Capítulo Quatro

 Eu estava em casa às cinco e embora não me sentisse queimado do sol, aquela pele européia do sul novamente - o queimado ficou óbvio quando tomei banho. Meu peito e meus ombros arderam quando a água ricocheteou neles, e meu rosto me fez sentir como se eu estivesse com uma febre baixa. Depois, me barbeei pela primeira vez desde que cheguei em casa e vesti uma bermuda limpa e uma das minhas poucas camisas ultrapassadas relativamente boas que eu tinha, azul clara. Lucy tinha comprado e jurado que a cor era perfeita pra mim. Enrolei as mangas para cima e deixei a camisa desabotoada, então vasculhei meu armário à procura de um antigo par de sandálias.
Através da rachadura da porta eu podia ver meu pai na sua mesa, e me ocorreu que pela segunda noite seguida eu tinha feito outros planos para o jantar. E eu nem tinha passado nenhum tempo com ele esse fim de semana. Ele não reclamaria, eu sabia, mas ainda assim senti uma pontada de culpa. Depois de pararmos de falar sobre moedas, o café da manhã e o jantar eram a única coisa que nós compartilhávamos e agora eu o estava privando até mesmo disso. Talvez eu não tivesse mudado tanto quanto pensava. Eu estava na sua casa e comenda da sua comida e estava para perguntá-lo se poderia pegar seu carro emprestado. Em outras palavras, levando minha própria vida e usando-o no processo. Me perguntei o que Savannah diria sobre isso, mas eu achava que já sabia a resposta. Savannah às vezes parecia muito com a pequena voz que tinha se instalado na minha cabeça mas nunca se importou em pagar aluguel, e nesse momento, ela sussurrava que se eu me sentisse culpado, talvez estivesse fazendo algo errado. Resolvi que passaria mais tempo com ele. Era uma saída fácil e eu admiti isso, mas não sabia o que mais fazer.
Quando abri a porta, meu pai pareceu sobressaltado ao me ver.
— Oi pai, — eu disse, me sentando no lugar de sempre.
— Oi, John. — Assim que falou, ele olhou sua mesa e passou uma mão sobre o seu cabelo ralo. Quando eu não disse mais nada, ele se deu conta de que deveria me fazer uma pergunta. — Como foi o seu dia? — ele finalmente me perguntou.
Mudei de posição no meu lugar. Foi ótimo, na verdade. Passei a maior parte do dia com Savannah, a garota de que lhe falei ontem à noite.
 — Ah. Seus olhos se viraram para o lado, se recusando a encontrar os meus. Você não me contou sobre ela.
 — Não?
 — Não, mas está tudo bem. Era tarde. Pela primeira vez ele pareceu se dar conta de que eu estava arrumado, ou pelo menos mais arrumado do que ele já tinha me visto, mas ele não conseguiu se obrigar a me perguntar nada.
Eu dei um puxão na minha camisa, tirando ele do aperto.
 — É, eu sei, tentando impressioná-la, certo? Vou levar ela pra sair hoje à noite, — eu disse. Tudo bem se eu pegar o carro emprestado?
 — Ah... tudo bem, — ele disse.
 — Quer dizer, você vai precisar dele hoje? Posso ligar pra um amigo ou algo assim.
 — Não, — ele disse. Enfiou a mão no bolso para pegar as chaves. Nove entre dez pais as teria jogado; o meu as estendeu para mim.
 — Você está bem? — perguntei.
 — Só cansado, — ele disse.
Me levantei e peguei as chaves. Pai? Ele ergueu o olhar novamente. Me desculpe por não jantar com você nessas últimas noites.
 — Tudo bem, — ele disse. Eu entendo.

***

O sol estava começando a sua lenta descida e quando eu arranquei com o carro, o céu era um redemoinho de cores suaves que contrastavam dramaticamente com o céu da noite que eu tinha conhecido na Alemanha. O trânsito estava horrível, como sempre em noites de domingo e eu levei quase trinta minutos enfumaçados para voltar à praia e estacionar.
Empurrei a porta da casa sem bater. Dois garotos que estavam sentados no sofá assistindo a um jogo de baseball me ouviram entrar.
 — Hey, — eles disseram, parecendo desinteressados e indiferentes.
 — Vocês viram Savannah?
 — Quem? — um deles perguntou, obviamente prestando pouca atenção em mim.
 — Deixa pra lá. Eu encontro ela. Cruzei a sala até o deque traseiro, vi o mesmo cara da noite anterior na churrasqueira novamente e alguns outros, mas nenhum sinal de Savannah. Também não a vi na praia. Estava para voltar pra dentro quando senti alguém dando tapinhas no meu ombro.
 — Quem você está procurando? ela perguntou.
Eu me virei.
 — Uma garota, — eu disse. Ela tem tendência a perder coisas em píers, mas é uma aprendiz rápida quando se trata de surf.
Ela colocou as mãos nos quadris e eu sorri. Estava de shorts e com uma blusa sem mangas com uma alça que passava pela sua nuca, deixando seu colo e a parte de cima das suas costas descobertos, com um indício de cor em suas bochechas, eu notei que ela tinha colocado um pouco de rímel e batom. Mesmo adorando sua beleza natural, sou um garoto da praia, ela estava ainda mais chamativa do que eu me lembrava. Senti o sopro de alguma fragrância de limão enquanto ela se inclinava em minha direção.
 — É tudo o que eu sou? Uma garota? — ela perguntou. Soava ao mesmo tempo brincalhona e séria, e por um minuto eu fantasiei envolvê-la com meus braços ali mesmo, naquele momento.
 — Ah, — eu disse, me fingindo de surpreso. É você.
Os dois caras no sofá olharam rápido para nós e depois retornaram para a tela.
 — Pronta para ir? — perguntei.
 — Só tenho que pegar minha bolsa, — ela disse. Ela pegou a bolsa do balcão da cozinha e começamos a caminhar para a porta. E onde estamos indo, à propósito?
Quando a respondi, ela ergueu uma sobrancelha.
 — Você está me levando para comer em um lugar com a palavra cabana no nome?
 — Eu só sou um cara mal pago do exército. É tudo que eu posso bancar.
Ela me empurrou enquanto caminhávamos. Tá vendo, é por isso que eu normalmente não saio com estranhos.
A cabana de Camarão fica no centro de Wilmington, na área histórica que faz fronteira com o rio Cape Fear. Em uma ponta da área histórica estão seus típicos destinos turísticos: lojas de souvenires, alguns lugares especializados em antiguidades, alguns restaurantes elitizados, cafeterias e vários escritórios do estado. Na outra ponta, contudo, Wilmington representava seu personagem como cidade portuária trabalhadora: grandes armazéns, mais de um permaneciam abandonados, e outros velhos prédios de escritórios apenas ocupados pela metade. Eu duvidava que os turistas que se amontoavam aqui no verão alguma vez vieram para esse lado. Essa foi a direção que eu tomei. Pouco a pouco a multidão se dispersava até que não sobrou ninguém na calçada enquanto a área ficava mais e mais arruinada.
 — Onde é este lugar? Savannah perguntou.
 — Só um pouco mais adiante, — eu disse. Lá em cima, no final.
 — É um pouco fora do caminho, não é?
 — É meio que uma instituição local, — eu disse. O dono não se importa se os turistas vêm ou não. Nunca se importou.
Um minuto depois, diminuí a velocidade do carro e virei em um pequeno estacionamento ao lado de um dos armazéns. Algumas dúzias de carros estavam estacionados em frente à Cabana de Camarão, como sempre, e o lugar não havia mudado. Desde que o conheci parecia desmantelado, com uma ampla varanda desarrumada, pintura descascada e um teto torto que fazia parecer que o lugar estava prestes a desabar, apesar do fato de estar enfrentando furacões desde 1940. O exterior estava decorado com redes, capotas e placas de carros, uma velha âncora, remos e algumas correntes enferrujadas. Uma canoa quebrada estava perto da porta.
O céu estava começando o seu escurecimento preguiçoso quando caminhamos até a entrada. Me perguntei se deveria pegar na mão de Savannah, mas no final eu não fiz nada. Apesar de ter tido algum sucesso induzido por hormônios com as mulheres, eu tinha pouquíssima experiência quando se tratava de garotas com quem eu me importava. Apesar do fato que apenas um dia tinha passado desde que nos conhecemos, eu já sabia que estava em território novo. Subimos na varanda envergada e Savannah apontou para a canoa.  
 — Talvez seja por isso que ele tenha aberto um restaurante, porque o barco dele afundou.
 — Pode ser. Ou talvez alguém deixou isso aí e ele nunca se importou em removê-lo. Pronta?
 — Como sempre estarei, — ela disse e eu empurrei a porta.
Não sei o que ela esperava, mas ela tinha uma expressão satisfeita no rosto enquanto entrava. Havia um longo bar em um lado, janelas que davam para o rio e na área central, bancos de piquenique de madeira. Algumas garçonetes com cabelos armado - elas não pareciam ter mudado mais que a decoração - se moviam entre as mesas, carregando bandejas de comida. O ar tinha o cheiro oleoso de comida frita e fumaça de cigarro; esmo assim, de alguma forma parecia certo. A maioria das mesas estava ocupadas, mas eu indiquei uma perto do jukebox. Estava tocando uma música country do oeste, embora eu não soubesse dizer quem era o cantor. Sou mais um fã de rock clássico.
Fizemos nosso caminho por entre as mesas. A maioria dos clientes pareciam trabalhar duro pelo seu sustento: trabalhadores de construção, jardineiros, caminhoneiros e etc. Eu nunca tinha visto tantos bonés de baseball da NASCAR desde... bem, eu nunca tinha visto tantos. Alguns caras do meu esquadrão eram fãs, mas eu nunca saquei a graça de assistir a um grupo de marmanjos dirigirem em círculo o dia todo ou descobri porque eles não publicavam os artigos na seção de automóveis do jornal em vez de na seção de esportes. Nos sentamos um em frente ao outro e eu observei enquanto Savannah assimilava o lugar.
 — Gosto de lugares assim, — ela disse. — Quando você morava aqui era esse seu destino habitual?
 — Não, esse era mais um lugar para ocasiões especiais. Normalmente eu saía para um lugar chamado Leroy's. É um bar perto da praia de Wrightsville. Ela pegou um menu laminado que estava entre um porta guardanapos de metal e garrafas de ketchup e molho picante Texas Pete.
 — Isso é muito melhor, — disse. Ela abriu o menu. Agora, pelo que esse lugar é famoso?
 — Camarão, — eu disse.
 — Nossa, sério? ela perguntou.
 — Sério. Todo tipo de camarão que você puder imaginar. Você sabe aquela cena de Forrest Gump quando Bubba estava contando a Forrest todos as formas de se preparar camarão? Grelhado, salgado, em churrasco, camarão Cajun, camarão ao limão, camarão Creole, coquetel de camarão... É esse o lugar.
 — De qual você gosta?
 — Eu gosto deles resfriados com molho de coquetel do lado. Ou fritos.
Ela fechou o menu.
 — Você escolhe, — disse, empurrando o menu me minha direção. Eu confio em você.
Coloquei o menu de volta nos eu lugar, encostado no porta guardanapos.
 — Então?
 — Resfriados. Em um balde. É a experiência consumada.
Ela se inclinou por sobre a mesa.
 — Então quantas mulheres você já trouxe aqui? Para a experiência consumada, quero dizer.
 — Incluindo você? Deixe-me pensar. Bati os dedos na mesa. Uma. 
 — Estou honrada.
 — Este era mais um lugar pra mim e meus amigos quando queríamos comer em vez de beber. Não havia comida melhor depois de um dia de surf.
 — Como eu descobrirei em breve.
A garçonete apareceu e eu pedi o camarão. Quando ela perguntou o que queríamos para beber, eu ergui as mãos.
 — Chá, por favor, — Savannah disse.
 — Traga dois — eu completei.
Depois que a garçonete saiu, nos acomodamos em uma conversa fácil, ininterrupta mesmo quando nossas bebidas chegaram. Falamos sobre a vida no exército novamente; por alguma razão, Savannah parecia fascinada com ela. Ela também perguntou sobre crescer aqui. Contei a ela mais do que pensei que iria sobre meus anos no Ensino Médio e provavelmente demais sobre os três anos antes do meu alistamento.
Ela ouviu atentamente, fazendo perguntas aqui e ali, e eu me dei conta de que já fazia um bom tempo desde que eu havia tido um encontro como este; alguns anos, talvez mais. Não desde Lucy, de qualquer forma. Eu não via nenhuma razão para isso, mas quando sentei diante de Savannah, tive que repensar minha decisão. Eu gostava de ficar sozinho com ela, e queria ver mais dela. Não só esta noite, mas amanhã e no dia seguinte. Tudo, desde a maneira fácil como ela ria, ao seu humor, à sua óbvia preocupação com os outros - me atingiam como novos e desejáveis. Então novamente, passar algum tempo com ela me fez perceber o quanto eu tinha sido solitário. Eu não tinha admitido isso para mim mesmo, mas depois de apenas dois dias com Savannah, eu sabia que era verdade.
 — Vamos colocar alguma música para tocar, — ela disse, interrompendo meus pensamentos.
Me levantei da minha cadeira, remexi meus bolsos à procura de alguma moeda de 25 centavos, e depositei na máquina. Savannah colocou as duas mãos no vidro e se inclinou para frente, como se lesse os títulos, depois escolheu algumas músicas. Quando voltamos à mesa, a primeira já estava tocando.
 — Sabe, acabei de me dar conta que só eu tenho falado a noite toda, — eu disse.
 — Você é uma matraca, — ela observou.
Tirei meus talheres do guardanapo de papel que os envolvia.
 — E você? Você sabe tudo sobre mim, mas eu não sei nada sobre você.
 — Claro que sabe, — ela disse. Você sabe quantos anos eu tenho, qual faculdade eu frequento, minha especialização e o fato de que eu não bebo. Sabe que eu sou de Lenoir, moro em uma fazenda, amo cavalos, e passo meus verões construindo casas para o Habitat para a Humanidade. Você sabe muita coisa.
É, de repente me dei conta, eu sabia. Incluindo coisas que ela não tinha mencionado.
 — Não é o bastante, — eu disse. Sua vez.
Ela se inclinou para frente. Pergunte o que quiser.
 — Me conte sobre seus pais, — eu disse.
 — Certo, — disse ela, pegando um guardanapo. Ela secou a condensação de seu copo. Meu pai e minha mãe são casados há vinte e cinco anos e ainda estão muito felizes e loucamente apaixonados. Eles se conheceram na faculdade na Appalachian State, e minha mãe trabalhou em um banco alguns anos até eu nascer. Desde então ela tem sido uma mãe caseira e ela foi o tipo de mãe que estava lá pra todo mundo também. Ajudante de sala de aula, motorista voluntária, técnica do nosso time de futebol, cabeça da Associação de Pais e Mestres, todo esse tipo de coisa. Agora que eu vim embora ela passa o dia todo como voluntária de outras coisas - a biblioteca, escolas, a igreja, o que for. Meu pai é professor de história na escola e é técnico do time de vôlei feminino desde que eu era pequena. Ano passado elas chegaram a final estadual, mas perderam. Ele também é diácono na nossa igreja e coordena o grupo de jovens e o coral. Quer ver uma foto?
 — Claro, — eu disse.
Ela abriu sua bolsa e tirou a carteira. Ela a abriu e empurrou por cima da mesa, nossos dedos se tocando. Estão um pouco esfarrapadas nas bordas por causa da água do mar, — ela disse, — mas dá pra ter uma ideia.
Virei a foto. Savannah tinha mais características do pai do que da mãe, ou pelo menos tinha herdado os traços mais escuros dele.
 — Belo casal.
 — Eu os amo, — ela disse, pegando a carteira de volta. — Eles são os melhores.
 — Por que você mora em uma fazenda se seu pai é professor?
 — Ah, não é uma fazenda de trabalho. Era quando pertencia a meu avô, mas ele teve que vender pedaços para pagar os impostos dela. Quando meu pai a herdou estava reduzida a 4 hectares com uma casa, estábulos e um curral. É mais um grande quintal do que uma fazenda. É como sempre nos referimos a ele, mas acho que passa a imagem errada, né?
 — Eu sei que você disse que fez ginástica olímpica, mas você jogou vôlei no time do seu pai?
 — Não, — ela disse. Quer dizer, ele é um ótimo técnico, mas sempre me encorajou a fazer o que era certo pra mim. E não era vôlei. Eu tentei e foi legal, mas não era o que eu amava.
 — Você amava cavalos.
 — Desde que era uma garotinha. Minha mãe me deu uma estátua de um cavalo quando eu era bem pequena, e foi isso que começou a coisa toda. Ganhei meu primeiro cavalo no Natal quando tinha oito anos e ainda é o melhor presente de Natal que eu já recebi. Slocum. Ela era uma velha égua muito gentil e era perfeita pra mim. O acordo era que eu deveria cuidar dela-alimentá-la, escová-la e manter sua baia limpa. Entre ela, a escola, a ginástica e tomar conta do resto dos animais, eu só tinha tempo pra isso.
 — O resto dos animais?
 — Quando eu estava crescendo, minha casa era tipo uma fazenda mesmo. Cachorros, gatos, até uma lhama por um tempo. Eu era louca por animais perdidos. Meus pais chegaram ao ponto de nem discutir mais comigo sobre eles. Geralmente tinha quatro ou cinco deles de uma vez. Algumas vezes um dono vinha, esperando achar seu bichinho perdido, e saía com uma de nossas adições recentes se não achasse. Éramos como a libra.
 — Seus pais eram pacientes.
 — Sim, — ela disse, — eles eram. Mas eram loucos por animais perdidos também. Mesmo que negasse, minha mãe era pior que eu.
A observei.
 — Aposto que você era uma boa aluna.
 — Invariáveis A's. Fui a oradora da minha classe.
 — Por que isso não me surpreende?  
 — Não sei, — ela disse. Por quê?
Não respondi.
 — Você já teve um namorado sério?
 — Ah, agora estamos indo direto ao ponto, hein?
 — Só estava perguntando.
 — O que você acha?
 — Eu acho, — eu disse, arrastando as palavras, — Eu não faço ideia.
Ela riu.
 — Então... vamos deixar essa pergunta passar por agora. Um pouco de mistério é bom para a alma. Além disso, estou disposta a apostar que você pode descobrir por conta própria.
A garçonete chegou com o balde de camarões e algumas garrafas de molho de coquetel, os colocou na mesa e reabasteceu nosso chá com a eficiência de alguém que tem feito isso por muito tempo. Ela virou nos seus sapatos de salto sem perguntar se queríamos mais alguma coisa.
 — Esse lugar é legendário por sua hospitalidade.
 — Ela só está ocupada, — Savannah disse, pegando um camarão. E além disso, acho que ela sabe que você está me interrogando e quis me deixar com o meu inquisidor.
Ela quebrou o camarão e o descascou, depois mergulhou-o no molho antes de morder um pedaço. Peguei alguns da vasilha e coloquei no meu prato.
 — O que mais você quer saber?  
 — Não sei. Qualquer coisa. Qual a melhor parte de estar na faculdade?
Ela pensou sobre isso enquanto reabastecia seu prato.
 — Bons professores, — disse finalmente. Na faculdade, às vezes você pode escolher seus professores se você tiver uma agenda flexível. É isso que eu gosto. Antes de começar, foi esse o conselho que meu pai me deu. Ele disse para escolher aulas baseadas no professor sempre que possível, e não na matéria. Quer dizer, ele sabia que existem algumas matérias que você tem que escolher se quiser se graduar, mas a razão dele era que bons professores não tem preço. Eles te inspiram, tem entretêm e você acaba aprendendo muitas coisas mesmo sem saber.
 — Porque eles são apaixonados pelas suas matérias — eu disse.
Ela piscou.
 — Exatamente. E ele estava certo. Peguei aulas de matérias que eu nunca pensei que fosse me interessar e o mais distantes da minha especialização que você pode imaginar. Mas sabe de uma coisa? Eu ainda lembro dessas aulas como se ainda as estivesse tomando.
 — Estou impressionado. Pensei que você diria que ir à jogos de basquete fosse a melhor parte de estar na faculdade. É como uma religião em Chapel Hill.
 — Gosto disso também. Assim como gosto dos amigos que estou fazendo e viver longe de mamãe e papai e tudo isso. Aprendi muito desde que saí de Lenoir. Quer dizer, tive uma vida maravilhosa lá e meus pais são ótimos, mas eu estava... presa. Tive algumas experiências de abrir os olhos.
 — Como o que?
 — Muitas coisas. Como sentir a pressão de beber ou me agarrar com um cara toda vez que eu saía. No meu primeiro ano, eu odiei a UNC. Não senti que fosse me enturmar, e eu não me enturmei. Implorei para meus pais me deixarem ir pra casa ou me transferir, mas eles não concordaram. Acho que eles sabiam que eu iria me arrepender a longo prazo e   provavelmente estavam certos. Foi só no meu segundo ano que encontrei algumas garotas que se sentiam do mesmo modo que eu sobre esse tipo de coisa e tem sido muito melhor desde então. Me juntei a alguns grupos de estudantes cristãos, passo as manhãs de sábado em um abrigo em Raleigh servindo os pobres, e não sinto nenhuma pressão para ir à essa ou àquela festa ou sair com esse ou aquele cara. E se eu for a uma festa, a pressão não me atinge. Eu só aceito o fato de que eu não tenho que fazer o que todo mundo faz. Posso fazer o que é certo pra mim.
O que explicava por que ela estava comigo na noite passada, eu pensei. E agora também.
Ela se animou. É meio como você, eu acho. Nos últimos anos, eu cresci. Então, junto ao fato de que somos especialistas em surf também temos isso em comum.
Eu ri. 
 — É. Tirando que eu lutei muito mais do que você.
Ela se inclinou para a frente novamente. Meu pai sempre dizia que quando você está lutando com alguma coisa, olhe para todas as pessoas ao seu redor e perceba que cada uma delas que você vê está lutando com alguma coisa, e para elas, é tão difícil quanto o que você está passando.
 — Seu pai parece ser um homem esperto.
 — Minha mãe e meu pai são. Acho que os dois se formaram entre os cinco melhores na faculade. Foi como eles se conheceram. Estudando na biblioteca. Educação era muito importante para os dois e eles meio que fizeram de mim seu projeto. Quer dizer, eu lia antes de ir pra o jardim de infância, mas eles nunca fizeram parecer com uma tarefa. E eles têm falado comigo como se eu fosse adulta desde que eu me lembro.
Por um momento, me perguntei o quanto minha vida seria diferente se eles tivessem sido meus pais, mas sacudi o pensamento para longe. Sabia que meu pai tinha feito o melhor que podia, e eu não tinha nenhum arrependimento do modo como eu acabei. Arrependimentos sobre a jornada, talvez, mas não sobre o destino. Porque como quer que tivesse acontecido, de algum modo eu iria acabar comendo camarão em uma cabana deprimente do centro da cidade com uma garota que eu já sabia que nunca esqueceria.
Depois do jantar, voltamos para a casa, que estava surpreendentemente calma. A música ainda tocava, mas a maioria das pessoas estavam relaxando ao redor do fogo, como se antecipassem a manhã. Tim estava entre eles, absorto em uma conversa séria. Me surpreendendo, Savannah pegou minha mão, me parando no caminho antes de alcançarmos o grupo.
 — Vamos dar uma caminhada, — ela disse. — Quero deixar o jantar assentar só um pouco antes de sentar.
Acima de nós, algumas nuvens finas estavam espalhadas entre as estrelas, e a lua, ainda cheia, pairava no horizonte. Uma brisa leve soprou na minha bochecha, e eu podia ouvir o movimento incessante das ondas enquanto elas rolavam para a costa. A maré tinha baixado e nós nos movemos para a areia mais dura e compacta perto da beira da água. Savannah colocou uma mão no meu ombro para manter o equilíbrio enquanto ela tirava uma sandália, e depois a outra. Quando ela terminou, eu fiz o mesmo, e demos alguns passos em silêncio.
 — É tão lindo aqui fora. Quer dizer, eu amo as montanhas, mas isso é maravilhoso a sua própria maneira. É cheio de... paz.
Senti que as mesmas palavras poderiam ser usadas para descrevê-la, e eu não tinha certeza do que dizer.
 — Não acredito que só te conheci ontem, — ela adicionou. Parece que eu te conheço há muito mais tempo.
A mão dela estava quente e macia na minha. Estava pensando a mesma coisa.  
Ela deu um sorriso sonhador, observando as estrelas.
 — Me pergunto o que Tim pensa sobre isso, — ela murmurou. Ela me olhou. Ele acha que sou um pouco ingênua.
 — Você é?
 — Às vezes — ela admitiu, e eu ri.
Ela continuou.
 — Quer dizer, se eu ver duas pessoas saindo para uma caminhada como essa, eu penso, — Ah, que fofo — . Não penso, — eles vão transar atrás das dunas — . O fato é que às vezes eles transam. Eu só nunca penso nisso de ante mão e sempre me surpreendo quando ouço sobre isso depois. Não posso evitar. Como noite passada, depois de você ir embora. Ouvi sobre duas pessoas aqui que fizeram isso e não pude acreditar.
 — Eu teria ficado mais surpreso se não tivesse acontecido.
 — É isso que eu não gosto na faculdade, à propósito. Muitas pessoas não acreditam que esses anos de atrevimento realmente contam, então é permitido você experimentar com... o que for. Há uma visão informal sobre coisas como sexo, bebidas e até drogas. Eu sei que isso soa muito careta, mas eu não entendo. Talvez tenha sido por isso que eu não quis ir sentar ao redor da fogueira como todo mundo. Pra ser honesta, estou um pouco desapontada com aquelas duas pessoas de quem ouvi falar, e eu não quero sentar lá e fingir que não estou. Sei que não devia julgar, e tenho certeza de que eles são boas pessoas por estarem aqui para ajudar, mas ainda assim, qual é o motivo? Você não deveria guardar coisas como essas para alguém que você ama? Para que realmente signifique alguma coisa?
Eu sabia que ela não queria respostas, e não ofereci nenhuma. Quem lhe contou sobre aquele casal? eu perguntei, em vez disso.
 — Tim. Acho que ele estava desapontado também, mas o que ele iria fazer? Expulsá-los?  
Tínhamos percorrido um bom caminho pela praia, e nos viramos.
À distância, eu podia ver o círculo de figuras em silhueta contra o fogo. A névoa cheirava a sal, e caranguejos se espalhavam para suas tocas na areia enquanto nos aproximávamos.
 — Me desculpe, — ela disse. — Eu estava errada.
 — Sobre o que?
 — Por ficar tão... chateada sobre isso. Eu não deveria julgar. Não é o meu lugar.
 — Todo mundo julga, — eu disse. É a natureza humana.
 — Eu sei. Mas... eu também não sou perfeita. No fim, é apenas o julgamento de Deus que importa e eu aprendi o bastante para saber que ninguém pode saber qual é a vontade de Deus.
Eu sorri.
 — O que? — ela perguntou.
 — O modo como você fala me lembra o nosso capelão. Ele diz a mesma coisa.
Nós caminhamos pela praia e quando nos aproximamos da casa, nos distanciamos da beira da água, em direção a areia fofa. Nossos pés deslizavam a cada passo e eu podia sentir Savannah colocar mais força no aperto de nossas mãos. Me perguntei se ela as soltaria quando chegássemos perto do fogo e fiquei desapontado quando ela o fez.
 — Hey, — Tim nos chamou, sua voz amigável. Vocês estão de volta.  
Randy estava lá também e tinha no rosto sua expressão emburrada habitual. Francamente, eu estava ficando um pouco cansado do ressentimento dele. Brad estava atrás de Susan, que se apoiava em seu peito. Susan parecia estar indecisa entre fingir estar feliz, para poder descobrir os detalhes com Savannah e ficar chateada em apoio a Randy. Os outros, obviamente indiferentes, voltaram para suas conversas. Tim se levantou e veio até nós.
 — Como foi o jantar?
 — Foi ótimo — Savannah disse. Provei um pouco da cultura local. Fomos ao Shrimp Shack.
 — Parece divertido, — ele comentou.
Me esforcei para detectar algum traço de ciúme mas não achei nenhum. Tim fez um movimento por sobre o ombro e falou. Querem se juntar a nós? Estamos só relaxando, nos preparando para amanhã.
 — Na verdade, estou com um pouco de sono. Eu só ia levar o John até o carro dele e depois ia entrar. À que horas devemos nos acordar?
 — Seis. Tomaremos café e estaremos na construção amanhã às sete e meia. Não esqueça seu protetor solar. Ficaremos no sol o dia todo.
 — Vou me lembrar. Você deveria relembrar todo mundo.
 — Tenho que fazer isso, — ele disse. E lembrarei amanhã de novo. Mas espere só-algumas pessoas não irão ouvir e vão fritar.
 — Te vejo pela manhã, — ela disse.  
 — Certo. Ele virou sua atenção pra mim. Fico feliz que você tenha aparecido hoje.
 — Eu também, — eu disse.
 — E escute, se você ficar entediado pelas próximas semanas, podemos sempre usar uma ajuda extra.
Eu ri. 
 — Sabia que isso estava vindo.
 — Sou quem eu sou, — ele disse, estendendo sua mão. Mas de qualquer modo, espero vê-lo novamente.
Apertamos as mãos. Tim voltou para o seu lugar e Savannah indicou a casa com a cabeça. Andamos em direção a duna, paramos para colocar nossas sandálias de volta e depois seguimos o caminho de madeira, pela grama e ao redor da casa. Um minuto depois, estávamos no carro. No escuro, eu não podia enxergar a expressão dela.
 — Me diverti essa noite, — ela disse. — E hoje.
Eu engoli. 
— Quando eu posso te ver de novo?
Foi uma pergunta simples, até mesmo já esperada, mas fiquei surpreso ao ouvir o desejo no meu tom. Eu ainda nem a tinha beijado.
 — Eu acho, — ela disse, — que isso depende de você. Você sabe onde eu estou.
 — Que tal amanhã à noite? Falei sem pensar. Sei de outro lugar que tem uma banda e é muito divertido.
Ela colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha. Que tal na noite depois dessa? Tudo bem? É só que o primeiro dia na construção é sempre... excitante e cansativo ao mesmo tempo. Temos um grande jantar em grupo que eu realmente não deveria perder.
 — Sim, tudo bem, — eu disse, achando que não estava tudo bem de jeito nenhum.
 — Ela deve ter ouvido alguma coisa na minha voz. Como Tim disse, você é bem vindo para aparecer se quiser.
 — Não, tudo bem. A terça á noite está bom.
Continuamos lá parados, num daqueles momentos estranhos que eu provavelmente nunca irei me acostumar, mas ela se virou antes que eu pudesse tentar um beijo. Normalmente, eu provavelmente teria mergulhado pra frente só pra ver o que aconteceria; eu posso não ter sido aberto sobre meus sentimentos, mas eu era impulsivo e rápido nas ações. Com Savannah, me senti estranhamente paralisado. Ela também não parecia estar com nenhuma pressa.
Um carro passou, quebrando o feitiço. Ela deu um passo em direção à casa, então parou e colocou sua mão no meu braço. Em um gesto inocente, ela me beijou na bochecha. Foi quase um beijo de irmãos, mas seus lábios eram macios e seu aroma me engolfou, persistindo mesmo depois que ela se afastou.
 — Eu realmente me diverti, — ela murmurou. — Não acho que irei esquecer desse dia por muito, muito tempo.
Senti sua mão deixar meu braço e então em um sussurro ela desapareceu, subindo as escadas da casa.
Mais tarde naquela noite em casa, me achei me revirando na cama, revivendo os eventos do dia. Finalmente me sentei, desejando que tivesse contado a ela o quanto o nosso dia tinha significado pra mim. Fora da minha janela, vi uma estrela cadente cruzar o céu em um brilhante risco branco. Eu queria acreditar que era uma profecia, embora de que, eu não   estava certo. Em vez disso, tudo o que eu podia fazer era sentir de novo o beijo gentil de Savannah na minha bochecha pela centésima vez e me perguntar como eu poderia estar me apaixonando por uma garota que eu só havia conhecido no dia anterior.

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