas há quem
diga que não passa de um dispositivo manufaturado, feito com peças metálicas,
circuitos eletrônicos e fios fáceis de cortar. E algumas pessoas dizem que sair
sorrateiramente de um hotel é um milagre, especialmente se o saguão estiver
cheio de policiais, mas há quem considere isso apenas um fato da vida, porque
acontece todos os dias e exageradamente cedo pela manhã. Portanto você pode
pensar que existem tantos milagres no mundo que mal dá para contar, ou que
existem tão poucos que mal vale a pena mencionar, depende de como você passa as
suas manhãs, se admirando um belo crepúsculo ou descendo para um beco sem saída
por uma corda feita de toalhas.
Mas os Baudelaire pensavam num milagre enquanto tentavam dormir em
suas redes, e era um milagre que parecia ser maior do que qualquer almôndega
que o mundo já tenha visto. Enquanto Violet e Klaus buscavam a melhor posição dentro
da roupa comum e Sunny tentava ajeitar a barba de Olaf para não pinicar tanto,
o ranger de suas redes ressoava no trailer, e os três jovens pensavam num milagre
tão prodigioso e lindo que só de pensar dava uma dorzinha no coração. O milagre,
é claro, era que um de seus pais estivesse vivo, que ou seu pai ou sua mãe
tivessem sobrevivido ao incêndio que destruíra sua casa e dera início à sua jornada
de desventuras. A existência de mais um Baudelaire vivo seria um milagre tão
enorme e improvável que as crianças quase sentiam medo de desejá-lo, mas
desejavam assim mesmo. Eles pensaram no que Colette havia dito ‘’que talvez
acontecesse um milagre e todos conseguissem o que mais desejavam’’ e aguardaram
o amanhecer, quando então a bola de cristal de madame Lulu poderia anunciar o
milagre que os Baudelaire desejavam.
Por fim o sol nasceu, como faz todos os dias, exageradamente cedo
pela manhã. As três crianças tinham dormido pouco e desejado muito, e agora observavam
o trailer pouco a pouco se encher de luz, ouviam Hugo, Colette e Kevin se mexer
em suas redes, e se perguntavam se o conde Olaf já teria entrado na Barraca do Destino
e descoberto alguma coisa por lá. E já não agüentavam mais esperar, quando
ouviram o som de passos apressados e uma batida forte na porta.
— Acordem! Acordem! —
gritou o homem de mãos de gancho, mas antes de continuar a escrever o que ele
disse, preciso contar a você que existe mais uma similaridade entre um milagre
e uma almôndega, que é o fato de ambos parecerem ser uma coisa e acabarem
revelando-se outra. Isso aconteceu comigo num restaurante por quilo, quando se
revelou que havia uma pequena câmera escondida na almôndega que eu peguei. E
desta vez aconteceu com Violet, Klaus e Sunny, muito embora só bastante tempo
depois eles tenham descoberto que aquilo que o homem de mãos de gancho disse
era um pouco diferente do que eles entenderam quando o ouviram gritar do outro
lado da porta do trailer.
— Acordem! — disse ele
novamente, e bateu na porta. — Acordem e
andem depressa! Estou de mau humor e não tenho tempo para besteiras. O dia está
agitado no parque. A madame Lulu e o conde Olaf saíram em missão, estou encarregado
da Casa dos Monstros, a bola de cristal revelou que um dos pais daqueles
malditos Baudelaire ainda está vivo e o trailer dos presentes está desfalcado
de estatuetas.
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