Capítulo Dezenove

 Sua pequena cozinha era exatamente o que eu esperava de uma casa antiga provavelmente reformada meia dúzia de vezes durante o último século: chão de linóleo ligeiramente descascado perto das paredes; armários brancos funcionais e sem adornos — com a superfície grossa por causa das inúmeras camadas de tinta ao longo anos — e uma pia de aço inoxidável instalada abaixo de uma janela de madeira que deveria ter sido substituída anos antes. A bancada estava rachando, e encostado na parede, havia um fogão a lenha tão antigo quanto a própria casa. Em alguns pontos, notava-se a intromissão do mundo moderno: uma grande geladeira e uma lava-louças perto da pia; um microondas pendurado em canto, perto de meia garrafa de vinho tinto. Em alguns aspectos, lembrava a casa do meu pai.
Savannah abriu um armário e pegou uma taça. 
― Você quer uma taça de vinho?
Eu balancei minha cabeça. 
― Nunca fui muito de beber vinho.
Fiquei surpreso por ela não guardar a taça diante da minha negativa. Em vez disso, ela pegou a garrafa de vinho e serviu; colocou a taça na mesa e se sentou diante dela.
Sentamos à mesa e Savannah tomou um gole.
― Você mudou, observei.
Ela deu de ombros. 
― Muitas coisas mudaram desde a última vez que vi você.
Ela não disse mais nada e colocou a taça de volta na mesa. Quando falou novamente, tinha a voz suave. 
― Nunca pensei que seria o tipo de pessoa que anseia por tomar uma taça de vinho à noite, mas eu sou.  
Ela começou a girar a taça na mesa, e eu me perguntava o que havia acontecido com ela.
― Sabe o engraçado?, ela disse. ― Eu realmente me importo com o sabor. Quando bebi minha primeira taça, não sabia o que era bom ou ruim. Agora sou bastante seletiva na hora de comprar.
Eu não reconhecia plenamente a mulher sentada diante de mim e não sabia como reagir.
― Não me entenda errado, ela prosseguiu. ― Ainda me lembro de tudo que meus pais me ensinaram, e quase nunca tomo mais de uma taça por noite. Mas como o próprio Jesus transformou água em vinho, acho que não deve ser um grande pecado.
Sorri diante desse raciocínio, reconhecendo como era injusto esperar uma versão dela congelada no passado. 
― Eu não perguntei nada.
― Eu sei, ela disse. ― Mas você estava pensando.
Por um momento, o único som na cozinha era o zumbido baixo da geladeira. ― Sinto muito por seu pai, ela disse, alisando uma rachadura no tampo da mesa. ― Realmente sinto. Não sei dizer quantas vezes pensei nele nos últimos anos.
― Obrigado ― disse eu.
Savannah começou a girar a taça de novo, aparentemente perdida no redemoinho líquido. ― Você quer falar sobre isso?, ela perguntou.
Eu não tinha certeza, mas ao recostar-me na cadeira, as palavras surpreendentemente vieram. Contei sobre o primeiro ataque cardíaco, e depois o segundo, sobre as visitas que fiz a ele nos dois anos anteriores. Contei sobre nossa crescente amizade, e o conforto que sentia ao lado dele. Falei das caminhadas que ele fazia que por fim teve de interromper. Contei   sobre meus últimos dias com ele e a agonia de interná-lo em uma clínica. Quando descrevi o enterro e a fotografia que encontrei no envelope, ela tomou minha mão.
― Estou feliz que ele tenha guardado para você, ela disse, ― mas não fiquei surpresa.
― Eu fiquei ― disse, e ela riu. Era um som reconfortante.
Ela apertou minha mão. 
― Gostaria de ter ficado sabendo. Teria ido ao enterro.
― Não foi nada demais.
― Não tinha que ser. Ele era seu pai, e isso é tudo que importa. ― Ela hesitou antes de soltar minha mão e tomou outro gole de vinho.
― Você está pronto para comer? ― ela perguntou.
― Não sei ― disse, ruborizando ao lembrar o comentário que ela fizera antes.
Ela se inclinou para frente com um sorriso. 
― Que tal eu esquentar um prato de cozido e vamos ver o que acontece?
― Está gostoso? ― Quer dizer... quando nos conhecemos, antes, você nunca mencionou que soubesse cozinhar.
― É a receita especial da família ― disse ela, fingindo estar ofendida. ― Mas tenho de ser honesta: foi minha mãe quem fez. Ela trouxe ontem.
― A verdade vem à tona ― disse eu.
― Essa é a coisa engraçada sobre a verdade ― disse ela. ― Ela geralmente aparece. Ela se levantou, abriu a geladeira e inclinou-se para examinar as prateleiras. Pensava na aliança em seu dedo e em onde estaria seu marido quando ela ergue-se com o Tupperware nas mãos. Ela colocou algumas conchas de cozido em uma tigela e colocou-a no forno de microondas.
― Você quer mais alguma coisa? Que tal pão e manteiga?
― Seria ótimo, eu concordei.
Poucos minutos depois, a refeição foi posta à minha frente e o aroma me fez ter consciência pela primeira vez, do quanto eu estava com fome. Surpreendendo-me, Savannah sentou em seu lugar novamente, segurando a taça de vinho.
― Você não vai comer?
― Não estou com fome ― disse. ― Na verdade, não tenho comido muito recentemente. Ela tomou um gole enquanto eu dava minha primeira garfada e deixei o comentário passar.
― Você estava certa ― disse. ― Está delicioso.
Ela sorriu. ― Mamãe é uma ótima cozinheira. Seria de imaginar que eu tivesse aprendido também, mas não. Estava sempre muito ocupada. Muito estudo quando era jovem e, ultimamente, muita reforma. Ela apontou para a sala. ― É uma casa velha. Sei que não parece, mas trabalhamos muito aqui nos últimos dois anos.
― Está ótima.
― Você está apenas sendo educado, mas eu agradeço. ― Ela sorriu. ― Você devia ter visto o lugar quando me mudei. Estava parecido com o celeiro, sabe? Precisava de um telhado novo, mas é engraçado, ninguém pensa no telhado quando está imaginando reformar. É uma daquelas coisas que todo mundo espera ter na casa, mas nunca pensa que um dia terá de trocar. Quase tudo que fizemos entra nessa categoria. As bombas do aquecedor, janelas térmicas, os danos causados por cupins... foram muitos e longos dias. Ela tinha uma expressão sonhadora no rosto. 
― Fizemos a maior parte do trabalho nós mesmos. Como esta coza. Sei que precisamos de armários e piso novos, mas, quando nos mudamos, havia poças d‘água na sala de estar e nos quartos sempre que chovia. O que podíamos fazer? Tivemos de priorizar, e uma das primeiras coisas foi trocar todas as telhas do telhado. Devia estar quase 40 graus e eu lá em cima com uma pá, arrancando telhas, criando bolhas nas mãos. Mas... parecia o certo, sabe? Dois jovens começando a vida, trabalhando juntos para reformar sua casa? Havia uma sensação de... união. Foi a mesma coisa quando fizemos o piso da sala de estar. Deve ter levado duas semanas para lixar e nivelar de novo. Pintamos e envernizamos e, quando finalmente pudemos andar sobre ele, parecia o alicerce para o resto de nossas vidas.
― Você faz parecer quase romântico.
― Foi, de certa forma, ela concordou, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. ― Mas ultimamente não é tão romântico. Agora, só está ficando velho.
Eu ri inesperadamente, em seguida tossi e procurei um copo que não estava lá.
Ela empurrou a cadeira para trás. 
― Deixa eu pega um pouco de água para você, ela disse. Ela encheu um copo da torneira e colocou-o diante de mim. Enquanto bebia, sentia que ela me observava.
― O que foi?
― Não acredito no quanto você está diferente.
― Eu? ― achei difícil de acreditar.
― Sim, você, ― ela insistiu. ― Você está... mais velho.
― Sim, eu sou mais velho.  
― Eu sei, mas não é isso. São seus olhos. Eles estão... mais sérios do que antes. Como se tivessem visto o que não deveriam. Exaustos, por algum motivo.
Não disse nada em resposta, mas quando notou minha expressão, ela abanou a cabeça, envergonhada. 
― Não deveria ter dito isso. Não imagino o que você passou nos últimos anos.
Dei outra garfada no cozido, pensando em seu comentário. 
― Deixei o Iraque no início de 2004 ― disse. ― Estou na Alemanha desde então. Só uma parte do exército fica lá de cada vez, e nos revezamos. Provavelmente vou acabar voltando, mas não sei quando. Esperamos que as coisas se acalmem um pouco ate lá.
― Você já não deveria ter saído do exército?
― Eu me alistei de novo ― disse. ― Não havia motivo para não fazer isso.
Ambos sabíamos a razão, e ela concordou. 
― Quanto tempo agora?
― Até 2007.
― E depois?
― Não tenho certeza. Posso ficar por mais alguns anos. Ou talvez vá para a faculdade. Quem sabe. Posso até me graduar em educação especial. Já ouvi maravilhas sobre a área.
Seu sorriso era estranhamente triste e, por instantes, nenhum de nós disse nada.
 ― Há quanto tempo você está casada?
Ela ajeitou-se na cadeira.
 ― Vai fazer dois anos em novembro.
― Você se casou aqui?  
― Como se eu tivesse escolha. ― Ela revirou os olhos. ― A minha mãe realmente estava a fim dessa coisa de casamento perfeito. Sei que sou filha única, mas, em retrospecto, teria ficado mais feliz com algo muito menor. Cem convidados teria sido perfeito.
― Você considera isso menor?
― Comparado com o que foi? Sim. Não havia assentos suficientes para todos na igreja, e meu pai fala até hoje que vai passar anos pagando as contas. Ele está só me provocando, é claro. Metade dos convidados eram amigos dos meus pais, mas acho que é isso que acontece quando você se casa em sua cidade natal. Todo mundo, do carteiro ao barbeiro, é convidado.
― Mas você está feliz por estar de volta?
― É confortável aqui. Meus pais estão perto, e preciso disso, especialmente agora.
Ela não entrou em detalhes, debando o comentário no ar. Eu pensava nisso — e em uma centena de outras coisas — quando me levantei da mesa e coloquei meu prato na pia. Depois de passar uma água no prato, ouvi-a dizer às minhas costas:
― Pode deixar aí. Ainda não tirei a louça da máquina. Vou fazer isso mais tarde. Você quer mais alguma coisa? Minha mãe deixou duas tortas no balcão.
― Que tal um copo de leite? ― disse. Quando ela fez menção de se levantar, acrescentei: ― Eu posso pegar. Só me diga onde estão os copos.
― No armário da pia.
Peguei um copo do armário e fui até a geladeira. O leite estava na prateleira de cima, e nas prateleiras inferiores havia pelo menos uma dúzia de recipientes Tupperware cheios de comida. Enchi o copo e voltei para a mesa.  
― O que está acontecendo, Savannah?
Após essas palavras, ela virou-se para mim. ― O que você quer dizer?
― Seu marido ― disse.
― O que tem ele?
― Quando vou conhecê-lo?
Em vez de responder, Savannah levantou da mesa levando a taça de vinho. Despejou o conteúdo na pia e em seguida pegou uma xícara e uma caixa de chá.
― Você já conheceu ― disse ela, virando-se. Ela endireitou os ombros. ― É Tim.

***

Eu ouvia a colher batendo contra a xícara quando Savannah sentou novamente à minha frente.
― O quanto você quer saber?, ela murmurou, olhando a xícara de chá.
― Tudo ― disse eu. Eu me recostei na cadeira. ― Ou nada. Ainda não tenho certeza.
Ela bufou. 
― Acho que faz sentido.
Eu uni as mãos. 
― Quando começou?
― Não tenho certeza, ela disse. ― Sei que parece loucura, mas não aconteceu como você provavelmente imagina. Não é que um de nós tenha planejado. Ela colocou a colher na mesa. ― Mas, para dar alguma resposta, acho que começou no início de 2002.  
Poucos meses depois que eu me realistei, percebi. Seis meses antes do primeiro ataque cardíaco do meu pai e exatamente na época em que notei que as cartas dela começaram a mudar.
― Você sabe que éramos amigos. Mesmo ele estando na pós-graduação, acabamos fazendo algumas aulas no mesmo prédio durante meu último ano na faculdade. No fim das aulas, íamos tomar café ou acabávamos estudando juntos. Não eram encontros, nem ficávamos de mãos dadas. Tim sabia que eu estava apaixonada por você... mas ele estava presente, sabe? Ele ouvia quando eu falava o quanto sentia sua falta e como a distância era difícil. E foi difícil. Eu achava que você já estaria em casa nessa época.
Quando ela ergueu o olhar, seus olhos estavam cheios do quê? Arrependimento? Não dava para saber.
― De qualquer forma, passamos muito tempo juntos, e ele me consolava sempre que eu estava para baixo. Sempre me lembrava que você estaria aqui de licença antes do que eu esperava, e você não imagina o quanto eu queria ver você novamente. Então, seu pai ficou doente. Sei que você tinha de ficar com ele, eu nunca teria lhe perdoado se você não ficasse ao lado dele, mas não era o que precisávamos. Sei como isso parece egoísta, e me odeio por ter pensado assim. Mas parecia que o destino estava conspirando contra nós.
Ela pôs a colher no chá e mexeu de novo, recolhendo seus pensamentos.
― Naquele outono, após terminar todas as minhas aulas e voltar para casa para trabalhar no centro de aviação de desenvolvimento da cidade, os pais de Tim se envolveram em um acidente horrível. Eles estavam voltando de carro de Asheville, quando perderam a direção e foram parar do outro lado da pista, na contramão da rodovia. Uma carreta acabou batendo neles. O motorista do caminhão não ficou ferido, mas os pais de Tim morreram na batida. Tim teve de abandonar a escola — ele estava tentando entrar no doutorado —, para voltar e cuidar de Alan. Ela fez uma pausa. ― Foi terrível para Tim. Não só ele tinha de lidar com a   perda - ele adorava os pais —, mas Alan também estava inconsolável. Ele gritava o tempo todo, arrancava os cabelos. O único que conseguia fazer com que ele parasse de se ferir foi Tim, mas isso drenou toda sua energia. Acho que foi quando comecei a vir para cá. Você sabe, para ajudar.
Quando franzi a testa, ela acrescentou: ― esta era a casa dos pais de Tim. Onde Tim e Alan cresceram.
Tão logo ela disse isso, a lembrança voltou. Claro que era a casa de Tim — uma vez ela me contou que ele morava no rancho ao lado dos pais dela.
― Acabamos consolando um ao outro. Tentei ajudá-lo, ele tentou me ajudar e nós dois tentamos ajudar Alan. E, pouco a pouco, eu acho, começamos a nos apaixonar.
Pela primeira vez, ela olhou nos meus olhos.
― Sei que você deve estar irritado com Tim ou comigo. Provavelmente com os dois. E acho que merecemos. Mas você não sabe como foi aquela época. Tanta coisa acontecendo, tantas emoções o tempo todo. Eu me senti culpada com o que estava acontecendo, Tim se sentiu culpado. Mas, depois de um tempo, começamos a nos sentir como se já fôssemos um casal. Tim começou a trabalhar no mesmo centro de avaliação de desenvolvimento que eu, e decidiu que queria montar um programa de fim de semana no rancho para crianças autistas. Seus pais sempre quiseram que ele fizesse isso, então me voluntariei para trabalhar aqui também. Depois disso, passávamos quase todo o tempo juntos. Montar o rancho nos fez concentrar em algo, e também ajudou Alan. Ele ama cavalos e havia tanto para fazer que gradativamente ele se acostumou ao fato de seus pais não estarem por perto. Foi como se nós todos estivéssemos nos apoiando uns nos outros... De qualquer modo, ele me pediu em casamento no fim daquele ano.
Quando ela parou, eu virei, tentando digerir suas palavras. Ficamos em silêncio por um tempo, ambos lutando com os próprios pensamentos.  
― Então, é essa história ― concluiu. ― Não sei o quanto mais você quer saber.
Eu também não tinha certeza.
― Alan ainda mora aqui?
― Ele tem um quarto no andar de cima. Na verdade, o mesmo quarto de sempre. No entanto, não é tão difícil quanto parece. Depois que ele termina de se alimentar e escovar os cavalos, geralmente passa a maior parte do tempo sozinho. Ele adora videogames. É capaz de jogar por horas. Ultimamente, não consigo fazê-lo parar. Ele jogaria a noite toda se eu deixasse.
― Ele está aqui agora?
Ela balançou a cabeça. 
― Não ― disse. ― Agora ele está com Tim.
― Onde?
Antes que ela pudesse responder, o cão começou a arranhar insistentemente a porta, e Savannah levantou-se para abri-la. O cão entrou com a língua para fora e abanando o rabo. Veio na minha direção e cheirou minha mão.
― Ele gosta de mim ― disse.
Savannah ainda estava perto da porta. ― Ela gosta de todos. O nome dela é Molly. Inútil como cão de guarda, mas doce como uma flor. É só tentar evitar a baba. Ela vai babar em você todo, se você deixar.
Olhei para o meu jeans. 
― Deu para notar.  
Savannah fez sinal por cima do ombro. 
― Olha, lembrei que ainda tenho que guardar algumas coisas. Deve chover à noite. Não demoro muito.
Notei que ela não tinha respondido a pergunta sobre Tim. Nem pretendia responder.
― Você precisa de uma mão?
― Na verdade não. Mas você é bem-vindo. A noite está bonita.
Eu a segui, com Molly andando à nossa frente, tendo esquecido completamente
que acabara de pedir para entrar na casa. Quando uma coruja apareceu entre as árvores, Molly correu na escuridão e desapareceu.
Savannah colocou as botas novamente.
Caminhamos em direção ao celeiro. Pensei em tudo o que ela disse e me questionei de novo porque tinha vindo. Não sabia se estava feliz por ela ter casado com Tim - já que eles pareciam perfeitos um para o outro - ou chateado pela mesma razão. Nem estava contente por finalmente saber a verdade. De algum modo, percebi, era mais fácil não saber. De repente, simplesmente me senti cansado.
E, no entanto... sabia que ela estava escondendo algo. Ouvi em sua voz, na ponta de tristeza que não desaparecia. À medida que a escuridão nos envolvia, aguçava-se a percepção de como estávamos próximos, e me perguntei se ela sentia o mesmo. Mas ela não deu nenhum sinal disso.
Os cavalos eram meras sombras na distância, manchas sem uma forma reconhecível. Savannah recolheu um par de rédeas, levou-as ao celeiro e pendurou-as em dois pinos. Enquanto isso,peguei as pás que havíamos usado e arrumei-as junto ao resto das ferramentas. Na volta, ela checou bem se havia trancado o portão.  
Olhando para o relógio, vi que eram quase dez horas. Era tarde, e nós dois estávamos conscientes do horário.
― Acho que devo ir andando ― disse. ― É uma cidade pequena. Não quero ser a causa de qualquer fofoca.
― Você provavelmente está certo. Molly apareceu do nada, perambulando, e sentou-se entre nós. Ela se enrolou nas pernas de Savannah, indo para o lado. ― Onde você está hospedado? ― ela perguntou.
― Em um hotelzinho de beira de estrada. Na saída da cidade.
Ela franziu o nariz, mesmo que por um instante. 
― Conheço o lugar.
― É uma espelunca ― admiti.
Ela sorriu. 
― Não posso dizer que esteja surpresa. Você sempre teve faro para encontrar os lugares mais peculiares.
― Como a Cabana do Camarão?
― Exatamente.
Enfiei as mãos nos bolsos, imaginando se seria a última vez que nos veríamos. Se fosse o caso, teria sido um absurdo anticlímax; eu não podia deixar tudo acabar em conversa afiada, mas não conseguia pensar em nada para falar.
Na estrada em frente, os faróis de um carro em movimento iluminaram a propriedade quando passavam em velocidade pela casa.
― Então acho que é isso ― falei perplexo. ― Foi bom ver você de novo.  
― Você também, John. Estou contente que tenha vindo.
Concordei novamente. Quando ela desviou o olhar, tomei como um sinal para partir.
― Adeus ― disse eu.
― Adeus.
Virei e comecei a andar para o carro, tonto ao pensar que tudo estava realmente acabado. Não sabia se esperava qualquer coisa diferente, mas o fim trouxe à tona todos os sentimentos represados desde que eu lera aquela última carta.
Eu estava abrindo a porta do carro quando a ouvi gritar.
― Ei, John?
― Sim?
Ela desceu da varanda e veio na minha direção. 
― Você vai estar por aqui amanhã?
Enquanto ela se aproximava, seu rosto parcialmente na sombra, tive certeza de que ainda estava apaixonado. Apesar da carta, apesar do seu marido. Apesar do fato de que nunca mais poderíamos ficar juntos.
― Por quê?
― Estava imaginando se você gostaria de aparecer. Por volta das dez. Tenho certeza que Tim gostaria de encontrar você...
Eu estava balançando a cabeça antes mesmo de ela ter terminar.
― Não tenho tanta   certeza de que seja uma boa ideia.
― Você faria isso por mim?
Sabia que ela queria que eu visse que Tim ainda era o mesmo homem de sempre e, de certo modo, sabia que ela estava me convidando porque queria meu perdão. Ainda assim...
Ela pegou minha mão. ― Por favor. Significaria muito para mim.
Apesar do calor da mão dela, eu não queria voltar. Não queria ver Tim, não queria ver os dois juntos ou sentar-me à mesa fingindo que tudo parecia bem. Mas havia algo melancólico naquele pedido, que tornou impossível declinar.
― Ok, eu disse. ― Dez horas.
― Obrigada.
Um momento depois, ela se virou para voltar. Permaneci no local, observando-a subir no alpendre antes de entrar no carro. Virei a chave e esperei. Savannah estava no alpendre, acenando uma última vez. Acenei de volta e peguei a estrada, a imagem dela cada vez menor no espelho retrovisor. Ao observá-la, senti uma súbita secura na garganta. Não porque ela estava casada com Tim, e não porque iria vê-los juntos no dia seguinte. Mas porque, enquanto eu me afastava, vi Savannah em pé no alpendre, chorando.

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