Capítulo Oito

 Os caixotes, duros e impiedosos, me fizeram questionar a minha sabedoria, mas Savannah não pareceu se importar. Ou fingiu não se importar. Ela se inclinou pra trás, sentiu a beira do caixote traseiro pressionar sua pele, depois sentou direito novamente.
 — Desculpe, — eu disse, — Pensei que seria mais confortável.
 — Tudo bem. Minhas pernas estão exaustas e meus pés doem. Isso é perfeito.
Sim, eu pensei, era. Pensei nas noites que eu estava no dever de guarda e ficava imaginando sentar ao lado da garota dos meus sonhos e sentindo que tudo estava certo com o mundo. Agora eu sabia do que tinha sentido falta todos esses anos. Quando senti Savannah descansar a cabeça em meus ombros, me peguei desejando que não tivesse me alistado no exército. Queria que a minha base não fosse depois de um oceano, e queria ter escolhido um caminho diferente na vida, um que teria me deixado permanecer como uma parte do mundo dela. Ser um estudante em Chapel Hill, passar parte do verão construindo casas, cavalgar com ela.
 — Você está muito quieto, — a ouvi falar.
 — Desculpe, — eu disse. — Só estava pensando sobre hoje à noite.
 — Coisas boas, eu espero.
 — É, coisas boas, — eu disse.
Ela mudou de posição no assento e eu senti sua perna roçar a minha.
 — Eu também. Mas eu estava pensando no seu pai, — ela disse. — Ele sempre foi como hoje? Meio tímido e desviando o olhar quando fala com as pessoas?
 — Sim, — eu disse. — Por quê?
 — Só curiosidade, — ela disse.
Alguns metros mais longe, a tempestade parecia estar alcançando seu clímax enquanto outra chapa de chuva caía das nuvens. A água caía de todos os lados da casa como cachoeiras. Um clarão de novo, mais perto dessa vez e o trovão estrondou como um canhão. Se tivesse janelas eu imaginei que elas teriam chacoalhado nas suas molduras.
Savannah se aproximou e eu coloquei meu braço em volta dela. Ela cruzou as pernas nos tornozelos e se encostou em mim, e eu senti como se pudesse segurá-la assim para sempre.
 — Você é diferente da maioria dos caras que eu conheço, — ela observou sua voz baixa no meu ouvido. — Mais maduro, menos... irresponsável, eu acho.
Eu sorri, gostando do que ela disse.
 — E não esqueça do meu corte de cabelo e das tatuagens.
 — O cabelo, sim. Tatuagens... bem, elas meio que vem com o pacote, mas ninguém é perfeito.
Dei uma cotovelada nela e fingi estar magoado.
 — Bem, se eu soubesse como você se sente, não as teria feito.
 — Não acredito em você, — ela disse, se ajeitando. — Mas me desculpe-eu não devia ter dito isso. Estava falando mais em como eu me sentiria fazendo uma. Em você, elas tendem a projetar uma certa... imagem e eu acho que encaixa.  
 — Que imagem é essa?
Ela apontou para as tatuagens, uma por uma, começando com o caractere chinês.
 — Essa aqui me diz que você vive a vida pelas suas próprias regras e nem sempre se importa com o que as pessoas pensam. A da infantaria mostra que você tem orgulho do que faz. E o arame farpado... bem, combina com quem você foi quando era mais jovem.
 — Esse é bem o perfil psicológico. Eu pensei que era só porque eu gostava das figuras.
 — Estou pensando em conseguir um diploma secundário em psicologia.
 — Acho que você já tem um.
Embora o vento tivesse começado, a chuva começou a diminuir.
 — Você já se apaixonou? — ela perguntou, mudando de marcha de repente.
Sua pergunta me surpreendeu.
 — Isso veio do nada.
 — Me disseram que ser imprevisível ajuda a aumentar o mistério feminino.
 — Ah, ajuda. Mas para responder a sua pergunta, eu não sei.
 — Como você pode não saber?
Eu hesitei, tentando pensar no que dizer.
 — Namorei uma garota alguns anos atrás, e na época, eu sabia que estava apaixonado. Pelo menos, era o que eu dizia a mim mesmo. Mas agora, quando penso novamente, eu só... não tenho mais certeza. Me preocupava com ela e gostava de passar o tempo com ela, mas quando não estávamos juntos, eu mal pensava nela. Estávamos juntos, mas não éramos um casal, se isso faz algum sentido. Ela considerou minha resposta mas não disse nada. Depois de um tempo, me virei pra ela. — E você? Já se apaixonou alguma vez?  
O rosto dela escureceu.
 — Não, — ela disse.
 — Mas pensou que estava apaixonada. Como eu, certo? Quando ela inspirou com força, eu prossegui. — No meu esquadrão, tenho que usar um pouco de psicologia também. E meus instintos me dizem que há um namorado sério no seu passado.
Ela sorriu, mas havia algo triste em seu sorriso.
 — Eu sabia que você descobriria, — ela disse em uma voz abatida. — Mas pra responder sua pergunta, sim, há. Durante o meu primeiro ano na faculdade. E sim, eu pensei que o amava.
 — Tem certeza de que você não o amava?
Ela levou um tempo pra responder.
 — Não, — ela murmurou. — Não tenho certeza.
A encarei.
 — Você não tem que me contar...
 — Tudo bem, — ela disse, erguendo a mão para me cortar. — Mas é difícil. Tentei esquecer isso, e é uma coisa que eu nunca contei nem mesmo aos meus pais. Ou a qualquer outra pessoa. É tão clichê, sabe? Garota de cidade pequena vai embora pra faculdade e conhece um veterano, que também é presidente da sua fraternidade. Ele é popular, rico e charmoso, e a pequena caloura está admirada que ele poderia se interessar por alguém como ela. Ele a trata como se ela fosse especial e ela sabe que outras calouras estão com inveja, então ela começa a se sentir especial também. Ela concorda em ir ao baile de inverno em um desses hotéis luxuosos fora da cidade, com ele e alguns outros casais, mesmo que ela tenha sido alertada que o garoto não é tão amável ou sensível como ele parece ser, e que na verdade, ele é o tipo de garoto que faz marcas no beira da cama para cada garota que pegou.
Ela fechou os olhos, como se estivesse reunindo a energia para continuar.
 — Ela vai contra o melhor julgamento de seus amigos e mesmo que ela não beba e ele alegremente lhe traga um refrigerante, ela começa a ficar tonta e ele se oferece para levá-la de volta ao quarto do hotel para se deitar. E a próxima coisa que ela sabe é que eles estão na cama se beijando e ela gosta inicialmente, mas o quarto está mesmo girando e não ocorre a ela até mais tarde que talvez alguém - talvez ele - tenha colocado alguma coisa em sua bebida e que fazer outra marca com o nome dela tenha sido sua meta todo o tempo.
Suas palavras começaram a vir rápidas, caindo umas sobre as outras.
 — E então ele começa a apalpar seus seios e o vestido dela é arrancado e então a calcinha dela é arrancada também, mas ele está em cima dela e ele é tão pesado e ela não consegue empurrá-lo, e ela se sente muito indefesa e quer que ele pare, porque ela nunca fez isso antes, mas então ela está tão tonta que mal consegue falar e não pode pedir ajuda, e ele provavelmente conseguiria o que queria com ela se outro casal não tivesse aparecido e ela sai cambaleando do quarto, chorando e segurando o vestido. De alguma forma ela encontra o caminho para o banheiro do lobby e fica lá chorando, e outras garotas com quem ela tinha viajado para o baile entram e vêem o rímel manchado e o vestido rasgado e ao invés de ajudarem, elas riem dela, agindo como se ela devesse saber o que aconteceria e como se ela tivesse tido o que merecia. Finalmente ela termina ligando para um amigo que pula no seu carro e dirige até lá para pegá-la, e ele foi esperto o suficiente para não fazer perguntas durante todo o caminho de volta.
Quando ela acabou, eu estava rígido de raiva. Eu não sou santo com mulheres, mas nunca na minha vida pensei em forçar uma mulher a fazer algo que ela não queria.
 — Sinto muito, — foi tudo que eu consegui juntar.
 — Você não precisa sentir. Não foi você que fez.
 — Eu sei. Mas não sei o que mais dizer. A menos... eu parei e depois de um momento ela se virou para mim. Eu podia ver lágrimas correndo por suas bochechas e o fato de que ela estivera chorando tão silenciosamente me fez doer.
 — A menos que o que?
 — A menos que você queira que eu... não sei. Acabe com ele?
Ela me deu uma pequena risada triste.
 — Você não tem ideia de quantas vezes eu qui simplesmente fazer isso.
 — Eu farei, — eu disse. — Só me dê um nome, mas prometo lhe deixar fora disso. Eu farei o resto.
Ela apertou minha mão. — Eu sei que você faria.
 — Estou falando sério, — eu disse.
Ela me deu um sorriso pálido, parecendo ao mesmo tempo experiente e dolorosamente jovem. — É por isso que eu não vou te dizer. Mas acredite, estou tocada. É muito doce da sua parte.
Gostei do jeito que ela disse isso e sentamos juntos, com as mãos abraçadas apertado. A chuva havia finalmente parado e no seu lugar eu podia ouvir os sons do rádio do vizinho de novo. Eu não conhecia a música, mas reconheci como sendo alguma coisa da antiga era do jazz. Um dos caras no meu pelotão era fanático por jazz.
 — Mas de qualquer forma, — ela começou, — era isso que eu quis dizer quando disse que meu ano de caloura não foi sempre fácil. E foi por isso que eu quis desistir. Meus pais, que Deus os abençoe, pensaram que eu estava só com saudade de casa, então eles me fizeram ficar. Mas... mesmo tendo sido ruim, aprendi algo sobre mim mesma. Que eu podia passar por uma coisa assim e sobreviver. Quer dizer, sei que poderia ter sido pior - muito pior - mas pra mim, era tudo o que eu podia agüentar na época. E aprendi com isso.
Quando ela terminou, me peguei lembrando uma coisa que ela disse.
 — Foi Tim que trouxe você de volta do hotel aquela noite?
Ela olhou pra cima, assombrada.
 — Quem mais você chamaria? eu disse como forma de explicar.
Ela assentiu.
 — É, eu acho que você está certo. E ele foi ótimo. Até hoje, ele não perguntou nada de específico e eu não contei a ele. Mas desde então, ele tem sido um pouco protetor e eu não posso dizer que me importo.
No silêncio, eu pensei na coragem que ela tinha mostrado, não apenas aquela noite, mas depois também. Se ela não tivesse me contado, eu nunca teria suspeitado que alguma coisa de ruim tinha acontecido a ela. Me maravilhei que, apesar do que tinha acontecido, ela tinha conseguido se segurar à sua visão otimista do mundo.
 — Prometo ser um perfeito cavalheiro, — eu disse. Ela se virou pra mim.
 — Do que você está falando?
 — Hoje à noite. Amanhã à noite. Quando for. Eu não sou como aquele cara.
Ela passou um dedo pela minha mandíbula e eu senti minha pele formigar embaixo do seu toque.
 — Eu sei, — ela disse, parecendo se divertir. — Por que você acha que eu estou aqui com você agora?
Sua voz foi tão carinhosa e de novo eu reprimi a vontade de beijá-la. Não era o que ela precisava, não agora, mesmo que fosse difícil pensar em outra coisa.
 — Você sabe o que Susan disse depois daquela primeira noite? Quando você foi embora e eu voltei para o grupo?
Eu esperei.
 — Ela disse que você parecia assustador. Como se você fosse a última pessoa na Terra com quem ela iria querer ficar sozinha.
Eu sorri.
 — Já me disseram coisas piores, — a assegurei.
 — Não, você não está entendendo. Estou dizendo que eu lembro de ter pensado que ela não sabia do que estava falando, porque quando você me entregou minha bolsa na praia, eu vi honestidade e confiança e até algum carinho, mas nada aterrorizante de jeito nenhum. Sei que parece assustador, mas eu senti como se já te conhecesse. Desviei o olhar sem responder. Abaixo do poste, a névoa estava subindo do chão, um resquício do calor do dia. Os grilos tinham começado seu barulho, cantando uns para os outros. Eu engoli, tentando amenizar a súbita secura na minha garganta. Olhei pra Savannah, depois para o teto, depois para os meus pés e finalmente de volta para Savannah novamente. Ela apertou minha mão e eu dei um trêmulo suspiro, me maravilhando com o fato de que enquanto estava em uma licença comum, em um lugar comum, eu tinha de alguma forma me apaixonado por uma garota extraordinária chamada Savannah Lynn Curtis.
Ela viu minha expressão, mas a interpretou mal.
 — Me desculpe se te fiz ficar desconfortável, — ela sussurrou. — Eu faço isso às vezes. Vou muito além, quero dizer. Eu só solto o que estou pensando sem levar em conta como isso vai atingir outras pessoas.
 — Você não me deixou desconfortável, — eu disse, virando seu rosto pra o meu. — É só que eu nunca tive ninguém pra me dizer algo assim antes.  
Eu quase parei aí, consciente de que se eu deixasse as palavras dentro de mim, o momento passaria e eu escaparia sem colocar meus sentimentos na linha.
 — Você não tem ideia do quanto os últimos dias têm significado pra mim, — eu comecei. — Conhecer você foi a melhor coisa que já me aconteceu. Eu hesitei, sabendo que se parasse agora, nunca seria capaz de dizer a ninguém. — Eu te amo, — sussurrei.
Sempre imaginei que as palavras seriam difíceis de dizer, mas não foram.
Em toda a minha vida, nunca tive tanta certeza de nada e por mais que eu esperasse um dia ouvir Savannah dizendo essas palavras para mim, o que mais importou foi saber que o amor era meu para dar, sem restrições ou expectativas.
Lá fora o ar estava começando a esquentar e eu podia ver piscinas de água brilhando à luz da lua. As nuvens tinham começado a desaparecer e, entre elas, uma esporádica estrela piscou, como se para me lembrar do que eu tinha acabado de admitir.
 — Você alguma vez já imaginou algo assim? — ela se perguntou em voz alta. — Você e eu, quero dizer?
 — Não, — eu disse.
 — Me assusta um pouco.
Meu estômago pulou e imediatamente, eu tinha certeza que ela não se sentia da mesma forma.
 — Você não precisa me dizer de volta, — eu comecei. — Não foi por isso que eu disse...
 — Eu sei, — ela interrompeu. — Você não entende. Eu não estava assustada por que você me contou. Fiquei assustada porque eu também queria dizer: eu te amo, John.  
Mesmo agora, ainda não tenho certeza de como aconteceu. Em um instante estávamos conversando e no seguinte ela se inclinou em minha direção. Por um segundo, me perguntei se beijá-la iria quebrar o feitiço sob o qual nós dois estávamos, mas era tarde demais para parar. E quando os seus lábios encontraram os meus, eu sabia que poderia viver até os cem anos e visitar todos os países do mundo, mas nada iria se comparar àquele momento que eu beijei pela primeira vez a garota dos meus sonhos e soube que meu amor duraria para sempre.

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