Capítulo 1
Depois de passar um bocado de tempo examinando oceanos,
investigando tempestades e perscrutando severamente diversos bebedouros, os
cientistas do mundo desenvolveram uma teoria a respeito de como a água é
distribuída pelo nosso planeta, a qual chamaram ‘’ciclo das águas’’. O ciclo
das águas consiste em três fenômenos-chave: evaporação, precipitação e
acumulação todos igualmente maçantes.
É claro que ler sobre coisas maçantes é maçante, mas é melhor ler
algo que faz você bocejar de tédio do que uma coisa que o fará chorar
descontroladamente, dar murros no chão e deixar manchas de lágrimas espalhadas
na fronha, nos lençóis e na sua coleção de bumerangues. Assim como o ciclo das
águas, a história das crianças Baudelaire consiste em três fenômenos-chave, mas
seria melhor se, em vez de ler esta lastimável história, você lesse alguma
coisa sobre o ciclo das águas mesmo.
Violet, o fenômeno mais velho, estava perto dos quinze anos de
idade e muito perto de ser a melhor inventora que o mundo já conheceu. Até onde
posso dizer, era a melhor inventora que já se viu capturada pelas águas
cinzentas do Arroio Enamorado, agarrando-se desesperadamente a um tobogã
enquanto era arrastada para longe do Vale das Correntezas que Sopram
Constantes. Se eu fosse você, preferiria me concentrar no maçante fenômeno da
evaporação, que é o processo pelo qual a água se transforma em vapor para
formar nuvens, em vez de pensar na confusão que a aguardava ao pé das Montanhas
de Mão-Morta.
Klaus era o segundo Baudelaire mais velho, mas seria melhor para
sua saúde que você se concentrasse no maçante fenômeno da precipitação, que é o
processo pelo qual o vapor volta a se transformar em água para cair em forma de
chuva, em vez de gastar um momento que seja pensando no fenômeno das excelentes
habilidades de Klaus como pesquisador e na quantidade de problemas e infortúnios
que essas habilidades lhe trouxeram, a partir do momento em que ele e suas
irmãs conheceram o conde Olaf, o notório vilão que perseguia as crianças desde
que seus pais pereceram em um incêndio terrível.
E até Sunny Baudelaire, recentemente saída da primeira infância, é
um fenômeno em si, não apenas por seus dentes afiadíssimos, que ajudaram os Baudelaire
em diversas circunstâncias desagradáveis, como também por suas recém-descobertas
habilidades culinárias, que alimentaram os Baudelaire em diversas
circunstâncias desagradáveis. Muito embora o fenômeno da acumulação, que
descreve o ajuntamento da água da chuva em um só lugar para que ela evapore e
recomece o tedioso processo, seja talvez o mais maçante do ciclo das águas,
seria muito melhor para você se levantar e ir direto à biblioteca mais próxima
passar vários dias maçantes lendo todos os fatos maçantes que encontrar sobre
acumulação, pois o fenômeno do que acontece com Sunny Baudelaire no decurso
destas páginas é o mais pavoroso que sou capaz de imaginar, e sou capaz de
imaginar uma enorme quantidade deles. O ciclo das águas pode ser uma série de
fenômenos maçantes, mas a história dos Baudelaire é totalmente diferente, e
esta é uma excelente oportunidade para você ler alguma coisa maçante em vez de
se inteirar do que aconteceu com os Baudelaire, quando as águas impetuosas do Arroio
Enamorado os arrastaram para longe das montanhas.
― O que será de nós? ―
perguntou Violet, erguendo a voz para se fazer ouvir por cima do estrondo das
águas. ― Eu não creio que possa inventar nada que detenha este tobogã.
― Eu creio que você não
deve nem tentar ― gritou Klaus em resposta à irmã. ― A chegada da Falsa
Primavera derreteu o gelo do arroio, mas a água ainda está muito fria. Se um de
nós cair, não sei quanto tempo poderemos sobreviver.
― Quigley ― choramingou
Sunny. A mais jovem dos Baudelaire muitas vezes falava de um jeito que podia
ser difícil de entender, mas ultimamente sua fala vinha se desenvolvendo quase
tão depressa quanto suas habilidades culinárias, e seus irmãos sabiam que ela
estava se referindo a Quigley Quagmire, de quem os Baudelaire tinham se tornado
amigos havia pouco tempo. Quigley ajudara Violet e Klaus a chegar ao alto do Cume
das Aflições a fim de encontrar a base de operações de C.S.C. e salvar Sunny
das garras do conde Olaf, mas um outro afluente do Arroio Enamorado o arrastara
na direção oposta, e o cartógrafo — uma palavra que aqui significa ‘’alguém
muito bom em mapas, e por quem Violet Baudelaire sentia um afeto especial’’ —
não tinha sequer um tobogã para mantê-lo fora da água gelada.
― Tenho certeza de que
Quigley conseguiu sair da água ― disse depressa Violet, muito embora,
naturalmente, não tivesse certeza de nada. ― Eu só queria que soubéssemos aonde
ele estava indo. Ele nos disse para encontrá-lo em algum lugar, mas o estrondo
da cachoeira o interrompeu.
O tobogã balançava na água enquanto Klaus enfiava a mão no bolso e
tirava de lá um caderno azul-escuro. O caderno tinha sido um presente de
Quigley, e Klaus o usava como livro de lugar-comum, um expressão que aqui
significa ‘’caderno no qual ele escrevia qualquer informação interessante ou
útil’’. ― Nós decodificamos aquela mensagem que nos informava sobre um importante
encontro de C.S.C. na quinta-feira ― disse ele, ― e graças a Sunny sabemos que
o encontro é no Hotel Desenlace. Talvez seja esse o lugar onde Quigley quer se encontrar
conosco ‘’o último santuário.
― Mas não sabemos onde fica
― observou Violet. ― Como podemos nos encontrar com alguém em um lugar
desconhecido?
Os três Baudelaire suspiraram e, por alguns momentos, os irmãos
ficaram sentados em silêncio no tobogã, ouvindo o gorgolejar da correnteza. Há
pessoas que gostam de observar uma correnteza por horas, olhando fixamente para
a água rebrilhante e pensando nos mistérios do mundo. Mas as águas do Arroio Enamorado
estavam sujas demais para rebrilhar, e cada mistério que as crianças tentavam
resolver parecia levar a mais mistérios, e até esses mistérios continham outros
mistérios; portanto, quando elas ponderavam aqueles mistérios, sentiam-se mais
arrasadas que pensativas. Sabiam que C.S.C. era uma organização secreta, porém,
ao que parecia, não conseguiam descobrir muita coisa sobre o que fazia a organização,
nem por que ela deveria interessar aos Baudelaire. Sabiam que o conde Olaf
estava ávido por colocar suas mãos imundas sobre certo açucareiro, porém não
faziam idéia de por que o açucareiro era tão importante, nem onde diabos ele
estava. Sabiam que havia pessoas no mundo que poderiam ajudá-las, porém muitas
dessas pessoas — tutores, amigos, banqueiros — já tinham provado não ser de
nenhuma ajuda, ou tinham desaparecido de suas vidas quando os Baudelaire mais
precisaram delas. E sabiam que havia pessoas no mundo que não iriam ajudá-las —
pessoas vilanescas, que pareciam se multiplicar na mesma medida que sua
perfídia e perversidade escorriam sobre a terra, como um aterrador ciclo das
águas do infortúnio e do desespero. Mas, no momento, o maior dos mistérios
parecia ser o que fazer em seguida e, amontoados em cima do tobogã flutuante,
os Baudelaire não conseguiam pensar em nada.
― Se ficarmos no tobogã ―
disse Violet por fim, ― para onde vocês acham que iremos?
― Montanha abaixo ― disse
Klaus. ― A água corre para baixo. O Arroio Enamorado deve desembocar fora das
Montanhas de Mão-Morta, no interior, e depois, por fim, em algum corpo d'água
maior — um lago ou um oceano. De lá, a água se evaporará formando nuvens, cairá
como chuva e neve, e assim por diante.
― Tédio ― disse Sunny.
― O ciclo das águas é mesmo
bem tedioso ― concordou Klaus, ―, mas pode ser o meio mais fácil de nos
afastarmos do conde Olaf.
― É verdade ― disse Violet.
― Olaf disse que estaria bem atrás de nós.
― Esmelita ― disse Sunny, o
que queria dizer alguma coisa como: ‘’Junto com Esmé Squalor e Carmelita Spats’’
e os Baudelaire franziram as sobrancelhas ao pensar na namorada de Olaf, que
participava dos esquemas do vilão porque acreditava que traição e fraude eram
coisas muito elegantes, ou in, e na ex-colega de classe dos Baudelaire que se
juntara recentemente a Olaf por suas próprias razões egoístas.
― Então vamos apenas ficar
sentados neste tobogã e ver aonde ele nos leva? ― perguntou Violet.
― Não é um grande plano ―
admitiu Klaus, ―, mas não consigo imaginar um melhor.
― Passivo ― disse Sunny, e
seus irmãos assentiram, taciturnos. ‘’Passivo’’ é uma palavra inusitada na boca
de um bebê e, na verdade, seria uma palavra inusitada na boca de um Baudelaire
ou de qualquer outra pessoa que leve uma vida interessante. Significa apenas ‘’aceitar
o que está acontecendo sem fazer nada a respeito’’ e certamente todo mundo tem
momentos passivos de vez em quando.
Talvez você já tenha vivenciado um momento passivo na loja de
calçados, enquanto o vendedor forçava seus pés para dentro de uma série de
sapatos feios e desconfortáveis, sendo que o tempo todo você queria um par
vermelho-vivo com fivelas esquisitas que ninguém no mundo compraria para você.
Os Baudelaire tinham vivenciado um momento passivo na Praia de Sal, quando receberam
a terrível notícia sobre seus pais e, entorpecidos, foram conduzidos pelo Sr.
Poe para suas novas vidas de desventuras. Recentemente eu mesmo vivenciei um
momento passivo, sentado em uma cadeira enquanto um vendedor forçava meus pés
para dentro de uma série de sapatos feios e desconfortáveis, sendo que o tempo
todo eu queria um par vermelho-vivo com fivelas esquisitas que ninguém no mundo
compraria para mim. Porém, um momento passivo no meio de uma correnteza
impetuosa, quando pessoas vilanescas estão na sua cola em furiosa perseguição,
é um momento difícil de aceitar, e foi por isso que os Baudelaire estremeceram
em cima do tobogã, enquanto o Arroio Enamorado os levava cada vez mais longe,
montanha abaixo, exatamente como eu estremeci quando tentava planejar minha
fuga daquela sinistra loja de calçados. Violet estremeceu e pensou em Quigley,
esperando que ele tivesse conseguido escapar da água fria e estivesse em
segurança. Klaus estremeceu e pensou em C.S.C. esperando ainda poder aprender
sobre a organização, apesar de sua base de operações ter sido destruída. E
Sunny estremeceu e pensou nos peixes do Arroio Enamorado, que ocasionalmente
punham a cabeça para fora da água cinzenta e tossiam. Ela se perguntava se as
cinzas, que foram deixadas na água por um incêndio recente nas montanhas e
tornavam difícil a respiração dos peixes, também estragariam o sabor deles,
mesmo se fosse usada uma receita com bastante manteiga e limão.
Os Baudelaire estavam tão concentrados em pensar e estremecer que,
quando o tobogã contornou uma das estranhas vertentes quadradas dos picos das
montanhas, passou-se um instante antes que eles notassem o panorama que se
descortinava abaixo deles. Foi só depois de alguns fragmentos de jornal
passarem voando diante de seus rostos que os Baudelaire olharam para baixo, e o
que viram quase os deixou sem fôlego.
― O que é isso? ― disse
Violet.
― Não sei ― disse Klaus. ― Dessa
altura é difícil dizer.
― Subjavik ― disse Sunny, e
era verdade. Daquele lado das Montanhas de Mão- Morta, os Baudelaire esperavam
ver uma região silvestre, a vasta extensão de paisagem plana onde tinham
passado um bom tempo. Em vez disso, parecia que o mundo se transformara em um
mar muito, muito escuro. Até onde a vista podia alcançar, havia redemoinhos
cinzentos e pretos movendo-se como estranhas enguias na água sombria. De quando
em quando, um dos redemoinhos liberava um pequeno e frágil objeto que flutuava
qual pluma na direção dos Baudelaire. Alguns desses objetos eram fragmentos de
jornal. Outros pareciam pedacinhos de pano. E alguns, de tão escuros, eram
absolutamente irreconhecíveis, uma expressão que Sunny preferia enunciar como
‘’subjavik’’.
Klaus apertou os olhos para baixo por trás dos óculos e depois
voltou-se para as irmãs com uma expressão de desespero.
― Eu sei o que é isso ―
disse mansamente. ― São as ruínas de um incêndio.
Os Baudelaire olharam novamente para baixo e viram que Klaus tinha
razão. Daquela altura, as crianças levaram um momento para se dar conta de que
um enorme incêndio devastara toda a região, deixando para trás somente restos cinzentos.
― É claro ― disse Violet. ―
É estranho não termos reconhecido antes. Mas quem atearia fogo no mato?
― Nós ― disse Klaus.
― Caligari ― disse Sunny ,
lembrando Violet de um horrível parque de diversões onde os Baudelaire tinham
passado algum tempo disfarçados. Infelizmente, como parte do disfarce, fora
necessário ajudar o conde Olaf a tocar fogo no parque de diversões, e agora
eles podiam ver os frutos de seus esforços, uma expressão que aqui significa ‘’os
resultados da coisa horrível que fizeram, muito embora não tivessem a menor
intenção’’.
― O incêndio não é culpa
nossa ― disse Violet.
― Não inteiramente. Nós
tínhamos de ajudar Olaf, pois de outra forma ele teria descoberto nossos
disfarces.
― Ele descobriu nossos
disfarces mesmo assim ― observou Klaus.
― Neresculpa ― disse Sunny,
o que queria dizer alguma coisa como: ‘’Mas mesmo assim a culpa não é nossa’’.
― Sunny está certa ― disse
Violet. ― Nós não inventamos o plano. Olaf inventou.
― Mas também não o
impedimos ― observou Klaus. ― E uma porção de gente acha que somos totalmente
responsáveis. Aqueles pedaços de jornal são provavelmente d'O Pundonor Diário,
que já nos culpou por toda sorte de crimes terríveis.
― Você está certo ― disse
Violet com um suspiro, muito embora eu tenha descoberto que Klaus estava errado
e que os fragmentos de jornal que passavam voando pelos Baudelaire eram de uma
outra publicação, que teria sido de enorme ajuda caso eles tivessem juntado os
pedaços.
― Talvez devamos ser
passivos por algum tempo. Ser ativos não nos ajudou muito.
― Qualquer que seja o caso
― disse Klaus, ― devemos continuar no tobogã. O fogo não pode nos fazer mal se
estivermos flutuando em um arroio.
― Parece que não temos
escolha ― disse Violet. ― Olhem. ― Os Baudelaire olharam, e viram que o tobogã
se aproximava de uma espécie de convergência, onde outro afluente do Arroio
Enamorado se encontrava com o deles. O arroio estava agora muito mais largo, e
a água ainda mais turbulenta, de modo que os Baudelaire tinham de se agarrar
firme no tobogã para não ser atirados às águas cada vez mais fundas.
― Devemos estar nos
aproximando de um corpo d'água maior ― disse Klaus. ― Avançamos mais no ciclo
das águas do que eu imaginava.
― Você acha que é o mesmo
afluente que arrastou Quigley para longe? ― disse Violet, esticando o pescoço
para procurar o amigo desaparecido.
― Egosolo! ― exclamou Sunny,
o que queria dizer: ‘’Não podemos pensar em Quigley agora, temos de pensar em
nós mesmos’’ e a mais jovem dos Baudelaire tinha razão. Com um sonoro vupt! o
arroio contornou mais uma vertente quadrada, e momentos depois suas águas
ficaram tão violentamente agitadas que os Baudelaire tiveram a sensação de
estar não sobre um tobogã quebrado, mas cavalgando um potro selvagem.
― Você consegue conduzir o
tobogã na direção da margem? ― gritou Klaus por cima do barulho da correnteza.
― Não! ― gritou Violet. ― O
mecanismo de direção quebrou quando descemos a cachoeira, e o arroio é largo
demais para remarmos até lá! ― Violet encontrou uma fita no bolso e parou um
instante para prender os cabelos com ela, o que a fazia pensar melhor. Ela
baixou os olhos para o tobogã e tentou lembrar dos diversos projetos mecânicos
que examinara na infância, quando seus pais estavam vivos e incentivavam seu
interesse por engenharia mecânica. ― Os patins do tobogã ― disse ela, e depois
repetiu num brado para ser ouvida por cima do barulho da água. ― Os patins! Eles
ajudam o tobogã a manobrar na neve, e talvez possam nos ajudar a manobrá-lo na
água!
― Onde estão os patins? ―
perguntou Klaus, olhando em volta.
― No fundo do tobogã! ―
gritou Violet.
― Impossiakto? ― perguntou
Sunny, o que significava alguma coisa do tipo: ‘’Como vamos alcançar o fundo do
tobogã?’’.
― Não sei ― disse Violet, e
começou a procurar freneticamente nos bolsos algum material para invenções.
Trouxera consigo uma comprida faca de pão, mas ela se fora desde que a usara
pela última vez — provavelmente arrastada pela correnteza, junto com Quigley .
Ela olhou para a frente, para a torrente de água espumante que ameaçava
engolfá-los. Violet contemplou as margens distantes do arroio, que ficavam cada
vez mais distantes à medida que ele continuava a se alargar. E olhou para os
irmãos, que aguardavam para ser salvos por suas habilidades inventivas. Seus
irmãos olharam de volta, e os três Baudelaire se entreolharam por um momento,
piscando para expulsar a água escura dos olhos enquanto pensavam em alguma
coisa para fazer. Justo naquele momento, contudo, mais um olho chegou, também
piscando para expulsar a água escura enquanto se erguia para fora da
correnteza, bem na frente dos Baudelaire. De início parecia o olho de alguma
terrível criatura marinha, encontrável somente em livros de mitologia e nas
piscinas de certos balneários. Mas quando o tobogã
chegou mais perto, as crianças puderam ver que
o olho era feito de metal, empoleirado no topo de um comprido mastro metálico
que se curvava na ponta para proporcionar um ângulo melhor de visão. É muito
inusitado ver um olho de metal se erguendo do meio das águas turbulentas de um
arroio, e no entanto aquele olho era algo que os Baudelaire já tinham visto
muitas vezes, desde o seu primeiro encontro com um olho tatuado no tornozelo
esquerdo do conde Olaf. O olho era uma insígnia e, se você olhasse para ele de
um determinado modo, também se parecia com três letras misteriosas.
― C.S.C.! ― gritou Sunny ,
quando o tobogã se aproximou ainda mais.
― O que é isso? ― perguntou
Klaus.
― É um periscópio! ― disse
Violet. ― São usados por submarinos, para olhar as coisas que estão na
superfície da água!
― Isso quer dizer ― gritou
Klaus, ― que há um submarino abaixo de nós? ― Violet não precisou responder,
pois o olho se ergueu mais acima da água e os órfãos puderam ver que o mastro
estava preso a uma grande peça chata de metal, a maior parte da qual estava
submersa. O tobogã chegou mais perto, até o periscópio ficar ao alcance da mão,
e então parou, como uma jangada pararia ao atingir uma grande pedra.
― Olhem! ― gritou Violet
enquanto as águas precipitavam-se à volta deles. Ela apontou para uma escotilha
bem na base do periscópio. ― Vamos bater, talvez possam nos ouvir!
― Mas não temos idéia de
quem está lá dentro ― disse Klaus.
― Vamagir! ― guinchou Sunny,
o que queria dizer: ‘’É nossa única possibilidade de viajar por essas águas em
segurança’’, então se inclinou para a escotilha e começou a raspá-la com os
dentes. Seus irmãos juntaram-se a ela, preferindo usar os punhos para esmurrar
a escotilha de metal.
― Olá! ― gritou Violet.
― Olá! ― berrou Klaus.
― Shalom! ― guinchou Sunny.
Por cima do barulho da torrente impetuosa, os Baudelaire ouviram
um som muito abafado vindo de trás da escotilha. O som era uma voz humana, que ressoava
e fazia eco, como se viesse do fundo de um poço.
― Amigo ou inimigo? ― disse
a voz.
Os Baudelaire se entreolharam. Eles sabiam, assim como estou certo
de que você sabe, que ‘’amigo ou inimigo?’’ é uma saudação tradicional,
dirigida a visitantes que se aproximam de um lugar importante, como um palácio
real ou uma loja de calçados fortemente guardada, e precisam se identificar
como amigos ou inimigos das pessoas que estão dentro. Mas os irmãos não sabiam
se eram amigos ou inimigos pela simples razão de que não tinham a menor idéia
de quem estava perguntando.
― O que vamos dizer? ―
perguntou Violet, baixando o tom de voz. ― O olho pode querer dizer que o
submarino é do conde Olaf, e nesse caso somos inimigos.
― O olho pode significar
que o submarino é C.S.C. ― disse Klaus, ― e nesse caso somos amigos.
― Óbvio! ― disse Sunny, o
que queria dizer: ‘’Só existe uma resposta que nos faça entrar no submarino’’, e
gritou para a escotilha: ‘’Amigo!’’.
Houve uma pausa, e então a voz ecoante falou de novo:
― Senha, por favor.
Os Baudelaire se entreolharam mais uma vez. Uma senha, como se
sabe, é uma certa palavra ou frase que alguém pronuncia a fim de receber
informações ou adentrar um lugar secreto, e os irmãos, é claro, não faziam
idéia do que dizer para adentrar um submarino. Por um momento, eles não
disseram nada, apenas tentaram pensar, muito embora desejassem estar em um
lugar mais tranqüilo, para poder pensar sem os ruídos das águas revoltas a
correr e dos peixes a tossir.
Desejavam que, em vez de estar abandonados à própria sorte em um
tobogã no meio do Arroio Enamorado, estivessem em alguma sala silenciosa, como
a biblioteca dos Baudelaire, onde pudessem ficar sentados em silêncio, lendo
tudo a respeito de qual poderia ser a senha. Mas enquanto os três irmãos
pensavam em uma biblioteca, uma das irmãs lembrou-se de outra: a biblioteca
destruída de C.S.C. lá em cima, no Vale das Correntezas que Sopram Constantes,
onde antes se erguia a base de operações. Violet pensou em uma arcada de ferro,
um dos poucos remanescentes da biblioteca, e no lema ali gravado. A mais velha
dos Baudelaire olhou para seus irmãos, inclinou-se para a escotilha e repetiu
as palavras misteriosas que tinha visto e que, assim esperava, a levariam,
junto com os irmãos, à segurança.
― O mundo aqui silencia ―
disse ela.
Houve uma pausa e, com um estridente créc! metálico, a escotilha
se abriu, e os irmãos olharam para dentro de um buraco escuro onde uma escada
presa à parede lhes permitiria descer. Eles estremeceram, e não apenas por
causa da friagem que vinha dos ventos gélidos da montanha e das águas escuras e
apressadas do Arroio Enamorado. Eles estremeceram porque não sabiam para onde
estavam indo, nem quem iriam encontrar se descessem a escada para dentro do
buraco. Em vez de entrar, os Baudelaire queriam gritar uma coisa para baixo
através da escotilha — as mesmas palavras que alguém lhes gritara para cima.
‘’Amigo ou inimigo?’’ é o
que queriam perguntar. ‘’Amigo ou inimigo?’’ Seria mais seguro entrar no submarino ou
arriscar a vida do lado de fora, nas águas impetuosas do Arroio Enamorado?
― Entrem, jovens Baudelaire
― disse a voz, e, pertencesse ela a amigo ou inimigo, os Baudelaire decidiram
entrar.
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