Capítulo 5
Quando você tem muitas perguntas na cabeça e, de repente, surge
uma oportunidade de fazê-las, as perguntas tendem a se amontoar e tropeçar umas
nas outras, mais ou menos como os passageiros de um trem lotado que chega a uma
estação movimentada. Com Bruce e os Escoteiros da Neve adormecidos, os dois
Baudelaire finalmente tiveram oportunidade de conversar com o escoteiro de suéter,
mas não achavam jeito de fazer as perguntas com clareza.
— Como... — começou Violet,
mas a pergunta — Como você sabia que éramos os Baudelaire? — tropeçou na
pergunta — Quem é você? — e foi de encontro a — Você faz parte de C.S.C.? — e —
Afinal, o que quer dizer C.S.C.?
— Você... — disse Klaus,
mas a pergunta — Você sabe onde está a nossa irmã? — tropicou na pergunta — Você sabe se um dos
nossos pais está vivo? — que já estava brigando com — Como fazemos para chegar à
base de operações? — e — Será que um dia minhas irmãs e eu vamos encontrar um
lugar seguro para viver sem que o conde Olaf e sua trupe fiquem engendrando
planos e mais planos para roubar nossa fortuna? — muito embora o Baudelaire do
meio soubesse que era muito improvável que essa pergunta fosse respondida.
— Estou certo de que vocês
têm uma série de dúvidas — sussurrou o garoto misterioso, — mas não podemos
conversar aqui. Bruce tem sono leve, e já causou problemas suficientes para
C.S.C., mesmo sem conhecer nossos segredos. Prometo que responderei a todas as
perguntas, mas primeiro temos de chegar à base de operações. Venham!
Sem mais palavra, o escoteiro de suéter se virou e os Baudelaire
viram que em sua mochila estava inscrita a mesma insígnia que tinham visto no
Parque Caligari. À primeira vista parecia ser apenas um olho, mas as crianças
tinham descoberto que sob o desenho se escondiam as iniciais C.S.C. Assim que o
escoteiro começou a andar, os dois irmãos descartaram seus cobertores e se puseram
a segui-lo. Mas ele não os conduziu na direção da entrada, e sim para o fundo
da caverna, onde estivera a fogueira dos Escoteiros da Neve. Agora ela não
passava de uma pilha de cinzas escuras, cujo cheiro de fumaça ainda pairava
quente no ar. O escoteiro enfiou a mão no bolso e sacou uma lanterna.
— Eu esperei o fogo se
apagar antes de mostrar isso aqui a vocês — disse ele, e, com uma rápida
olhadela para os escoteiros adormecidos, dirigiu o facho de luz para o alto da
caverna. — Olhem.
Violet e Klaus olharam e viram que havia um buraco no teto,
suficiente para uma pessoa passar apertado. As últimas volutas de fumaça da
fogueira subiam para o buraco.
— Uma chaminé — murmurou Klaus.
— É por isso que a fumaça da fogueira não tomou a caverna.
— O nome oficial é Caminho
Secundário das Chamas — sussurrou o escoteiro. — Serve de chaminé e de passagem
secreta. Vai dessa caverna até o Vale das Correntezas que Sopram Constantes. Se
formos pela passagem, chegaremos à base de operações muito antes do que se
escalássemos a montanha por fora. Anos atrás havia um mastro de metal que
descia pelo centro do buraco para que as pessoas pudessem escorregar por ele e
se esconder aqui em caso de emergência. O mastro já não existe, mas quem sabe
os apoios para os pés ainda estejam nas laterais de pedra. — Ele dirigiu o
facho de luz para a parede da caverna e os Baudelaire puderam ver duas fileiras
de buracos entalhados nas paredes, perfeitos para firmar os pés e as mãos.
— Como você sabia disso? —
perguntou Violet.
O escoteiro olhou para ela e pareceu dar um sorriso por trás da máscara.
— Eu li em um livro chamado
Fenômenos notáveis das Montanhas de Mão-Morta, disse ele.
— Esse título me soa
familiar — disse Klaus.
— É bem possível que você o
conheça — retrucou o escoteiro. — Peguei emprestado da biblioteca do Dr.
Montgomery .
O Dr. Montgomery fora um dos primeiros tutores dos Baudelaire, e,
ao ouvir seu nome, Violet e Klaus se deram conta de que tinham outra remessa de
perguntas que gostariam de fazer.
— Quando... — começou
Violet.
— Por quê... — começou
Klaus.
— Carme... — Uma voz
surpreendeu os Baudelaire e o escoteiro, a voz de Bruce, que tinha acordado com
o som da conversa. As três crianças ficaram paralisadas por um momento,
enquanto o líder dos escoteiros se virava embaixo do cobertor e com um longo
suspiro adormecia de novo.
— Conversaremos quando
chegarmos à base de operações — sussurrou o escoteiro. — No Caminho Secundário
das Chamas qualquer som ecoa, portanto teremos de ficar em silêncio absoluto
enquanto subimos. Se os ruídos chegarem aos ouvidos de Bruce e dos escoteiros,
eles vão acordar. Como é muito escuro lá dentro, vocês vão ter de tatear a
parede para encontrar os apoios para os pés. E a atmosfera vai estar muito
enfumaçada, por isso é preciso que vocês continuem com as máscaras que filtram
o ar. Eu vou na frente para mostrar o caminho. Estão prontos?
Violet e Klaus se entreolharam. Muito embora não pudessem ver seus
rostos por trás das máscaras, os irmãos sabiam que não estavam nem um pouco
prontos. Seguir uma pessoa estranha por uma passagem secreta rumo a uma base de
operações que eles nem sabiam se existia não parecia uma coisa muito segura para
fazer. Da última vez em que concordaram em partir em condições semelhantes, sua
irmãzinha fora raptada. O que aconteceria dessa vez, quando estavam com uma
misteriosa figura mascarada em um buraco escuro e enfumaçado?
— Sei que deve ser difícil
confiar em mim depois que tantas pessoas lhes fizeram mal — disse o escoteiro
de suéter.
— Você pode nos dar uma razão
para confiar em você? — disse Violet. O escoteiro olhou para baixo um instante
e depois se virou para os dois Baudelaire. — Um de vocês mencionou a palavra ‘’xenófilo’’
quando estava conversando com Bruce sobre aquele juramento bobo — disse ele. — ‘’Xenófilo’’
significa alguém que gosta de estrangeiros.
— Ele está certo — murmurou
Klaus para a irmã.
— Sei que o fato de ter um
bom vocabulário não garante que eu seja uma boa pessoa — disse o menino. — Mas
significa que já li muita coisa. E, segundo a minha experiência, a
probabilidade de uma pessoa lida ser má é pequena.
Violet e Klaus se entreolharam. Nenhum deles estava inteiramente
convencido do que o escoteiro mascarado tinha dito. Existem, é claro, inúmeras
pessoas más que leram muitos livros, assim como há inúmeras pessoas bondosas
que gastaram o seu tempo de outra forma. Mas havia alguma verdade no que o menino
dissera, e eles tinham de admitir que seria melhor se arriscar com um estranho
que sabia o significado da palavra ‘’xenófilo’’ do que sair da caverna e tentar
encontrar a base de operações sem a ajuda de ninguém. Assim, os Baudelaire se
voltaram para o escoteiro, sinalizaram que podiam continuar e o seguiram na
procura dos apoios para os pés, não sem antes se certificar de que ainda
traziam consigo as peças de roupa que pegaram no trailer. Os apoios eram muito
práticos e fáceis de usar, e em pouco tempo os Baudelaire estavam adentrando a
escura e enfumaçada passagem.
O Caminho Secundário das Chamas, que conectava a base de operações
àquela antiga caverna dos Caçadores de Segredos Criminais, já tinha sido um dos
maiores segredos do mundo. Qualquer pessoa que quisesse passar por ele tinha de
responder corretamente a uma série de perguntas sobre a força da gravidade, os
hábitos das bestas carnívoras e os temas centrais dos romances russos, portanto
muito pouca gente sabia a localização exata do desfiladeiro. Desde que um camarada
meu retirou o mastro da passagem para usá-lo na construção de um submarino, ninguém
mais tinha passado por ali. Até que os Baudelaire começaram a subir atrás do
escoteiro de suéter.
Portanto, seria correto afirmar que Caminho Secundário das Chamas
era o caminho menos percorrido, menos ainda que o caminho por entre as
Montanhas de Mão-Morta, onde este livro começou.
Embora os Baudelaire tivessem uma boa razão para estar no caminho
menos percorrido, porque afinal precisavam chegar à base de operações e salvar
a irmã das garras do conde Olaf, não existe nenhuma razão para você estar no caminho
menos percorrido junto com eles e prosseguir na leitura deste lamentável capítulo.
O ar saturado de fumaça que subia da fogueira dos Escoteiros da Neve era difícil
de respirar, mesmo com máscara, e Violet e Klaus tiveram de lutar contra a
tosse, pois sabiam que dentro daquela passagem qualquer som ecoaria, e não
queriam acordar Bruce. E embora eles tenham lutado contra a coceira na garganta,
você não precisa lutar contra a desolação e continuar lendo a triste descrição
desse problema. Diversas aranhas tinham percebido que os apoios não vinham
sendo usados nos últimos tempos, e resolveram convertê-los em condomínios aracnídeos,
mas você não tem obrigação de ler o que acontece quando aranhas são subitamente
despertadas pela aparição de um pé em sua residência. E quanto mais os
Baudelaire seguiam o escoteiro, mais sentiam os fortes ventos congelantes do
topo da montanha soprarem furiosos desfiladeiro afora, e os três jovens se
agarraram nos apoios como quem se agarra à vida, na esperança de que o vento não
os soprasse de volta à caverna. Mas embora os Baudelaire achassem necessário
continuar a escalar até quando fosse necessário para chegar o mais depressa
possível à base de operações, e embora eu ache necessário descrever essa
escalada até o fim para que o meu relato seja o mais fiel e completo possível,
não é necessário que você acabe de ler o resto deste capítulo para se sentir o
mais miserável possível. Minha descrição da jornada dos Baudelaire pelo caminho
menos percorrido começa na próxima página, mas imploro a você que não o
percorra com eles. Em vez disso, pegue emprestada uma página do livro de Bruce,
pule para o capítulo seis e leia o relato das venturas de Sunny — palavra que
aqui significa ‘’oportunidades de bisbilhotar a trupe de Olaf enquanto cozinha
para eles’’ — ou então pule direto para o capítulo sete, em que os Baudelaire
mais velhos chegam à base de operações de C.S.C, e desmascaram o estranho que
os levou até lá. Ou então você pode trilhar o caminho menos percorrido e largar
este livro de uma vez, gastando o seu tempo em algo melhor do que terminar de
ler uma infeliz narrativa e se transformar em uma pessoa cansada, melancólica e
lida.
A escalada dos Baudelaire pelo
Caminho Secundário das Chamas foi tão sombria e traiçoeira que não basta
escrever: ‘’Minha querida irmã, corro grave
risco ao esconder uma carta para você dentro de um livro, mas tenho certeza de
que até mesmo as pessoas mais melancólicas e lidas do mundo acharam o relato
das vidas dos Baudelaire ainda mais miserável do que eu prometera, portanto
esse livro irá ficar nas prateleiras das livrarias, totalmente ignorado,
aguardando que você o abra e encontre esta mensagem. Como precaução,
acrescentei ao livro um aviso de que o resto do capítulo contém uma descrição
da miserável escalada dos Baudelaire pelo Caminho Secundário das Chamas, assim
qualquer um que tenha coragem de ler essa descrição deverá também ser valente o
bastante para ler esta minha carta para você.
Descobri o paradeiro da prova que irá limpar a minha barra, uma
frase que aqui significa 'provar às autoridades que foi o conde Olaf, e não
eu, quem provocou os incêndios'. Muitos anos atrás, naquele piquenique, você
sugeriu que um aparelho de chá seria um excelente lugar para esconder coisas
importantes e pequenas, caso algum dia eu viesse a precisar, e você estava
correta. (Por sorte, a outra sugestão que você me deu, no mesmo piquenique, de
que manga fatiada, feijão preto e aipo picadinho, com um toque de
pimenta-do-reino, suco de limão-galego e azeite de oliva resulta em uma
deliciosa salada, também revelou estar correta.)
Estou agora a caminho do Vale das Correntezas que Sopram
Constantes, a fim de continuar a minha pesquisa sobre o caso Baudelaire. Tenho
esperanças de recuperar a supracitada prova. E evidente que já não posso
recuperar minha felicidade, mas ao menos poderei limpar o meu nome. Da base de
operações de C.S.C., rumarei para o Hotel Desenlace. Pretendo chegar lá por
volta de... Bem, não seria sensato imprimir a data, mas você há de se lembrar
do aniversário de Beatrice. Encontre-me no hotel. Tente conseguir para nós um
quarto sem cortinas feias''.
Respeitosamente,
Lemony Snicket
P.S. Substituir o aipo por palmito picadinho também dá certo.
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Nada de spoilers! :)