Capítulo Dezesseis
Soube antes mesmo de terminar de ler a carta, e de uma hora para
outra o mundo pareceu parar. Meu primeiro instinto foi dar um soco na parede,
mas em vez disso amassei a carta e joguei-a fora. Fiquei com muita raiva na
hora; mais do que me sentir traído, foi como se ela tivesse esmagado tudo que
significava alguma coisa no mundo. Eu a odiava e odiava o homem sem nome e sem
rosto que a roubara de mim. Fantasiava o que faria com ele se alguma vez
cruzasse meu caminho, e a imagem não era bonita.
Ao mesmo tempo, desejava falar com ela. Queria tomar um avião para
casa imediatamente, ou pelo menos ligar para ela. Parte de mim não queria
acreditar, não podia acreditar. Não agora, não depois de tudo o que havíamos
passado. Faltavam apenas 9 meses. Depois de quase três anos, será que era assim
tão impossível?
Mas não fui para casa, nem telefonei. Não escrevi, nem tive
qualquer outro contato com ela. Minha única ação foi recuperar a carta que eu
jogara fora. Alisei-a o melhor que pude, coloquei-a de volta no envelope, e
decidi carregá-la comigo como uma ferida de batalha. Ao longo das semanas seguintes,
fui o perfeito soldado, refugiando-me no único mundo que ainda parecia real
para mim. Eu me ofereci para todas as missões consideradas perigosas, mal falei
com as pessoas da minha unidade, e por um tempo tive que fazer um grande
esforço para não ser muito rápido no gatilho durante as patrulhas. Eu não
confiava em ninguém e, embora não tenha sido responsável por ''incidentes'' infelizes, como o exercito gosta de chamar a morte de civis, estaria
mentindo se alegasse ter sido paciente e compreensível ao lidar com os
iraquianos de qualquer tipo. Apesar de quase não dormir, meus sentidos se
aguçavam à medida que continuávamos a ofensiva sobre Bagdá. Ironicamente,
apenas arriscando a vida eu encontrava alívio para a imagem de Savannah e o
fato de nosso relacionamento ter terminado.
Minha vida acompanhava as oscilações da sorte na guerra. Menos de
um mês depois de eu receber a carta, Bagdá caiu e, apesar de um breve período
auspicioso no inicio, as coisas ficaram piores e mais complicadas com o passar
da semana e meses. Afinal, percebi que essa guerra não era diferente de
qualquer outra. Guerras sempre se resumem à disputa de poder entre interesses
conflitantes, mas esse entendimento não tornava mais fácil a vida no campo de
batalha. No rescaldo da queda de Bagdá, cada soldado do meu pelotão foi
obrigado a assumir os papéis de policiais e juízes. Como soldados, não fomos
treinados para isso.
Olhando de fora e em retrospecto, era fácil questionar nossas
ações, mas no mundo real, em tempo real, as decisões nem sempre eram fáceis.
Mais de uma vez fui abordado por civis iraquianos dizendo que um determinado
individuo havia roubado este ou aquele item, ou cometido este ou aquele crime,
e instado a tomar alguma atitude a respeito. Fomos enviados para manter alguma
aparência de ordem- o basicamente significava matar insurgentes que tentavam
nos matar, ou aos civis-, até os locais serem capazes de assumir o comando e
lidar sozinhos com o problema. Esse processo em especial não foi fácil nem
rápido, mesmo em lugares onde a calma era mais freqüente do que o caos. Nesse
meio tempo, outras cidades se desintegram em meio ao caos, e éramos enviados
para restaurar a ordem. Eliminávamos os insurgentes, mas como não havia tropas
suficientes para ocupar e manter a cidade segura, eles voltavam assim que nos
retirávamos. Havia dias em que meus homens percebiam a futilidade desse
exercício em particular, mesmo sem questioná-lo abertamente.
A questão é, não sei como descrever o estresse, o tédio e a confusão
daqueles nove meses, exceto dizer que havia muita areia. Sim, sei que é um
deserto, e sim passei muito tempo na praia, portanto deveria estar acostumado,
mas a areia dali era diferente. Entrava nas roupas, nas armas, no nariz e entre
os dentes. Quando cuspia sempre sentia areia na minha boca. As pessoas ao menos conseguem
entender isso, e aprendi que eles não querem ouvir a verdade de fato, ou seja,
que na maior parte do tempo o Iraque não era tão ruim, mas as vezes era pior do
que o inferno.Será que as pessoas realmente querem saber que vi um cara do meu
pelotão atirar acidentalmente em uma criança que só estava no lugar errado na
hora errada? Ou que vi soldados explodindo quando atingiam um IED- dispositivo
explosivo improvisado – nas estradas próximas a Bagdá? Ou ainda que vi sangue
empoçado nas ruas como água da chuva, com partes de corpos boiando? Não, as
pessoas preferem ouvir sobre areia, porque isso mantém a guerra a uma distância
segura.
Cumpri meu dever do melhor modo possível, me alistei novamente e
permaneci no Iraque até fevereiro de 2004, quando finalmente fui mandado de
volta para a Alemanha. Logo que cheguei, comprei uma Harley e tentei fingir que
saíra da guerra sem cicatrizes; mas os pesadelos eram intermináveis, e quase
todas as manhãs eu acordava encharcado de suor. Durante o dia eu ficava o tempo
todo no limite, e me enraivecia por qualquer coisa. Quando caminhava pelas ruas
da Alemanha, achava impossível não observar cuidadosamente grupo de pessoas
perambulando junto a edifícios e examinar atentamente as janelas do distrito
empresarial procurando por atiradores. O psicólogo- todo mundo tinha que
consultar um-disse que aquilo era normal e iria passar com o tempo, más às
vezes eu me perguntava se isso realmente aconteceria.
Depois que deixei o Iraque, o tempo que fiquei na Alemanha
pareceu-me quase sem sentido. Claro, eu malhava de manha e tinha aulas sobre
armas e navegação, mas as coisas haviam mudado. Devido ao ferimento na mão,
Tony foi condecorado e dispensado após a queda de Bagdá, enviado diretamente de
volta ao Brooklyn. Mais quatro de meus homens foram dispensados ao final de
2003, quando seu período de alistamento acabou; na cabeça deles- e na minha
também-, haviam cumprido seu dever e era hora de cuidar de suas vidas. Eu, por
outro lado, havia me alistado novamente. Não sabia se era a decisão certa, mas
não sabia mais o que fazer.
Porém, olhando meu pelotão, percebi de repente que estava
deslocado. Meu grupo estava cheio de novatos, e apesar de considerá-los ótimos
rapazes, não era a mesma coisa.
Eles não eram os amigos com quem
convivi no campo de treinamento e nos Balcãs, eu não tinha ido para a guerra
com eles e, no fundo, sabia que nunca seria tão próximo deles quanto da minha
antiga equipe. Eu era um estranho para a maior parte, e mantive-me assim. Eu
malhava sozinho e evitava contato pessoal tanto quanto possível, e sabia o que
pensavam de mim ao me ver passar: eu era o velho sargento rabugento, aquele que
não queria nada além de garantir que eles voltariam a salvo para suas mães.
Dizia isso ao meu pelotão o tempo todo enquanto treinávamos, e falava sério.
Faria o que fosse preciso para mantê-los a salvo. Porém, como eu disse, não era
a mesma coisa.
Sem meus amigos, dediquei-me o máximo que pude ao meu pai. Depois
do período em combate, passei uma licença prolongada com ele na primavera de
2004, e mais outra licença durante o verão. Ficamos mais tempo juntos nessas
quatro semanas do que nos dez anos anteriores. Como ele estava aposentado,
estávamos livres para passar o dia como desejássemos. Encaixei-me facilmente na
rotina dele. Tomávamos café da manha, fazíamos três caminhadas e jantávamos
juntos. No meio do tempo, conversávamos sobre moedas e até mesmo comprávamos
algumas. A internet tornou tudo muito mais fácil do que antes. Embora q
pesquisa não tenha sido tão emocionante, não sei se fez alguma diferença para o
meu pai. Acabei conversando com vendedores com quem não falava havia mais de
quinze anos, mas eles foram amistosos e prestativos como sempre e se lembraram
de mim com prazer. O mundo da moeda era pequeno, percebi, e quando nossos
pedidos chegavam- sempre eram expedidos via delivery noturno -, meu pai e eu
revezávamos no exame das moedas, apontando eventuais falhas existentes e
geralmente concordando com a nota atribuída pelo Professional Coin Grading
Service (Serviço Profissional de Avaliação de Moedas), uma empresa que avalia a
qualidade de qualquer moeda. Embora minha mente às vezes vagasse para outras coisas,
meu pai era capaz de examinar uma única moeda durante horas, como se ela
escondesse o segredo da vida.
Não conversávamos sobre muitas outras coisas, porém, na verdade,
não precisávamos conversar. Ele não tinha vontade de falar sobre o Iraque, eu
também não. Nenhum de nós tinha uma vida social sobre a qual discutir- o Iraque
não tinha me levado isso- e meu pai... bem, ele era meu pai, e não me incomodei
em perguntar.
No entanto, eu estava preocupado com
ele. Nas caminhadas, ele respirava com dificuldade. Quando sugeri que vinte
minutos talvez fosse muito tempo, mesmo em ritmo lento, ele respondeu que,
segundo o médico, vinte minutos eram tudo de que ele precisava, e sabia que não
poderia fazer nada para convencê-lo do contrario. Depois da caminhada, ele
ficava muito mais cansado do que deveria e levava cerca de uma hora para que a
cor de suas bochechas voltasse ao normal. Conversei com o médico, e as notícias
não eram o que eu esperava. O coração do meu pai, ele me disse, sofrera um
grande dano, e, na opinião dele, era um grande milagre ele estar de pé. Falta
de exercício seria ainda pior.
Pode ter sido essa conversa com o médico, ou talvez eu só quisesse
melhorar meu relacionamento com meu pai, mas o fato é que, nessas duas visitas,
nos demos muito melhor do que antes. Em vez de pressioná-lo constantemente para
conversar, simplesmente me sentava com ele em seu escritório lendo um livro ou
fazendo palavras cruzadas, enquanto ele examinava moedas. Havia algo pacífico e
honesto nessa falta de expectativas, e acho que meu pai lentamente estava
aprendendo a lidar com a nova situação entre nós. Às vezes, eu o pegava a me
espreitar como se fôssemos estranhos. Passávamos horas juntos, a maioria em
silêncio, e foi assim, de um jeito quieto e despretensioso, que finalmente nos
tornamos amigos. Muitas vezes desejei que meu pai não tivesse jogado fora nossa
fotografia, e quando chegou a hora de voltar à Alemanha, percebi que sentiria
mais saudades do que nunca.
O outono de 2004 passou lentamente, assim como o inverno e a
primavera de 2005. A vida se arrastou sem grandes acontecimentos.
Ocasionalmente, os boatos do meu eventual regresso ao Iraque interrompiam a
monotonia dos dias, a idéia de voltar pouco me afetava. Iraque, tudo bem também.
Mantinha-me informado sobre o que acontecia no Oriente Médio como todo mundo,
mas assim que desligava a televisão ou colocava o jornal de lado, minha mente
vagava para outros assuntos.
Eu tinha vinte e oito anos então, e não conseguia evitar a
sensação de que, embora tivesse experimentado mais coisas do que a maioria das
pessoas da minha idade, minha vida ainda estava em suspenso. Entrei no exercito
para amadurecer, embora fosse possível argumentar que sim, às vezes me
perguntava de isso de fato ocorrera. Eu não tinha casa nem carro; além de meu
pai, estava completamente sozinho no mundo. Enquanto meus colegas recheavam
suas carteiras com fotografias de filhos e esposas, na minha havia um único
instantâneo desbotado de uma mulher que eu amara e perdera. Ouvia os soldados
falarem de suas esperanças para o futuro, enquanto eu não tinha qualquer plano.
Às vezes me perguntava o que meus homens pensariam sobre a minha vida, pois, em
certos momentos, notava que eles me olhavam com curiosidade. Nunca contei a
eles sobre meu passado ou abri informações pessoais. Eles não sabiam sobre
Savannah, meu pai ou minha amizade com Tony. Essas lembranças eram minhas e só
minhas, pois aprendi que PE melhor manter algumas coisas em segredo.
***
Em março de 2005, meu pai teve um segundo ataque cardíaco, que
levou a uma pneumonia e a outra temporada na UTI. Depois que Le foi liberado,
começou a tomar um medicamento que o impedia de dirigir, mas a assistente
social do hospital ma ajudou a encontrar alguém para comprar os mantimentos de
que ele necessitava. Em abril, ele voltou para o hospital, onde foi informado
que teria que desistir de suas caminhadas diárias. Em maio, ele estava tomando
uma dúzia de comprimidos diferentes por dia e passava a maior parte do tempo na
cama. Suas cartas tornaram-se praticamente ilegíveis, não só porque ele estava
fraco, mas também porque suas mãos começaram a tremer. Depois de insistir e
implorar ao telefone,convenci uma vizinha- uma enfermeira que trabalhava no
hospital local-a cuidar dele regularmente, e suspirei aliviado contando os dias
até minha licença em junho.
Mas a doença do meu pai continuou a se agravar nas semanas
seguintes, e pelo telefone percebia um cansaço que parecia aumentara cada vez
que falava com ele. Pela segunda vez na vida, pedi uma transferência para casa.
Meu comandante foi mais simpático do que antes. Nós chegamos a procurar- eu até
preenchi os documentos para ser enviado a Fort Bragg para treinamento aéreo-,
mas quando conversei novamente com o médico, fui informado que minha
proximidade não ajudaria muito meu pai e que eu deveria considerar a hipótese
de interná-lo em uma clínica. Meu precisava de mais cuidados do que poderia
receber em casa, ele me assegurou. Ele estava tentando
convencê-lo havia algum tempo-, mas ele se recusava até eu voltar de licença.
Por alguma razão, o medico explicou, meu pai estava determinado a me receber em
sua casa uma ultima vez.
Essa constatação foi esmagadora e, no táxi do aeroporto, tentei me
convencer de que o médico estava exagerando. Mas não estava. Meu pai não
conseguiu levantar do sofá quando abri a porta, e fiquei perplexo ao perceber
que ele parecia ter envelhecido trinta anos durante o ano que ficamos sem nos
ver. Sua pele estava acinzentada, e fiquei chocado com o quanto ele emagrecera.
Com um nó na garganta, coloquei a mala para dentro.
— Oi papai, — disse.
De inicio, não tive certeza de que ele me reconhecera, mas por fim
ouvi um sussurro áspero.
— Oi John.
Fui até o sofá e sentei-me ao lado dele.
— Você esta bem?
— Bem, — foi tudo o que ele disse, e ficamos um longo tempo assim,
em silêncio.
Finalmente levantei-me para inspecionar a cozinha, mas me assustei
com o que vi. Havia latas de sopa vazias empilhadas por todos os lados, manchas
no fogão e pratos embolorados amontoados na pia. O lixo estava superlotado.
Obviamente a casa não era limpa há dias. Pilhas de correspondência fechadas
inundavam a pequena mesa da cozinha. Meu primeiro impulso foi sair
imediatamente para confrontar a vizinha que prometera cuidar dele. Mas isso
teria que esperar.
Primeiro, achei uma lata de sopa de frango e macarrão e
esquentei-a no fogão imundo. Enchi uma tigela e levei para meu pai em uma
bandeja. Ele sorriu fracamente, e notei sua gratidão. Ele comeu tudo, raspando
o prato. Enchi outra tigela, cada vez mais irritado, imaginado a quanto tempo
ele estava sem comer. Quando ele terminou o segundo prato, ajudei-o a deitar
novamente no sofá, onde ele adormeceu em poucos minutos.
A vizinha não estava, então passei a
maior parte da tarde limpando a casa, começando pela cozinha e o banheiro. Fui
trocar os lençóis da cama e descobri que estavam sujos. Fechei os olhos
abafando a vontade de torcer o pescoço da vizinha.
Quando a casa ficou razoavelmente limpa, sentei-me na sala de
estar observando meu pai dormir. Ele aprecia tão pequeno debaixo do cobertor, e
quando comecei acariciar seus cabelos, alguns fios saíram na minha mão. Comecei
a chorar, com a certeza de que meu pai estava morrendo. Foi a primeira vez que
chorei naquele ano, e a única vez na minha vida que chorei por mau pai, mas por
muito tempo as lágrimas não cessariam.
Sabia que ele era um homem bom, um homem amável, e apesar da vida
difícil que levara, havia dado o seu melhor para me criar. Nunca levantou a mão
com raiva, e comecei a me atormentar pensando em todos os anos que havia
desperdiçado culpando-o. Lembrei-me de minhas duas ultimas visitas, e doeu
pensar que nunca mais dividiríamos momentos como aqueles.
Mais tarde, carreguei meu pai até a cama. Ele estava leve, muito
leve. Ajeitei os cobertores sobre ele e fiz minha cama no chão ao lado, ouvindo
sua dificuldade para respirar e seus chiados. Ele acordou com tosse no meio da
noite e não conseguia parar de tossir. Quando estava pronto para levá-lo ao
hospital, a tosse finalmente cedeu.
Ele ficou aterrorizado quando percebeu aonde eu pretendia levá-lo.
— Ficar... aqui, — confessou, com a voz fraca. — Não quero ir.
Eu estava dividido, mas ao final decidi não levá-lo. Para um homem
de rotina, percebi, o hospital não era apenas um lugar estranho, era também uma
zona perigosa de demandava mais energia do que ele dispunha. Foi então que
percebi que ele novamente havia sujado os lençóis.
Quando a vizinha apareceu no dia seguinte, suas primeiras palavras
foram um pedido de desculpas. Ela explicou que não
limpava a cozinha havia vários dias porque uma de suas filhas ficou doente, mas
trocou os lençóis diariamente e se certificou que havia várias latas de sopa.
Frente a frente com ela na varanda, notei a exaustão em seu rosto, e todas as
palavras de reprovação que estavam na minha garganta desapareceram. Disse que
estava muito grato por tudo que ela fez, mais do que podia expressar.
Eu sorri. Incentivada, ela prosseguiu:
— Mas preciso dizer que não pé sempre que ele me deixa entrar. Ele
disse que não gosta de onde coloco as coisas. Ou do jeito que limpo. E de ter
mudado uma pilha de papéis de lugar em cima da mesa dele. Normalmente eu
ignoro, mas as vezes, quando ele esta se sentindo bem, é bastante inflexível
sobre não me deixar entrar, e até ameaçou chamar a policia quando tentei
passar. Eu não...
Ela parou de falar, e eu terminei a frase para ela.
— Você não sabe o que fazer.
A culpa estava escrita claramente no rosto dela.
— Está tudo bem — eu disse. — Sem você, não sei o que ele faria
Ela acenou com alívio antes de desviar o olhar.
— Estou feliz que
você esteja em casa, — ela começou hesitante, — queria falar com você sobre essa
situação‖. Ela escovou um fiapo invisível em sua roupa.
— Conheço um lugar
ótimo em que poderiam cuidar dele. Os funcionários são excelentes. As vagas são
raras, mas conheço o diretor, e ele sabe quem é o medico do seu pai. Sei como é
difícil ouvir isso, mas acho que é o melhor para ele, espero...
Quando ela terminou, sem terminar a frase, percebi que se
preocupava genuinamente com meu pai, e abri a boca pare responder. Mas não
disse nada. Não era uma decisão tão simples como parecia. A casa dele era o
único lugar que meu pai conhecia, o único lugar em que ele se sentia confortável. O único
lugar em que sua rotina fazia sentido. Se ir para o hospital o apavorava, ser
obrigado a viver em lugar novo provavelmente o mataria. A questão resumia-se
não a onde ele morreria, mas como morreria. Sozinho em casa, onde dormia em
lençóis sujos, e possivelmente pereceria de fome? Ou entre pessoas que o
limpariam e o alimentariam, em um lugar que o aterrorizava?
Com um tremor na voz que eu não conseguia controlar, perguntei:
— Onde
fica?
***
Passei as duas semanas seguintes cuidando do meu pai. Fiz o melhor
que pude, lia a Greysheet quando ele estava acordado e dormia no chão ao lado
de sua cama. Ele se sujava todas as noites, e tive de comprar fraldas geriátricas
para sua vergonha. Ele passava a tarde toda dormindo.
Enquanto ele repousava no sofá, visitei várias clínicas. Não
apenas a que a vizinha tinha recomendado, ma todas as outras em um raio de duas
horas. No final, a vizinha tinha razão. O lugar que ela mencionara era limpo,
os funcionários pareciam profissionais e, o mais importante, o diretor parecia
ter um interesse pessoal em cuidar do meu pai, não sei se por causa da vizinha
ou do médico que o atendia.
O preço não foi um problema. A clinica era notoriamente cara, mas
como meu pai tinha aposentadoria, Previdência Social, Medicare e seguro saúde
privado (era fácil imaginá-lo assinando na linha pontilhada indicada pelos
vendedores de seguros sem saber ao certo o que estava pagando), tive certeza que
o único custo seria emocional. O diretor quarentão de cabelos castanhos, cujos
modos gentis me lembraram TIM, foi compreensivo e não pressionou por uma
decisão rápida. Entregou-me uma pilha de brochuras e formulários, desejando
melhoras para meu pai.
***
Naquela noite, toquei no assunto da
mudança com o meu pai. Eu iria embora dali a poucos dias e não tinha escolha,
não importa o quanto eu quisesse evitar.
Ele não disse nada enquanto eu falava, Expliquei minhas razões,
minha preocupações, na esperança de me entender. Ele não fez perguntas, mas
arregalou os olhos em coque, como se acabasse de ouvir uma sentença de morte.
Quando terminei, precisava desesperadamente de um momento sozinho.
Acariciei a perna dele e fui até a cozinha buscar um copo de água. Quando
voltei para sala meu pai estava debruçado sobre o sofá, abatido e trêmulo, com
o rosto entre as mãos. Foi a primeira vez que o vi chorar.
***
Na manha seguinte, comecei a embalar as coisas do meu pai.
Esvaziei gavetas e arquivos, armários e guarda-roupas. Na gaveta de meias,
achei meias; na gaveta de camisas, só camisas. No arquivo, tudo tabulado e
ordenado. Não deveria ser surpresa para mim, porém, de certo modo, foi
surpreendente. Ao contrario da maioria da humanidade, meu pai não tinha nenhum
segredo. Não tinha vícios ocultos, diários, interesses ocultos, nenhuma caixa
de coisas particulares que ele mantinha só para si mesmo. Não encontrei nada
que jogasse luz sobre sua vida interior, nada que pudesse me ajudar a compreendê-lo
melhor depois que ele partisse. Meu pai, soube então, era exatamente o que
parecia ser, e de repente percebi o quanto o admirava por isso.
***
Quando terminei de recolher as coisas dele, encontrei meu pai
acordado no sofá. Após comer regularmente por alguns dias, ele recuperara um
pouco de força. Não havia qualquer brilho em seus olhos, e notei uma pá
encostada na mesa. Ele me estendeu um pedaço de papel. Era uma espécie de mapa
rabiscado às pressas por uma mão trêmula, intitulado ''Quintal''.
— O que é isso?
— É seu, — ele disse e apontou para pá.
Peguei a pá, segui as indicações no mapa até o carvalho no
quintal, contei os passos e comecei a cavar. Minutos depois, a pá bateu no
metal e eu encontrei uma caixa. E mais uma, embaixo dela. E outra do lado. No
total dezesseis caixas pesadas. Sentei-me na varanda e enxuguei o suor do rosto
antes de abrir a primeira.
Já sabia o que iria encontrar, e fechei um pouco os olhos por
causas das moedas de ouro brilhando ao sol forte do verão sulista. No fundo da
caixa, encontrei o níquel búfalo 1926-D que tínhamos procurado e encontrado
juntos, sabendo que era a única moeda que realmente significava algo para mim.
***
No dia seguinte, o ultimo da minha licença, resolvi as pendências
da casa: cancelei os serviços, transferi a correspondência, consegui alguém
para aparar a grama. Guardei as moedas desenterradas em um cofre no banco.
Cuidar desses detalhes tomou a maior parte do dia. Mais tarde, dividimos uma
ultima tigela de sopa de frango com macarrão e legumes cozidos para o jantar,
antes que eu o levasse a clinica. Desfiz as malas dele, decorei o quaro com
coisas de que ele gostava, e coloquei doze anos de edições da Greysheet no chão
de baixo da escrivaninha. Mas não foi o suficiente, depois de explicar a
situação para o diretor, voltei a casa para pegar outros badulaques, desejando
o tempo todo conhecer meu pai o bastante para saber o que realmente importava
para ele.
Por mais que eu o tranquilizasse, meu pai permaneceu paralisado de
medo e seus olhos me dilaceravam. Mais de uma vez, fui golpeado pela
constatação de que eu estava matando-o. Sentei ao lado dele na cama, consciente
das poucas horas restantes antes de partir para o aeroporto.
— Vai ficar tudo bem ― disse. — Eles
vão cuidar de você.
As mãos dele continuavam tremer.
— Tudo bem — ele disse com
a voz praticamente inaudível.
Senti as lagrimas começando a se formar.
— Quero dizer uma coisa
para você ok?‖, respirei fundo, concentrando meus pensamentos. — Só quero que
você saiba que acho você o melhor pai do mundo. Você teve de ser ótimo para
aturar alguém como eu
Meu pai não respondeu. No silêncio, senti tudo o que eu sempre
quis dizer a ele aflorar à superfície, palavras que se formaram durante toda
uma vida.
— É verdade, pai. Desculpe por todas as coisas horríveis que fiz
você passar, e desculpe por não ter estado presente o suficiente. Você é a
melhor pessoa que já conheci. Você é o único que nunca teve raiva de mim, você
nunca me julgou e, ao seu modo, me ensinou mais sobre a vida do que qualquer
filho poderia querer. Sinto muito não poder estar presente agora, e me odeio
por fazer isso com você. Mas estou com medo, pai. Eu não sei o que fazer.‖
Minha voz soou rouca e irregular aos meus próprios ouvidos, e não
queria outra coisa além de um abraço..
— Ok ― ele disse finalmente.
Sorri para sua resposta. Não pude evitar.
— Eu te amo, papai.
A isso, ele sabia exatamente o que responder, pois sempre fizera
parte da rotina.
— Também te amo, Jonh.
Abracei-o e em seguida me levantei para dar a ele a edição mais
recente da Greysheet. Quando cheguei a porta, parei mais uma vez e olhei para
ele.
Pela primeira vez desde que ele chegou, o medo tinha quase desaparecido.
Ele segurava o papel bem perto do rosto, e notei a página tremer ligeiramente.
Seus lábios se moviam enquanto ele se concentrava nas palavras e detive-me a
observá-lo, na esperança de memorizar aquele rosto para sempre.
Foi a
última vez que o vi vivo.
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