Capítulo 10
― Esse
é o calabouço! ― exclamou o conde Olaf. ― Ha ha ha harpias harpejantes!
Sunny tossiu mais
uma vez de dentro do capacete — uma tosse áspera e forte que soava pior que a
anterior. Claramente, o My celium Medusóide continuava com seu horripilante
crescimento, e Violet tentou mais uma vez convencer o vilão a deixar que a
ajudassem.
― Por
favor, deixe-nos voltar ao Queequeg', disse ela. ― Você não está ouvindo a
tosse?
― Sim
― disse o conde Olaf, ― mas eu nem ligo.
― Por favor! ― exclamou Klaus. ― Essa é uma
questão de vida ou morte!
― Com certeza é ― escarneceu Olaf, girando a
maçaneta. ― Meu capanga fará vocês revelarem o local onde está o açucareiro,
nem que para isso ele tenha de rasgá-los em pedaços!
― Ouça
os meus amigos! ― disse Fiona. ― Positivo! Estamos em uma situação terrível!
― Oh,
eu não diria isso ― disse o conde Olaf com um sorriso malévolo, enquanto a porta
se abria com um rangido para revelar uma sala pequena e vazia. Não havia nada
lá, a não ser uma banqueta na qual estava sentado um homem que tentava com dificuldade
embaralhar um maço de cartas. ― Como uma reunião de família pode ser uma
situação terrível? ― disse Olaf, e empurrou as crianças para dentro, batendo a
porta em seguida.
Violet e Klaus encararam o capanga de Olaf
e viraram na mesma direção o capacete de mergulho de Sunny , para que ela
também pudesse vê-lo. Os irmãos não se surpreenderam, é claro, com o fato de
que a pessoa que embaralhava cartas era o homem de mãos de gancho, tampouco se
alegraram ao vê-lo, só ficaram muito apavorados com o fato de que o tempo que
passariam naquele calabouço tornaria impossível salvar Sunny dos cogumelos que
cresciam em seu capacete. No entanto, quando olharam para Fiona, viram que a
micetologista estava muito surpresa com o que via e muito contente ao encontrar
o homem que se levantou da banqueta e acenou seus ganchos, também surpreso.
― Fiona!
― exclamou o homem de mãos de gancho.
― Fernald! ― disse Fiona, e de repente os
Baudelaire acharam que seria possível salvar Sunny.
Um dos maiores enigmas do mundo é a maneira
como funciona a tristeza. Ficar muito triste pode ser parecido com ser
queimado, não só por causa da dor descomunal, mas também porque a tristeza pode
se espalhar por sua vida como a fumaça de um enorme incêndio. Você pode achar
difícil enxergar alguma coisa além de sua própria tristeza, assim como a fumaça
pode encobrir uma paisagem a tal ponto que tudo o que você pode enxergar é a
escuridão. Você pode descobrir que as coisas felizes são maculadas pela
tristeza, do mesmo modo que a fumaça de um incêndio deixa tudo com cor de
carvão e cheiro de queimado. E pode descobrir também que, se alguém despeja
água em cima de você, você fica molhado e perturbado, porém não curado da
tristeza, assim como um corpo de bombeiros pode abafar o fogo, mas não recuperar
o que foi destruído. Os órfãos Baudelaire, naturalmente, tinham sofrido grandes
tristezas na vida desde que ouviram falar pela primeira vez da morte de seus
pais, e às vezes sentiam-se como se mesmo para ver algo que os deixaria muito
felizes tivessem de espantar a fumaça dos olhos. Quando Violet e Klaus viram
Fiona e o homem de mãos de gancho se abraçarem, sentiram-se como se a fumaça de
sua própria infelicidade tivesse preenchido o calabouço. Eles não podiam
suportar a ideia de que Fiona tinha encontrado seu irmão perdido havia muito
tempo, enquanto eles, com toda a probabilidade, jamais veriam seus pais de
novo, e poderiam até perder sua irmã menor à medida que os esporos venenosos do
My celium Medusóide tornavam o som de sua tosse cada vez pior dentro do
capacete.
― Fiona!
― exclamou o homem de mãos de gancho. ― É mesmo você?
― Positivo ― disse a micetologista, tirando os
óculos triangulares para enxugar as lágrimas. ― Pensei que nunca iria vê-lo,
Fernald. O que aconteceu com suas mãos?
― Não
ligue para isso ― disse depressa o homem de mãos de gancho. ― Por que você está
aqui? Também se juntou ao conde Olaf?
― É
óbvio que não ― disse Fiona com firmeza. ― Ele capturou o Queequeg e. nos pôs a
ferros.
― Então
você se juntou aos pirralhos Baudelaire ― disse o homem de mãos de gancho. ― Eu
devia desconfiar que você era boazinha!
― Eu
não me juntei aos Baudelaire ― disse Fiona com a mesma firmeza. ― Eles se juntaram
a mim. Positivo! Agora sou o capitão do Queequeg.
― Você?
― disse o comparsa de Olaf. ― O que aconteceu com Andarré?
― Ele desapareceu do submarino ― respondeu
Fiona. ― Não sabemos onde está.
― Não me importa onde ele está ― disse com
desprezo o homem de mãos de gancho.
― Tanto
faz onde está aquele idiota bigodudo! Ele é a razão por que me juntei ao conde
Olaf, para começar! O capitão estava sempre gritando 'Positivo! Positivo! Positivo!
' e me fazendo correr de um lado para o outro! Portanto eu fugi e me juntei à
trupe de atores de Olaf!
― Mas
o conde Olaf é um vilão horrível! ― exclamou Fiona. ― Ele não tem respeito pelos
outros. Ele só sabe armar planos pérfidos e aliciar outras pessoas para sua trupe!
― Esses
são apenas os piores aspectos dele ― disse o homem de mãos de gancho.
― Também existem muitas partes boas. Por
exemplo, ele tem uma risada maravilhosa.
― Uma
risada maravilhosa não é desculpa para um comportamento vilanesco! ― disse
Fiona.
― Vamos
concordar em discordar ― retrucou o homem de mãos de gancho, usando uma
expressão cansativa que aqui quer dizer ‘’você deve estar com a razão, mas
estou envergonhado demais para admitir isso’’. Ele acenou um gancho displicentemente
para sua irmã. ― Saia de fininho, Fiona. Já é hora de os órfãos me dizerem onde
está o açucareiro. ― O comparsa de Olaf raspou os ganchos um no outro para dar
uma afiada rápida e deu um passo ameaçador na direção dos Baudelaire. Violet e
Klaus se entreolharam atemorizados, depois olharam para o capacete de mergulho,
onde ouviram sua irmã dar outra tossida arrepiante, e perceberam que já era
hora de pôr as cartas na mesa, uma expressão que aqui significa ‘’revelar a
verdade ao perverso comparsa de Olaf’’.
― Não
sabemos onde está o açucareiro ― disse Violet.
― Minha irmã está dizendo a verdade ― disse
Klaus. ― Faça o que quiser conosco, mas não vamos poder contar nada.
O homem de mãos de gancho fulminou-os com
o olhar e raspou um gancho no outro mais uma vez.
― Vocês
são mentirosos ― disse ele. ― Vocês não passam de dois órfãos mentirosos.
― É
verdade, Fernald ― disse Fiona. ― Positivo! A missão do Queequeg era. encontrar
o açucareiro, mas até agora só demos com os burros n’água.
― Se
vocês não sabem onde está o açucareiro ― disse zangado o homem de mãos de
gancho, ― então pôr vocês a ferros não tem o menor sentido! ― Ele se voltou e chutou
a banqueta, derrubando-a, para depois chutar a parede do calabouço. ― O que
esperam que eu faça agora? ― lamentou-se ele.
Fiona pousou a mão no gancho do irmão.
― Leve-nos
de volta ao Queequeg ― disse ela.
― Sunny
está dentro daquele capacete, junto com uma infestação de My celium Medusóide.
― My
celium Medusóide? ― repetiu o comparsa de Olaf, horrorizado. ― É um fungo muito
perigoso!
― Ela
está correndo grande perigo ― disse Violet. ― Se não acharmos uma cura muito,
muito depressa, ela vai morrer.
O homem de mãos de gancho fechou a cara,
mas então olhou para o capacete e deu de ombros para as crianças.
― Por
que eu haveria de me preocupar com a morte dela? ― perguntou.
― Essa
menina tornou minha vida miserável desde que a conheci. Cada vez que nossos
planos de roubar a fortuna Baudelaire fracassam, o conde Olaf grita com todo
mundo!
― Foi
você que tornou miserável a vida dos Baudelaire ― disse Fiona. ― O conde Olaf
já pôs em prática incontáveis planos traiçoeiros, e você o ajudou várias vezes
seguidas. Positivo! Você devia se envergonhar!
O homem de mãos de gancho suspirou e
baixou os olhos para o chão do calabouço.
― Às
vezes eu me envergonho ― admitiu ele. ― Parecia que a vida na trupe de Olaf
seria glamurosa e divertida, mas nós acabamos cometendo mais assassinatos,
incêndios criminosos, chantagens e violências diversas do que eu gostaria.
― Essa
é sua oportunidade de fazer algo nobre ― disse Fiona. ― Você não precisa ficar
do lado errado da cisão.
― Oh,
Fiona ― disse o homem de mãos de gancho, pousando desajeitado um gancho no
ombro dela. ― Você não está entendendo. Não existe um lado errado na cisão.
― É
claro que existe ― disse Klaus. ― C.S.C, é uma organização nobre, e o conde Olaf
não passa de um vilão terrível.
― Uma
organização nobre? ― disse o homem de mãos de gancho. ― É isso? Diga isso à sua
irmã-bebê, seu bobão quatro-olhos! Se não fosse pela Carreação de Supervoláteis
Cogumelos, aqueles cogumelos letais nunca teriam cruzado seu caminho!
As crianças se entreolharam, lembrando-se
do que tinham lido na Gruta Gorgônea. Elas tiveram de admitir que o comparsa de
Olaf estava certo. Mas Violet enfiou a mão no bolso e extraiu de lá o recorte
de jornal que Sunny encontrara na caverna. Ela ergueu-o para que todos pudessem
ver a matéria d'O Pundonor Diário que a mais velha dos Baudelaire mantivera
escondida por tanto tempo.
― 'A
DESERÇÃO DE FERNALD' ― disse ela, lendo a manchete em voz alta, e depois leu a
assinatura, uma palavra que aqui significa ‘’o nome da pessoa que escreveu a
matéria’’. ― 'Por Jacques Snicket. Já foi confirmado que o incêndio que destruiu
a Aquáticos Anwhistle e tirou a vida do famoso icnólogo Gregor Anwhistle foi
ateado por Fernald Andarré, filho do capitão do submarino Queequeg. A
participação da família Andarré em uma recente cisão levantou diversas questões
com respeito...' ― Violet ergueu os olhos e encontrou o olhar fulminante do
comparsa de Olaf. ― O resto da matéria está borrado ― disse ela, ― mas a
verdade está clara. Você cometeu uma traição. Você abandonou C.S.C, e aliou-se
a Olaf!
― A
diferença entre os dois lados da cisão ― disse Klaus, ― é que um lado apaga os incêndios
que o outro lado ateia.
O homem de mãos de gancho estendeu o braço
para a frente e espetou a matéria com um de seus ganchos, e depois virou o
recorte ao contrário para poder lê-lo de novo.
― Você
devia ter visto o fogo ― disse ele em voz baixa. ― À distância, parecia uma
enorme coluna de fumaça negra erguendo-se diretamente da água. Era como se o
mar inteiro estivesse em chamas.
― Você
deve ter sentido orgulho de sua obra ― disse Fiona com tom amargo.
― Orgulho? ― disse o homem de mãos de gancho. ―
Foi o pior dia da minha vida. Aquela coluna de fumaça foi a coisa mais triste
que já vi. ― Ele espetou o jornal com o outro gancho e rasgou a matéria em
pedacinhos. ― O Pundonor entendeu tudo errado ― disse ele. ― O capitão Andarré
não é meu pai. Andarré não é o meu sobrenome. E há muito mais coisa envolvida
naquele incêndio. Vocês Baudelaire precisam saber que O Pundonor Diário não
contou a história inteira. Assim como o veneno de um fungo letal pode ser a
fonte de alguns remédios maravilhosos, alguém como Jacques Snicket pode fazer
algo vilanesco, e alguém como o conde Olaf pode fazer algo nobre. Mesmo seus
pais...
― Nosso
padrasto conhecia Jacques Snicket ― disse Fiona. ― Ele era um bom homem, mas o
conde Olaf o assassinou. Você também é um assassino? Você matou Gregor
Anwhistle? ― Em soturno silêncio, o homem ergueu os ganchos diante das
crianças. ― Na última vez que você me viu ― disse ele a Fiona, ― eu tinha duas
mãos, e não ganchos. Nosso padrasto provavelmente não contou a você o que me
aconteceu — ele sempre disse que havia segredos neste mundo que eram terríveis
demais para que gente jovem os conhecesse. Que trouxa!
― Nosso
padrasto não é um trouxa ― disse Fiona. ― Ele é um homem nobre. Positivo!
― As
pessoas não são vis nem nobres ― disse o homem de mãos de gancho. ― Elas são
como as saladas do chefe, com coisas boas e ruins misturadas num molho vinagrete
de confusão e conflito. ― Ele voltou-se para os dois Baudelaire mais velhos e
apontou para eles com seus ganchos. ― Vocês mesmos, Baudelaire. Vocês realmente
acham que somos assim tão diferentes? Quando aquelas águias me carregaram para
longe das montanhas numa rede, vi as ruínas do incêndio no sertão — um incêndio
que ateamos juntos. Vocês tocaram fogo nas coisas, e eu também. Vocês se
juntaram à tripulação do Queequeg, e eu me juntei à tripulação do Carmelita.
Ambos os nossos capitães são pessoas voláteis, e estamos ambos tentando chegar
ao Hotel Desenlace antes de quinta-feira. A única diferença entre nós são os
retratos em nossos uniformes.
― Estamos
usando Herman Melville ― disse Klaus. ― Ele foi um escritor de enorme talento,
que dramatizou com sua prosa filosófica insólita, por vezes experimental, a
dura condição das pessoas negligenciadas, tais como os marinheiros pobres ou os
jovens explorados. Fico orgulhoso de expor seu retrato. Mas você está usando Edgar
Guest. Ele era um escritor de talento limitado, que escreveu uma poesia canhestra
e tediosa sobre assuntos irremediavelmente sentimentais. Você devia ter
vergonha.
― Edgar
Guest não é meu poeta favorito ― admitiu o homem de mãos de gancho.
― Antes de me juntar ao conde Olaf, eu estudava
poesia com meu padrasto. Costumávamos ler um para o outro no salão principal do
Queequeg. Mas agora é tarde demais. Não posso voltar à minha vida anterior.
― Talvez
não ― disse Klaus. ― Mas pode nos mandar de volta ao Queequeg, para que possamos
salvar Sunny.
― Por
favor ― as crianças ouviram Sunny dizer de dentro do capacete, muito embora sua
voz estivesse um tanto rouca, como se ela não fosse mais conseguir falar, e por
um momento, enquanto os minutos cruciais se esgotavam, os únicos sons no calabouço
eram a desesperada tosse de Sunny e os resmungos do homem de mãos de gancho
andando de um lado para outro, enquanto girava os ganchos e meditava. Violet e
Klaus olhavam para os ganchos e pensavam em todas as vezes em que ele os usara
para ameaçar os irmãos. Uma coisa é acreditar que as pessoas têm tanto o mal
quanto o bem dentro de si, misturados como os ingredientes de uma salada. Mas
outra muito diferente é olhar para o parceiro de um vilão desprezível, que
buscou seguidamente causar o mal, e tentar ver onde estão enterradas suas
partes boas, quando tudo o que lhe vem à lembrança são a dor e o sofrimento que
ele causou. Enquanto o homem de mãos de gancho andava em círculos pelo
calabouço, era como se os Baudelaire estivessem revirando uma salada do chefe
feita principalmente de apavorantes — e talvez até venenosos — ingredientes,
para tentar achar a única torradinha nobre que poderia salvar sua irmã, assim
como eu, no tempo entre um e outro parágrafo, reviro essa salada que está na
minha frente, na esperança de que o meu garçom seja mais nobre do que perverso
e que minha irmã, Kit, possa ser salva pelo pequeno e condimentado pedaço de
torrada que espero resgatar dessa gamela. Entretanto, depois de muito andar à
roda e tergiversar — uma expressão que aqui significa ‘’resmungos e pigarreios
usados para fugir de uma decisão rápida’’ —, o capanga do conde Olaf parou na
frente das crianças, pôs os ganchos na cintura e ofereceu a elas uma escolha de
Hobson.
― Vou
mandar vocês de volta ao Queequeg ― disse ele, ― se vocês me levarem junto.
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