Capítulo 9

Os dois Baudelaire ficaram ao lado de Quigley , olhando para o pequeno penacho
de fumaça, uma expressão que aqui significa "uma nuvem misteriosa de fumaça
verde". Depois da longa história que ele contara sobre como sobrevivera ao
incêndio e o que tinha aprendido a respeito de C.S.C, os Baudelaire mal podiam
acreditar que estavam diante de mais um mistério.
"É um Cilindro Sempre-verde Combustível", disse Quigley . "Alguém no topo da
queda d'água está

enviando um sinal."
"Sim", disse Violet, "mas quem?"
"Talvez seja um voluntário que escapou do incêndio", disse Klaus. "Está
sinalizando para algum outro voluntário que por acaso esteja por perto."
"Mas pode ser uma armadilha", disse Quigley . "Alguém pode estar atraindo
voluntários para o pico a fim de emboscá-los. Lembrem-se, os códigos de C.S.C.,
são usados por ambos os lados da cisão."
"Isso não devia se chamar código", disse Violet. "Alguém está tentando se
comunicar, mas não temos a menor idéia de quem seja nem o que está dizendo."
"É isso o que Sunny deve sentir quando fala com pessoas que não a conhecem
muito bem", disse Klaus, pensativo.
A menção do nome de Sunny , os Baudelaire se lembraram do quanto sentiam
sua falta.
"Seja um voluntário ou uma armadilha", disse Violet, "pode ser a nossa única
oportunidade de encontrar nossa irmãzinha."
"E meus irmãos", completou Quigley .
"Vamos mandar uma resposta", disse Klaus. "Você ainda tem aqueles Cilindros
Sempre-verdes Combustíveis?"
"É claro", disse Quigley , tirando-os da mochila, "mas Bruce confiscou os meus
fósforos, disse que não são seguros para crianças."
"Você acha que ele é inimigo de C.S.C.?", perguntou Klaus.
"Se todas as pessoas que advertem crianças sobre o perigo dos fósforos são
inimigas de C.S.C.", disse Violet com um sorriso, "então não temos a menor
chance de sobreviver."
"Mas como vamos acender o Cilindro sem fósforos?", perguntou Quigley . Violet
enfiou a mão no bolso. Os quatro ventos do Vale das Correntezas que Sopram
Constantes não permitiam que Violet prendesse seu cabelo, mas ela acabou
conseguindo tirar o cabelo dos olhos, e as engrenagens da sua mente inventiva
começaram a se mover. O sinal no céu não era nem enviado por um voluntário
nem uma armadilha. Era uma fumaça produzida por um bebê de dentes muito
compridos e um jeito confuso de falar. Quando Sunny Baudelaire disse "Lox", os
comparsas do conde Olaf interpretaram sua fala como um simples tatibitate, e
não uma explicação de como iria cozinhar o salmão que o homem de mãos de
gancho pescara. "Lox" é uma palavra que se refere a salmão defumado, e é um
jeito delicioso de apreciar um peixe fresco, especialmente se tiver à mão os
equipamentos e ingredientes adequados, uma frase que aqui significa "pães
especiais, queijo cremoso, pepino fatiado, pimenta-do-reino e alcaparras". O lox
tem a qualidade adicional de produzir um bocado de fumaça durante a
preparação, e essa é a razão por que Sunny escolheu esse método de preparar o
peixe, e não o gravlax — que é salmão marinado durante vários dias numa
mistura de especiarias — ou o sashimi — que é o salmão fatiado e servido cru.
Quando ela se lembrou do que o conde Olaf dissera sobre ser capaz de ver tudo e
todos de cima do pico onde estavam, a jovem Baudelaire percebeu que a frase
"onde há fumaça, há fogo" poderia ajudá-la. Enquanto Violet e Klaus ouviam a
extraordinária narrativa ao pé da queda d'água congelada, Sunny tratou de
preparar o lox e enviar um sinal aos irmãos que deviam estar por perto. Primeiro
ela enfiou o Cilindro Sempre-verde Combustível — que ela acreditava ser um
cigarro — em um pequeno canteiro de ervas, para aumentar a fumaça. Então
pôs o salmão dentro do prato de forno coberto que usara como cama. Em
questão de segundos, o peixe pescado pelo homem de mãos de gancho estava
absorvendo o calor e a fumaça do efervescente tubinho verde, e um grande
penacho de fumaça verde se elevava para os céus do Monte Fraught. Sunny
ergueu os olhos para o sinal que enviara e não pôde deixar de sorrir. Na última
vez em que fora separada dos irmãos ela ficara aguardando em uma gaiola até
que eles viessem salvá-la, mas agora estava crescida, e já era capaz de
participar ativamente na derrota do conde Olaf.
"Alguma coisa está cheirando bem", disse uma das mulheres de cara branca,
indo até a bandeja coberta. "Devo admitir que duvidava que uma criança
pudesse ficar encarregada da cozinha, mas sua receita parece deliciosa."
"Existe uma palavra para esse tipo de cozimento do peixe", disse o homem de
mãos de gancho, "mas não me lembro qual é."
"Lox", disse Sunny , mas ninguém a ouviu, pois o conde Olaf estava fazendo
bastante barulho ao sair da sua barraca acompanhado por Esmé e os sinistros
visitantes. Olaf estava com o dossiê Snicket nas mãos e fulminou Sunny com os
olhos brilhantes, muito brilhantes.
"Acabe com esta fumaça imediatamente^', ele ordenou. "Pensei que você não
passasse de uma prisioneira aterrorizada, mas começo a pensar que você é uma
espiã!"
"Como assim, Olaf?", perguntou a outra mulher de cara branca. "Ela está usando
o cigarro de Esmé para cozinhar o nosso peixe."
"Alguém pode ver a fumaça", rosnou Esmé, como se há alguns momentos antes
ela não tivesse fumado. "Onde há fumaça, há fogo."
O homem com barba mas sem cabelo catou um punhado de neve e jogou em
cima das ervas, apagando o Cilindro Sempre-verde Combustível. "Para quem
você está mandando sinais, bebê?", perguntou com sua voz rouca. "Se você é
uma espia, vamos atirá-la de cima dessa montanha."
"Gugu", disse Sunny , o que queria dizer algo do tipo: "Vou fazer de conta que sou
um bebê inocente, em vez de responder a essa pergunta".
"Estão vendo?", disse a mulher de cara branca, olhando para o homem com
barba mas sem cabelo. "Ela é apenas um bebê inocente."
"Talvez", disse a mulher com cabelo mas sem barba. "Não se atira um bebê de
cima de uma montanha, a não ser que seja absolutamente necessário."
"Bebês podem ser úteis", concordou o conde Olaf. "Estou pensando em recrutar
mais gente jovem para a minha trupe. Reclamam menos quando têm de fazer o
que eu mando."
"Mas nós nunca reclamamos", disse o homem de mãos de gancho. "Tento ser o
mais obediente possível."
"Chega de papo furado", disse o homem com barba mas sem cabelo. "Temos um
monte de esquemas para planejar. Tenho algumas informações que podem
ajudá-lo com a sua idéia de recrutamento, e, de acordo com o dossiê Snicket,
existe mais um lugar onde os voluntários se reúnem."
"O último lugar seguro", disse a mulher sinistra. "Temos de encontrá-lo e
queimá-lo."
"E quando fizermos isso", disse o conde Olaf, "a última prova dos nossos crimes
será
destruída. Nunca mais teremos de nos preocupar com as autoridades."
"Onde fica esse lugar?", perguntou Kevin.
Olaf abriu a boca para responder, porém a mulher com cabelo mas sem barba o
impediu com um gesto brusco e um olhar desconfiado para Sunny . "Não na
frente da dentuça", disse ela com sua voz muito, muito profunda. "Se ela souber o
que estamos prestes a fazer não vai conseguir dormir, e você precisa da sua
empregada bebê cheia de energia. Mande-a embora, então faremos os nossos
planos."
"É claro", disse Olaf, sorrindo nervoso para os sinistros visitantes. "Órfã, vá até o
carro e remova todas as migalhas de batatinha frita."
"Fútil", disse Sunny , o que queria dizer alguma coisa como: "Essa é uma tarefa
impossível", mas ela teve de ir mesmo assim, e a trupe de Olaf foi se reunir em
volta da pedra chata para ouvir o novo plano. Passando pelo fogo apagado e pela
panela onde iria dormir aquela noite, Sunny suspirou com tristeza, pensando que
o seu plano tinha dado errado. Mas quando chegou ao carro de Olaf e baixou os
olhos para a queda d'água congelada, viu uma coisa bastante animadora, uma
expressão que aqui significa "um penacho de fumaça verde idêntico ao que ela
tinha liberado no céu, vindo do final do escorregador de gelo". A mais jovem
Baudelaire sorriu. "Manos", disse consigo mesma. Sunny , é claro, não podia ter
certeza de que eram Violet e Klaus que estavam sinalizando, mas tinha
esperanças de que fossem eles, e as esperanças foram suficientes para alegrá-la
quando abriu a porta do carro e começou a soprar as migalhas de batata frita que
Olaf e sua trupe espalharam pelo estofamento.
E embora Sunny tivesse mais esperanças agora, no final da queda d'água
congelada os dois Baudelaire mais velhos não se sentiam nem um pouco
esperançosos notando, ao lado de Quigley , que a fumaça verde desaparecia do
pico mais alto.
"Alguém apagou o Cilindro Sempre-verde Combustível", disse Quigley , com um
tubinho verde na mão. "O que vocês acham que isso significa?"
"Não sei", disse Violet, e suspirou. "Talvez nosso esquema não esteja
funcionando."
"É claro que está", disse Klaus. "Você notou que o sol da tarde estava refletido na
queda d'água congelada, o que lhe deu a idéia de usar os princípios científicos da
convergência e da refração da luz, como você fez no Lago Lacrimoso contra as
sanguessugas. Você usou o espelho de Colette para captar os raios de sol e
direcioná-los para a ponta do Cilindro Sempre-verde Combustível, fazendo com
que o calor da luz solar o acendesse."
"Klaus tem razão", disse Quigley . "Não poderia ter funcionado melhor."
"Obrigada", disse Violet, "mas não foi isso que eu quis dizer. O código é que não
está
funcionando. Ainda não sabemos quem está em cima do pico, nem quem estava
nos mandando o sinal. Agora ele se dissipou, mas ainda não sabemos o que
significava."
"Talvez seja o caso de apagar o nosso Cilindro Sempre-verde Combustível", disse
Klaus.
"Talvez", concordou Violet, "ou talvez devamos subir até o topo da queda d'água
e descobrir quem está lá."
Quigley franziu a testa e pegou o seu livro de lugar-comum. "O único caminho
para o pico mais alto", disse, "é o que os Escoteiros da Neve estão seguindo.
Teríamos de voltar pela porta com Cerra-mento Supravernacular Complexo,
retroceder pelo Caminho Secundário das Chamas, retornar à caverna dos
Caçadores de Segredos Criminais, nos juntarmos outra vez aos escoteiros e
escalar durante um longo tempo."
"Esse não é o único caminho para o pico", disse Violet com um sorriso.
"E, sim", insistiu Quigley . "Olhe o mapa."
"Olhe a queda d'água", retrucou Violet, e as três crianças ergueram os olhos para
o reluzente escorregador de gelo.
"Você quer dizer", disse Klaus, "que pode inventar alguma coisa que nos leve até
o topo de uma queda d'água congelada?"
Mas Violet já estava amarrando o cabelo e estudando as ruínas da base de
operações de C.S.C. "Vou precisar daquele uquelele que você pegou no trailer",
disse para Klaus, "e daquele candelabro meio derretido que está perto da mesa
de jantar."
Klaus tirou o uquelele do bolso do casaco e entregou-o à irmã, depois foi até a
mesa e pegou o estranho objeto derretido. "A não ser que você precise de
alguma outra ajuda", disse ele,
"vou examinar os destroços da biblioteca e ver se há algum documento.
Poderíamos aproveitar para aprender o máximo possível sobre essa base de
operações."
"Boa idéia", disse Quigley , e enfiou a mão na mochila. De lá tirou um caderno
muito parecido com o que usava, mas com a capa azul-escura. "Tenho um
caderno de reserva", disse.
"Vocês podem estar interessados em começar seu próprio livro de lugarcomum."
"Muito obrigado", disse Klaus. "Vou anotar tudo o que encontrar. Quer participar
da busca?"
"Acho que vou ficar por aqui", disse Quigley , olhando para Violet. "Já ouvi falar
muito das invenções de Violet Baudelaire, e gostaria de vê-la trabalhar."
Klaus concordou e foi para a biblioteca destruída, enquanto Violet, sem graça por
causa do comentário de Quigley , se inclinava para recolher um garfo que
sobrevivera ao incêndio. Uma das tristezas do caso Baudelaire é que Violet
jamais conheceu um homem chamado CM. Kornbluth, um dos meus associados,
que passou a maior parte da vida no Vale das Correntes que Sopram Constantes
como instrutor de mecânica na base de operações de C.S.C. O sr. Kornbluth era
um homem tão cheio de segredos que ninguém jamais soube de onde viera nem
o que significavam o C e o M de seu nome. Passava grande parte do tempo
enfurnado no quarto, escrevendo histórias estranhas ou olhando pelas janelas da
cozinha. A única coisa que deixava o sr. Kornbluth de bom humor era um
estudante de mecânica especialmente promissor. Se um rapaz demonstrasse
interesse em radares de mares profundos, o sr. Kornbluth tirava os óculos e
sorria. Se uma moça levasse a ele uma pistola grampeadora que construíra, o sr.
Kornbluth batia palmas. E se um par de gêmeos lhe perguntasse como
redirecionar uma determinada fiação de cobre, ele tirava do bolso um saquinho
de papel e oferecia pistaches a todos os que estivessem em volta. Portanto,
quando penso em Violet Baudelaire no meio dos destroços da base de operações
de C.S.C., removendo cuidadosamente as cordas do uquelele e dobrando ao meio
alguns garfos, posso imaginar o sr. Kornbluth voltando as costas para a janela,
sorrindo para a inventora Baudelaire e dizendo: "Beatrice, venha até aqui! Veja o
que esta menina está fazendo!". Mas ele e seus pistaches já partiram há muito
tempo.
"O que você está fazendo?", perguntou Quigley .
"Uma coisa que nos fará subir por aquela queda d'água", respondeu Violet. "Eu
só queria que Sunny estivesse aqui. Seus dentes seriam perfeitos para cortar essas
cordas de uquelele."
"Talvez eu tenha algo que possa ajudar", disse Quigley , vasculhando a mochila.
"Quando eu estava no consultório do dr. Orwell, encontrei estas unhas cor-derosa
postiças. São horrorosas, mas são bem afiadas."
Violet pegou uma das unhas e olhou atentamente para ela. "Acho que o conde
Olaf estava usando uma dessas", disse ela, "como parte do seu disfarce de
recepcionista. É tão estranho você ter seguido nossos passos por todo esse tempo
e nós não sabermos nem que você
estava vivo."
"Eu sabia que vocês estavam vivos", disse Quigley . "Jacques Snicket me contou
tudo sobre sua família. Ele os conhecia desde antes de vocês nascerem."
"Imaginei", disse Violet cortando as cordas do uquelele. "Na fotografia que
encontramos, meus pais estão em pé ao lado de Jacques Snicket e um outro
homem."
"Provavelmente é o irmão de Jacques", disse Quigley . "Jacques me contou que
ele e seus dois irmãos estavam trabalhando em um dossiê importante."
"O dossiê Snicket", disse Violet. "Esperávamos encontrá-lo aqui." Quigley ergueu
os olhos para a queda d'água congelada. "Talvez a pessoa que nos enviou o sinal
saiba onde ele está", disse.
"Vamos descobrir num instante", disse Violet. "Por favor, tirem os sapatos."
"Os sapatos?", perguntou Quigley .
"A queda d'água congelada deve estar muito escorregadia", explicou Violet, "por
isso vou amarrar estes garfos com as cordas do uquelele nos dedos dos nossos
pés. Com a ajuda dos garfos teremos sapatos de alpinismo. E nas mãos vamos
segurar mais dois garfos. Como os talheres são quase tão pontudos quanto os
dentes de Sunny , os sapatos de alpinismo vão se cravar no gelo, e nós poderemos
andar sem perder o equilíbrio."
"Mas para que o candelabro?", perguntou Quigley , desamarrando os sapatos.
"Vou usá-lo para testar o gelo", disse Violet. "É raro uma queda d'água congelar
de maneira uniforme, ainda mais se o tempo está esquentando, e nós estamos
perto da Falsa Primavera. Deve haver lugares no escorregador em que o gelo é
só uma fina camada. Se cravarmos os nossos garfos no gelo fino, cairemos lá de
cima. O candelabro servirá para que, antes de cada passo, testemos os lugares
onde vamos pisar."
"Parece que vai ser uma jornada difícil", disse Quigley .
"Não mais difícil do que escalar o Caminho Secundário das Chamas", disse
Violet, amarrando um garfo no sapato de Quigley . "Vou usar o nó Sumac para
ficar bem seguro. Agora só precisamos dos sapatos de Klaus e..."
"Desculpe interromper, mas acho que isso pode ser importante", disse Klaus,
retornando da biblioteca. Ele segurava o caderno azul-escuro em uma das mãos
e um pequeno pedaço de papel chamuscado na outra. "Encontrei este pedaço de
papel em uma pilha de cinzas", disse ele.
"É de algum livro de códigos."
"O que está escrito?", perguntou Violet.
'"No e flagração resultando na destruição de um sant'", leu Klaus, "'tários devem
valer-se do Colóquio Secreto Cri, o qual está encoberto de acordo'."
"Isso não faz nenhum sentido", disse Quigley . "Você acha que está escrito em
código?"
"Como se fosse um código", disse Klaus. "Algumas partes da frase foram
queimadas, por isso teremos de decifrá-la como se estivesse em código.
'Flagração' é provavelmente a última parte da palavra 'conflagração', uma
palavra difícil para 'incêndio', e 'sant' é provavelmente o começo da palavra
'santuário', que significa um lugar seguro. Portanto a sentença deve começar
mais ou menos assim: "No evento de uma conflagração resultando na destruição
de um santuário'."
Violet levantou-se e olhou por cima do ombro dele. "Tários", disse ela, "é
provavelmente
'voluntários', mas não sei o que significa 'devem valer-se'."
"Significa 'fazer uso de'", disse Klaus, "como você está se valendo do uquelele e
daqueles garfos. Entendeu? Isso quer dizer que no caso de um lugar seguro ser
incendiado, eles vão deixar algum tipo de mensagem — 'Colóquio Secreto Cri."
"Mas o que poderia significar 'Colóquio Secreto Cri'?", perguntou Quigley .
"Criminal?
Crítico?"
"Criterioso?", tentou adivinhar Violet. "Cristalino?"
"Mas aqui diz que está 'encoberto de acordo ", salientou Klaus, "Isso significa que
o colóquio, que quer dizer 'diálogo', ou 'conversa', está escondido de uma
maneira lógica. Se fosse um Colóquio Secreto Subaquático, estaria escondido
embaixo da queda d'água ou da lagoa. Portanto nenhuma dessas palavras é a
certa. Onde alguém deixaria uma mensagem para não ser destruída pelo fogo?"
"Mas o fogo destrói tudo", disse Violet. "Olhe para a base de operações. Não
sobrou nada, a não ser a entrada da biblioteca e..."
"... e a geladeira", completou Klaus. "Que em uma linguagem pedante poderia
ser chamada de máquina criostática — que serve para manter baixas
temperaturas."
"Colóquio Secreto Criostático!", disse Quigley .
"Os voluntários deixaram uma mensagem", disse Klaus, a meio caminho da
geladeira,
"no único lugar que eles sabiam que não seria afetado pelo fogo."
"E o único lugar onde os inimigos não pensariam em procurar", completou
Quigley .
"Afinal, nunca se guarda nada tão importante na geladeira."
O que Quigley disse, é claro, não é de todo verdade. Como um envelope, uma
estatueta oca e um caixão de defunto, uma geladeira pode conter toda sorte de
coisas, inclusive as muito importantes, dependendo de como estiver o seu dia. Por
exemplo, uma geladeira pode conter um saco de gelo, que seria muito
importante se você estivesse ferido. Uma geladeira pode conter uma garrafa
d'água, que seria importante se você estivesse com sede. E uma geladeira pode
conter uma cestinha de morangos, que seria importante se algum maníaco lhe
dissesse: "Se você
não me der uma cestinha de morangos vou cutucar você com esta bengala". Mas
quando os dois Baudelaire mais velhos e Quigley Quagmire abriram a geladeira,
não encontraram nada que pudesse ajudar uma pessoa ferida, morrendo de sede
ou sendo ameaçada por um maníaco de bengala que adora morangos, nem nada
que parecesse importante. A geladeira estava quase vazia. Lá dentro havia
apenas algumas daquelas coisas que as pessoas guardam em geladeiras e quase
não usam, inclusive um pote de mostarda, um vidro de azeitonas, três vidros de
geléia de sabores diferentes, uma garrafa de suco de limão e um único pepino
em conserva, solitário em um pequeno recipiente de vidro.
"Não há nada aqui", disse Violet.
"Dê uma olhada na gaveta de legumes", disse Quigley . Klaus abriu a gaveta e
tirou de lá
algumas folhinhas tubulares, compridas e verdes.
"Têm cheiro de cebola", disse Klaus, "e estão meio duras, mas ainda não
congelaram."
"Cebolinhas Semicongeladas Cheirosas", disse Quigley .
"Mais um mistério", disse Violet, e seus olhos se encheram de lágrimas. "Não
temos nada, a não ser mistérios. Não sabemos onde está Sunny ; não sabemos
onde está o conde Olaf; não sabemos quem está enviando sinais do topo da queda
d'água nem o que está tentando dizer. E
agora temos uma mensagem misteriosa em um código misterioso dentro de uma
geladeira misteriosa e um maço de cebolinhas misteriosas na gaveta de legumes.
Estou cansada de mistérios. Quero alguém que nos ajude."
"Podemos ajudar um ao outro", disse Klaus. "Temos as suas invenções, os mapas
de Quigley e a minha pesquisa."
"E somos muito lidos", disse Quigley . "Isso deveria ser suficiente para resolver
qualquer mistério."
Violet suspirou e chutou alguma coisa caída no chão. Era uma pequena casca de
pistache escurecida pelo fogo. "É como se já fôssemos membros de C.S.C.",
disse ela. "Estamos mandando sinais, decifrando códigos e descobrindo segredos
nas ruínas de um incêndio."
"Você acha que os nossos pais ficariam orgulhosos de nós", perguntou Klaus, "por
seguirmos a sua trilha?"
"Não sei", disse Violet. "Afinal, eles mantinham C.S.C, em segredo."
"Talvez eles fossem nos contar mais tarde", disse Klaus.
"Ou talvez tivessem esperanças de que um dia descobríssemos", disse Violet.
"Sempre me pergunto a mesma coisa", disse Quigley . "Se eu pudesse voltar no
tempo para o momento em que minha mãe me mostrou a passagem secreta
embaixo da biblioteca, perguntaria por que ela guardava tantos segredos."
"E mais um mistério", disse Violet tristemente, e ergueu os olhos para o
escorregador de gelo. Escurecia, e a queda d'água congelada parecia cada vez
menos brilhante à luz do sol poente, como se aquela fosse a última chance de
escalar o escorregador e checar quem lhes enviara os sinais. "Cada um de nós
devia investigar o mistério que tem mais capacidade de resolver", disse Violet.
"Eu vou resolver o mistério do Cilindro Sempre-verde Combustível e descobrir
quem está lá em cima e o que quer. Klaus, você devia ficar aqui embaixo
resolvendo o mistério do Colóquio Secreto Criostático e decifrando o código para
descobrirmos qual é a mensagem."
"E eu ajudarei vocês dois", disse Quigley , pegando o seu caderno roxo. "Vou
deixar o meu livro de lugar-comum com Klaus e escalar a queda d'água com
Violet, para o caso de precisar da minha ajuda."
"Tem certeza?", perguntou Violet. "Você já nos trouxe até aqui, Quigley . Não
precisa se arriscar mais."
"Nós entenderemos", disse Klaus, "se você quiser ir embora e procurar seus
irmãos."
"Não diga absurdos", disse Quigley . "Somos todos parte do mesmo mistério. É
claro que vou ajudá-los."
Os dois Baudelaire se entreolharam e sorriram. É muito raro conhecer uma
pessoa digna de confiança que queira ajudar, e ao encontrá-la você pode se
sentir reconfortado e seguro, mesmo que esteja no meio de um vale ventoso no
topo das montanhas. Por um momento, enquanto seu amigo sorria de volta para
eles, era como se todos os mistérios já estivessem resolvidos, mesmo que Sunny
ainda estivesse longe, o conde Olaf à solta e a base de operações
de C.S.C, abandonada às cinzas. Só de saber que tinham encontrado uma pessoa
como Quigley Quagmire, Violet e Klaus se sentiram como se todos os códigos
fizessem sentido e todas as pistas tivessem sido checadas.
Violet deu um passo à frente, seus sapatos de alpinismo assistidos por garfos
produzindo pequenos ruídos sobre a terra gelada, e segurou a mão de Quigley .
"Obrigada", disse ela, "por se apresentar como voluntário."

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