Capítulo 1 - Por que a morte do Sr. Snicket foi publicada no jornal?
O
PUNDONOR DIÁRIO
"Todas
as notícias em paroxismos impressos"
Obituários
Lemony
Snicket, Autor e Fugitivo
O
falecimento de Lemony Snicket, autor de Desventuras em Série, a supostamente
verdadeiras crônicas da vida das crianças Baudelaire, foi comunicado hoje por
fontes anônimas e possivelmente não confiáveis. Sua idade era tida como
"alto, com olhos castanhos". Não deixa herdeiros conhecidos.
Nascido em
uma fazenda de gado e não em um hospital, Snicket teve uma promissora carreira
erudita, começando como crítico teatral — em todos os sentidos — deste Pundonor
Diário, seguindo-se a isso a publicação de diversos tratados antropomórficos,
uma palavra que aqui significa "relatórios longos demais". Esse
período de realização profissional — e, ao que se alega, amor não correspondido
— terminou quando foi divulgada a notícia de seu envolvimento com c.s.c. e se
publicou nestas mesmíssimas páginas o escândalo decorrente da notícia.
O Sr.
Snicket então se tornou um foragido da Justiça e, nas raras vezes em que era
visto em público, estava sempre de costas. Diversas expedições de caça ao homem
— e, devido a um erro tipográfico, de caça à mulher — se provaram inúteis.
Finalmente as histórias dos Baudelaire e do Sr. Snicket parecem ter chegado ao
fim.
Como
ninguém parece saber quando, onde, como e por que ele morreu, não haverá
serviço funerário. Um enterro talvez seja programado mais para o fim do ano.
NOTA
PARA ARQUIVO:
Cheguei
cedo e ainda tenho alguns minutos até o horário previsto para a chegada do Próspero,
portanto achei que poderia escrever umas poucas notas com relação à notícia
de minha morte, que foi alarmante, porém não verdadeira. Estou, às quatro e
meia desta tarde, vivo, e muito certamente estava vivo no dia em que, sentado
no Café Kafka, tomando o chá da tarde, li meu obituário no jornal.
O
Pundonor Diário nunca
foi um jornal confiável: nem quando trabalhei lá, como parte de uma missão
secreta, nem quando aquela repórter horrorosa começou a escrever sobre o caso
Baudelaire, tampouco quando eles anunciaram uma liquidação de ternos alguns
dias atrás, em uma loja que, ao que se viu, não vendia nada além de tapetes
indianos.
Diferentemente
de um jornal confiável, que baseia suas matérias em fatos, O Pundonor Diário
baseia suas matérias em insinuações, uma palavra que aqui significa
"aquilo que dizem pessoas que procuram os jornais para contar
coisas que não são necessariamente verdadeiras".
A
única coisa que provou ser verdade no meu obituário foi a última sentença, e na
manhã de hoje vivi a curiosa experiência de comparecer ao meu próprio funeral.
Para minha grande surpresa, uma considerável multidão prestigiou o evento — na
maioria pessoas que acreditaram nas primeiras matérias sobre mim n'O
Pundonor Diário, e queriam certificar-se de que um notório criminoso estava
morto. A multidão estava muito quieta, mal se movia ou respirava, como se a
notícia da morte de cada um deles tivesse sido publicada no jornal. Fiquei do
lado de fora, escondendo o rosto embaixo de um guarda-chuva, enquanto meu
caixão era carregado para um comprido carro preto, e o único som que pude ouvir
foi um dic! mecânico de alguém tirando uma foto.
As
vezes, quando você está gostando muito de ler um livro, você começa a pensar tanto
nas personagens e na história que se esquece do autor, mesmo que ele esteja em
grave perigo e vá apreciar muito a sua ajuda. A mesma coisa pode acontecer
quando se olha muito para uma fotografia. Você pode se concentrar tanto no que
está retratado que se esquece de que alguém tirou aquela foto. Por sorte isso
não aconteceu comigo, e prestei muita atenção na pessoa que empunhava a máquina
no meio da multidão e que tirou a foto que você provavelmente tem neste
arquivo. O fotógrafo está na sétima fileira da multidão, é o décimo segundo a
partir da esquerda. Como você pode ver, a pessoa escondeu sua câmera atrás da
décima primeira pessoa a contar da esquerda. É por isso que estou aguardando
aqui neste porto nevoento, a fim de...
O
Próspero chegou, portanto vou parar de escrever e arquivar estas notas
junto com a carta que escrevi tantos anos atrás ao professor Patton, na qual
tratava de imprecisões com respeito a meu nascimento. Fico triste ao pensar que
toda minha vida, do berço ao túmulo, está cheia de erros; o que me consola é
saber que isso não vai acontecer com os Baudelaire.
Dr.
Charley Patton
Professor
Adjunto do Departamento de Música Popular
Instituto
Scriabin para Precisão na Música
Prezado
professor Patton,
Foi
com grande alívio que recebi sua carta com referência à balada popular "Snicket
pequenininho". Como o senhor menciona, é uma das baladas mais populares da
região, e muitas vezes, quando passei por teatros, hospedarias e armazéns, tive
oportunidade de ouvi-la, geralmente acompanhada por um acordeom. Muito embora a
melodia seja agradável, a canção não representa minha infância de modo
satisfatório, e agradeço a oportunidade de finalmente corrigir as incorreções
da letra.
Por
favor, perdoe a informalidade de minha resposta — simplesmente bati à máquina
algumas breves observações sobre a letra que o senhor me enviou. No momento estou
em meio aos preparativos de meu casamento, portanto não tenho tempo para o extenso
e erudito relatório que costumo escrever em casos como esse.
A
primeira incorreção está logo na primeira linha: eu jamais nasci em uma fazenda
de gado. Graças a "Snicket pequenininho", os boatos sobre meu
nascimento me perseguiram durante toda vida — imagino que algum dia meu
obituário também venha a alegar que nasci em uma fazenda de gado. O lugar onde
nasci não é uma fazenda de gado. Como prova, ofereço uma fotografia do lugar,
visto da margem do lago "bem mortal", congelado no inverno:
Como
o senhor talvez possa distinguir na fotografia, o Corajoso Sodalício Campestre
Pecuário tem mais de trezentas vacas atrás de suas cercas, mas esses animais cedem
apenas leite, não suas vidas. Pode parecer uma diferença pequena, mas não se
você for uma vaca ou uma criança, como eu era, que não apenas nasceu em uma
fazenda de laticínios (simplesmente porque meus pais pararam ali para comprar
manteiga com alho na hora errada), como também fez amizade com os queijeiros
que viviam no local. Esses queijeiros, cujos; nomes não vou revelar, continuam
sendo associados muito próximos de toda minha família. É arriscado divulgar
essa informação, mesmo para um erudito como você, mas, como parte de meu
trabalho com os heróis dessa balada, eu freqüentemente tenho de fornecer
informações secretas, que às vezes escondo em uma carta que começa com
"Querido Pecuário". Se a carta for interceptada, será descartada como
correspondência de algum queijeiro ou confundida com um fragmento de um
"diário" grafado erroneamente.
As
demais incorreções no primeiro verso são bem menos importantes. Dizer que meu
pai se chamava Jake não é bem verdade — ele era conhecido como Jacob por todos,
menos por seu parceiro de longo tempo no bridge —, e como você provavelmente
pode adivinhar, o verso que cita a estrada do Ladrão é invencionice. A estrada
do Ladrão fica claramente do outro lado do condado, em relação ao meu lar de
infância e ao Corajoso Sodalício Campestre Pecuário. Suspeito que o nome
"estrada do Ladrão" tenha sido escolhido para enfatizar a natureza
ladra do coro:
Tentei
sem sucesso encontrar a data de minha partida em um bom almanaque, mas não
consegui confirmar que a lua estava de fato acinzentada naquela noite em
particular. Pesquisar num almanaque é minha única chance de verificar essa
alegação, já que eu mesmo não me lembro. Fui carregado para fora da cozinha
pelos tornozelos, como é de costume, portanto estava virado para baixo, e não
podia ver o céu, além disso, as janelas do carro tinham vidros escuros,
portanto absolutamente tudo parecia cinzento quando fui levado de casa.
Eu
posso bem ter sido uma criança inteligente, se não especialmente vivaz, e como todos
os bebês não amaldiçoados por sérias alergias, eu de fato bebia muito leite,
mas a segunda metade da primeira metade do segundo verso é totalmente absurda.
Meus pais jamais teriam se permitido luxos como berço de prata e fraldas de
seda. A prova está aqui anexa. Esta fotografia me foi dada no automóvel, como
prova de que os passageiros estiveram me "olhando". Agora a entrego
ao senhor.
Receio
que a questão, a meu ver, mais importante não poderá jamais ser respondida,
pois todas as pessoas que poderiam respondê-la, ou estão mortas, ou escondidas,
ou são minhas inimigas. A questão é "quem tirou essa foto?". Minha
mãe me fez a mesma pergunta quando voltou para casa naquele dia fatídico e
encontrou a sua espera, não três criancinhas, mas um marido preocupado e duas
xícaras de chá pela metade.
Sempre me
incomodou o fato de a canção implicar que fui levado embora ainda de fraldas.
De fato, ouvi no Norte uma versão alternativa da balada, com a letra do coro como
segue:
Mas
letras de música não provam nada: fotografias sim. Há muito tempo eu não engatinhava
mais. Se conseguir encontrar, vou colar neste papel uma fotografia minha com a
idade em que fui levado. (Se não conseguir, vou colar uma fotografia de outra pessoa
mais ou menos com a mesma idade.)
No verso três:
Isso
é mais ou menos exato, para grande desgosto de minha mãe, que sempre quis ter
atrasado sua investigação um pouco mais, e assim ter estado em casa naquele dia
para dizer adeus. Meu irmão insiste em dizer que o deixaram terminar o chá
antes de partir, mas isso tem sido contestado com o passar dos anos.
Acaba
de me ocorrer que "nunca mais" pode ser uma expressão muito forte.
Uma versão exata do coro substituiria a expressão "nunca mais" pela
palavra "raramente", se bem que isso não seria dramático o bastante.
Finalmente,
temos a Coda, uma frase musical que aqui significa "o verso final que deixou
você tão perplexo":
Isso
é inteiramente exato. A única coisa que me ocorre acrescentar é que não consigo
ver nenhuma razão para a Coda inteira estar entre aspas.
Espero
sinceramente que o senhor ache essas notas úteis para seu nobre trabalho.
Respeitosamente,
P.S. A partitura
musical anexada pelo senhor está completamente incorreta — a melodia parece ser
de um conhecido hino sobre um desastre naval. Se possível, vou gravar a música
correta e enviar-lhe uma cópia em cassete.
P.P.S. Creio não
poder ajudá-lo com relação à outra balada mencionada pelo senhor. Vou conferir
com K., mas não me lembro de ninguém chamado "Velho McDonald" no
Corajoso Sodalício Campestre Pecuário, e não creio que I.A.I.A.O. se refira a
qualquer tipo de organização secreta.


















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