Capítulo 11

Uma antiga expressão, usada ainda antes da cisão, diz que as pessoas não
deveriam ver a criação das leis e das salsichas. Isso faz sentido, pois a criação de
salsichas envolve misturar diferentes partes de diferentes animais e moldá-las até que
fiquem apresentáveis para o café-da-manhã, e a criação de leis envolve misturar
diferentes partes de diferentes idéias e moldá-las até que fiquem apresentáveis para o
café-da-manhã, e a maioria das pessoas prefere passar o café-da-manhã comendo
comida e lendo o jornal sem ter de se expor a criações de absolutamente nenhum tipo.
A Corte Suprema, como a maioria das cortes, não estava envolvida na criação de
leis, e sim na interpretação de leis, o que é tão desconcertante e insondável quanto a sua
criação e, como a interpretação de salsichas, é algo que também não deve ser visto. Se
você pusesse este livro de lado e viajasse até a lagoa que agora nada reflete a não ser
alguns pedaços de madeira queimada e o céu vazio, e se você encontrasse a passagem
secreta que leva ao catálogo subaquático que permaneceu secreto e seguro durante
todos esses anos, poderia ler o relato de uma interpretação de salsichas que deu
horrivelmente errado e levou à destruição de um batiscafo muito importante, tudo porque
eu, equivocadamente, achei que as salsichas estavam arrumadas de modo a formar um K,
quando na realidade o garçom tinha tentado formar um R. E poderia ler também o relato
de uma interpretação da lei que deu horrivelmente errado, porém acho difícil a viagem
valer a pena por causa dele, já que esse relato está contido nos capítulos remanescentes
deste livro. Mas, se você for uma pessoa sensata, deve proteger os olhos de tais
interpretações, pois são assustadoras demais para se ler. Enquanto Violet, Klaus e Sunny
tentavam pregar os olhos — uma expressão que aqui significa "dormiam um sono agitado
dentro do armário que era o quarto 121" —, arranjos eram feitos para o julgamento,
durante o qual os três juizes da Corte Suprema iriam interpretar as leis e decidir sobre a
nobreza ou a perfídia do conde Olaf e dos Baudelaire. No entanto, as crianças ficaram
surpresas quando souberam, assim que uma forte batida na porta as despertou, que não
iriam ver essa interpretação elas mesmas.
"Aqui estão suas vendas", disse um dos gerentes, abrindo a porta e entregando
às crianças três pedaços de pano preto. Os Baudelaire suspeitaram que fosse Ernest,
pois não tinha se dado ao trabalho de dizer "Olá".
"Vendas?", perguntou Violet.
"Todo mundo usa vendas em um julgamento da Corte Suprema", respondeu o
gerente, "exceto os juizes, é claro. Vocês nunca ouviram a expressão 'justiça cega'?"
"Sim", disse Klaus, "mas eu sempre achei que o significado disso é que a justiça
deve ser imparcial e livre de preconceitos."
"O veredicto da Corte Suprema foi tomar a expressão ao pé da letra", disse o
gerente, "portanto todos, exceto os juizes, devem cobrir os olhos antes de o julgamento
começar."
"Scalia", disse Sunny. Ela queria dizer alguma coisa como "Não me parece que a
interpretação literal faça algum sentido", mas seus irmãos não acharam prudente traduzir
aquilo.
"Eu também trouxe um pouco de chá para vocês", disse ele, revelando uma
bandeja que continha uma chaleira e três xícaras. "Achei que poderia fortificá-los para o
julgamento."
Com "fortificá-los" o gerente queria dizer que alguns goles de chá poderiam dar às
crianças um pouco da força tão necessária para enfrentar a sua provação, e os irmãos
acharam que devia ser Frank quem estava lhes fazendo tal favor.
"Você é muito gentil", disse Violet.
"Sinto muito, mas não temos açúcar", disse ele.
"Tudo bem", disse Klaus, e então folheou apressadamente o seu livro de
lugar-comum até encontrar suas anotações sobre a conversa das crianças com Kit
Snicket. "'O chá deve ser amargo como absinto'", ele leu, "'e pungente como uma espada
de dois gumes.'"
O gerente lançou a Klaus um sorrisinho insondável.
"Bebam o seu chá", disse ele. "Daqui a alguns minutos vou voltar para
acompanhá-los ao julgamento."
Frank, a não ser que fosse Ernest, fechou a porta e deixou os Baudelaire
sozinhos.
"Por que você disse aquilo sobre o chá?", perguntou Violet.
"Achei que ele poderia estar falando em código conosco", disse Klaus. "Achei que,
se déssemos a resposta certa, alguma coisa poderia acontecer."
"Insondável", disse Sunny.
"Tudo parece ser insondável", disse Violet com um suspiro, servindo chá para os
irmãos. "Está ficando de um jeito tal que não posso mais distinguir uma pessoa nobre de
uma pessoa maligna."
"Kit disse que o único modo de diferenciar um vilão de um voluntário é observar
todo mundo, e julgarmos nós mesmos", disse Klaus, "mas isso não nos ajudou em nada."
"Hoje a Corte Suprema vai julgar por nós", disse Violet. "Talvez eles provem ser
favoráveis a nós."
"Ou nos desapontem", disse Sunny.
A mais velha dos Baudelaire sorriu e ajudou a irmã a calçar os sapatos.
"Gostaria que os nossos pais pudessem ver como você cresceu", disse ela.
"Mamãe sempre disse que assim que você aprendesse a andar, Sunny, iria longe."
"Duvido que um armário no Hotel Desenlace era o que ela tinha em mente", disse
Klaus, soprando o chá para esfriá-lo.
"Quem sabe o que é que eles tinham em mente?", perguntou Violet. "Este é mais
um mistério que provavelmente nunca resolveremos."
Sunny tomou um gole de chá, que de fato estava amargo como absinto e
pungente como uma espada de dois gumes, muito embora a mais jovem dos Baudelaire
tivesse pouca experiência com armas brancas ou antigas plantas aromáticas da família
das compostas, usadas em certos tônicos prazerosos.
"Mama e papá", ela disse hesitante, "e dardos envenenados?"
Seus irmãos não tiveram tempo de responder, pois ouviram outra batida na porta.
"Acabem seu chá", gritou Frank ou Ernest, "e ponham suas vendas. O julgamento
já vai começar."
Os Baudelaire se apressaram a seguir as instruções, fossem elas do voluntário ou
do vilão; tomaram alguns goles apressados de chá, amarraram os sapatos e enrolaram o
pano preto em volta da cabeça para cobrir os olhos. Um momento depois ouviram a porta
do quarto 121 se abrir e perceberam Frank ou Ernest se aproximando deles.
"Onde estão vocês?", ele perguntou.
"Estamos bem aqui", disse Violet. "Não está nos vendo?"
"É claro que não", respondeu o gerente. "Também estou usando uma venda.
Estendam a mão para mim, e os levarei ao julgamento."
A mais velha dos Baudelaire estendeu o braço para a frente e encontrou uma
grande mão áspera aguardando pela sua. Klaus segurou a outra mão de Violet, e Sunny
segurou a de Klaus, e assim as crianças foram levadas para fora do quarto 121. A
expressão "um cego liderando outro cego", como a expressão "justiça cega",
normalmente não é levada ao pé da letra, pois se refere apenas a uma situação confusa
em que as pessoas na liderança não sabem de nada além do que sabem as pessoas que
as seguem. Mas, como os Baudelaire aprenderam enquanto eram levados através do hall,
um vendado conduzindo outro vendado resulta no mesmo tipo de confusão. As crianças
não podiam ver nada através das suas vendas, porém o salão estava tomado pelos sons
de pessoas à procura de seus acompanhantes, colidindo umas com as outras e indo de
encontro a paredes e móveis. Violet foi cutucada no olho pelo dedo rechonchudo de
alguém. Klaus foi confundido com alguém chamado Jerry por um homem que lhe deu um
enorme abraço antes de perceber o engano. E alguém tropeçou na cabeça de Sunny,
presumiu que ela era um vaso ornamental e tentou enfiar um guarda-chuva na sua boca.
Sobrepondo-se ao ruído da multidão, os Baudelaire ouviram o relógio bater doze
insistentes Nadabons! e se deram conta de que tinham dormido por um belo tempo. A
tarde de quarta-feira já começava, o que significava que a quinta-feira, bem como a
chegada dos seus nobres amigos e associados, estava realmente muito próxima.
"Atenção!" A voz da juíza Strauss também estava realmente muito próxima e
ressoou acima da multidão, juntamente com repetidas pancadas de um martelo de juiz,
expressão que aqui se refere ao martelete usado pelos juizes quando querem chamar a
atenção de alguém. "Atenção todo mundo! O julgamento está para começar! Todos, por
favor, tomem seus lugares!"
"Como podemos tomar nossos lugares", perguntou um homem, "se não podemos
vê-los?"
"Vá apalpando em volta com as mãos", disse a juíza Strauss. "Mais para a sua
direita. Um pouco mais. Um pouco mais. Um pouco mais. Um pouco..."
"Ai!"
"Também, nem tanto", disse a juíza. "Aí! Sente-se! Agora o resto de vocês pode
fazer o que ele fez!"
"Como vamos fazer o que ele fez", perguntou um outro, "se não podemos vê-lo?"
"Podemos dar uma espiada?", perguntou outra pessoa.
"Nada de espiadas!", disse, severa, a juíza Strauss. "Nosso sistema de justiça não
é perfeito, mas é o único que temos. Lembro a vocês que todos os três juizes da Corte
Suprema estão de olhos nus, e se vocês espiarem serão acusados de desacato ao
tribunal! Aliás, 'desacato' é uma palavra usada para designar alguma coisa desprezível e
vergonhosa."
"Eu sei o que significa a palavra 'desacato'", rosnou uma voz que as crianças não
conseguiram reconhecer.
"Eu defini a palavra para os Baudelaire", disse a juíza Strauss, e as crianças
agradeceram com um movimento de cabeça na direção da voz dela, muito embora os três
irmãos soubessem o significado de "desacato" desde uma noite, muito tempo atrás, em
que o tio Monty os levara ao cinema. "Órfãos Baudelaire, dêem três passos para a direita.
Mais três. Mais um. Aí! Vocês chegaram ao seu banco. Por favor, sentem-se."
Os Baudelaire sentaram-se em um dos bancos de madeira do saguão e ouviram
os passos do gerente que os conduzira e agora cambaleava de volta à multidão que se
acomodava. Por fim, tinha-se a impressão de que todo mundo encontrara um tipo ou
outro de lugar e, com mais algumas batidas do martelo de juiz e chamados de atenção, a
multidão se aquietou e a juíza Strauss começou o julgamento.
"Boa tarde, senhoras e senhores", disse ela, a voz vindo da direita em frente aos
Baudelaire, "e quaisquer outros que acaso estejam presentes. Chegou ao conhecimento
da Corte Suprema que certos feitos perversos ficaram impunes, e que essa perversidade
vem crescendo em um ritmo alarmante. Planejávamos realizar um julgamento na
quinta-feira, mas depois da morte do senhor Dénouement ficou claro que temos de fazê-lo
mais cedo, nos interesses da justiça e da nobreza. Ouviremos o que cada testemunha
tem a dizer e determinaremos de uma vez por todas quem é responsável. Os réus serão
entregues às autoridades, que estão aguardando do lado de fora, para garantir que
ninguém tente escapar enquanto o julgamento está em andamento."
"E por falar em réus", acrescentou o conde Olaf, "quando o julgamento acabar,
estão todos convidados para um coquetel muito in, no qual eu serei o anfitrião! As
mulheres ricas são especialmente bem-vindas!"
"Eu é que sou a anfitriã!", rosnou a voz de Esmé
Squalor, "e os homens elegantes ganharão um presente grátis."
"Todos os presentes são grátis", disse ou Frank ou Ernest.
"Ordem no tribunal!", pediu severamente a juíza Strauss, batendo o seu martelo.
"Estamos discutindo justiça social, e não compromissos sociais. Agora, os réus queiram
por favor ficar em pé e declarar seus nomes e ocupações para registro."
Os Baudelaire se levantaram, hesitantes.
"Você também, conde Olaf", disse com firmeza a juíza Strauss. O banco de
madeira rangeu ao lado dos Baudelaire, e eles perceberam que o notório vilão também
estivera sentado naquele banco e agora se encontrava em pé ao lado deles.
"Nome?", perguntou a juíza.
"Conde Olaf", respondeu o conde Olaf.
"Ocupação?"
"Empresário teatral", disse ele, usando uma expressão elegante para designar
alguém que encena espetáculos de teatro.
"Você é inocente ou culpado?", perguntou a juíza Strauss.
As crianças imaginaram ter ouvido os dentes imundos de Olaf roçando contra os
lábios quando ele sorriu.
"Sou inqualificavelmente inocente", disse ele, e um murmúrio se espalhou pela
multidão como uma ondulação na superfície de uma lagoa.
"Você pode se sentar", disse a juíza Strauss batendo o martelo. "Crianças, vocês
são as próximas. Por favor, declarem seus nomes."
"Violet Baudelaire", disse Violet Baudelaire.
"Klaus Baudelaire", disse Klaus Baudelaire.
"Sunny Baudelaire", disse Sunny Baudelaire.
As crianças ouviram o raspar de uma pena no papel e perceberam que a juíza
estava anotando tudo o que era dito.
"Ocupações?"
Os Baudelaire não sabiam como responder a essa pergunta. A palavra
"ocupação", como tenho certeza que você sabe, usualmente se refere a um emprego,
mas o trabalho dos Baudelaire era esporádico, uma palavra que aqui significa "consistindo
de um grande número de ocupações, exercidas durante um período curto e sob
circunstâncias muito inusitadas". A palavra também pode se referir a como a pessoa
passa o seu tempo, no entanto os irmãos raramente gostavam de pensar em todas as
coisas pavorosas que as ocuparam recentemente. E, por fim, a palavra "ocupação" pode
se referir ao estado em que está a pessoa, como ser o marido de uma mulher, ou o tutor
de uma criança, mas os jovens não tinham certeza de como tal termo poderia se aplicar à
atordoante história de suas vidas. Os Baudelaire pensaram e pensaram, e finalmente
cada qual deu a sua resposta do modo que achou apropriado.
"Voluntária", disse Violet.
"Concierge", disse Klaus.
"Criança", disse Sunny.
"Objeção!", disse Olaf ao lado deles. "A ocupação certa deles é órfãos, ou
herdeiros de uma grande fortuna!"
"Sua objeção está registrada", disse firmemente a juíza Strauss. "E agora, jovens
Baudelaire, me respondam se vocês são culpados ou inocentes."
Mais uma vez os Baudelaire hesitaram antes de responder. A juíza Strauss não
tinha perguntado às crianças especificamente a respeito do que eram inocentes ou
culpadas, e o silêncio de expectativa no saguão não lhes deu vontade de pedir à juíza
para esclarecer a pergunta. De modo geral, é claro, as crianças Baudelaire acreditavam
ser inocentes, muito embora fossem culpadas, como todos nós, de certos atos que são
qualquer coisa menos nobres. Mas os Baudelaire não estavam em pé de um modo geral.
Eles estavam em pé ao lado do conde Olaf. Foi Klaus quem encontrou as palavras para
comparar a inocência e a culpa dos irmãos com a inocência e a culpa de um homem que
dissera ser inqualificavelmente inocente; e depois de uma pausa o Baudelaire do meio
respondeu à pergunta da juíza.
"Somos comparativamente inocentes", disse ele, e uma ondulação de novo
tomava conta da multidão. As crianças ouviram mais uma vez o arranhar da pena da juíza
Strauss, e o som da voz entusiástica de Geraldine Julienne.
"Já posso ver a manchete!", exclamou ela. "'TODO MUNDO É INOCENTE!'
Aguardem só até os leitores d'O Pundonor Diário lerem isso!"
"Ninguém é inocente", disse a juíza Strauss, batendo o martelo. "Pelo menos, não
ainda. E, agora, todos os presentes no tribunal que possuem evidências que desejam
submeter à corte, por favor se aproximem dos juizes e façam isso."
O salão irrompeu em um pandemônio, uma palavra que aqui significa "uma
multidão de pessoas vendadas tentando submeter evidências a três juizes". Os
Baudelaire sentaram-se no banco e ouviram as pessoas tropeçando umas nas outras
enquanto tentavam submeter sua pesquisa à Corte Suprema.
"Eu submeto estas matérias de jornal!", anunciou a voz de Geraldine Julienne.
"Eu submeto estes estudos ambientais!", anunciou Charles.
"Eu submeto estes livros escolares!", anunciou o sr. Remora.
"Eu submeto estes projetos de bancos!", anunciou a sra. Bass.
"Eu submeto estes registros administrativos!", anunciou o vice-diretor Nero.
"Eu submeto esta papelada!", anunciou Hal.
"Eu submeto estes registros financeiros!", anunciou o sr. Poe.
"Eu submeto estes livros de regras!", anunciou o sr. Lesko.
"Eu submeto estas constituições!", anunciou a sra. Morrow.
"Eu submeto estes cartazes de parque de diversões!", anunciou Hugo.
"Eu submeto estes desenhos anatômicos!", anunciou Colette.
"Eu submeto estes livros", anunciou Kevin, "com ambas as mãos, a direita e a
esquerda!"
"Eu submeto estas páginas em branco cravejadas de rubis!", disse Esmé Squalor.
"Eu submeto este livro sobre como eu sou maravilhosa!", anunciou Carmelita
Spats.
"Eu submeto este livro de lugar-comum!", anunciou Frank ou Ernest.
"Eu também!", anunciou Ernest ou Frank. "Eu submeto a minha mãe!" A última
voz foi a primeira no desfile de vozes que os Baudelaire não reconheceram. Parecia que
todos no saguão tinham algo para submeter à Corte Suprema; para os Baudelaire, era
como se estivessem no meio de uma avalanche de observações, pesquisas e outras
evidências, algumas das quais soavam exculpatórias — uma palavra que aqui significa
"que provavelmente podem provar a inocência dos Baudelaire" —, e algumas das quais
soavam condenatórias, uma palavra que fazia as crianças tremerem só de pensar.
"Eu submeto estas fotografias!"
"Eu submeto estes registros hospitalares!"
"Eu submeto estes artigos de revistas!"
"Eu submeto estes telegramas!"
"Eu submeto estes dísticos!"
"Eu submeto estes mapas!"
"Eu submeto estes livros de culinária!"
"Eu submeto estes retalhos de papel!"
"Eu submeto estes roteiros de cinema!"
"Eu submeto estes dicionários de rimas!"
"Eu submeto estas cartas de amor!"
"Eu submeto estes resumos de óperas!" "Eu submeto estes dicionários
analógicos!" "Eu submeto estas licenças de casamento!" "Eu submeto estes comentários
talmúdicos!" "Eu submeto estes legados e testamentos!" "Eu submeto estes catálogos de
leilões!" "Eu submeto estes livros de códigos!" "Eu submeto estas enciclopédias
micológicas!" "Eu submeto estes cardápios!" "Eu submeto estas tabelas de horários de
balsas!" "Eu submeto estes programas de teatro!" "Eu submeto estes cartões comerciais!"
"Eu submeto estes memorandos!" "Eu submeto estas novelas!" "Eu submeto estes
biscoitos!" "Eu submeto estas provas sortidas que não quero categorizar!"
Por fim os Baudelaire ouviram um vigoroso bum!, e a voz triunfante de Jerome
Squalor.
"Eu submeto esta história abrangente da injustiça!", anunciou ele, e o saguão
encheu-se de sons de aplausos e vaias, quando voluntários e vilões reagiram. A juíza
Strauss teve de bater o seu martelo uma porção de vezes até que a multidão se
acalmasse.
"Antes que a Corte Suprema examine estas evidências", disse a juíza, "pedimos a
cada um dos acusados que faça uma declaração explicando os seus atos. Podem levar o
tempo que quiserem para contar a sua história, mas não deixem de fora nada de
importante. Conde Olaf, você pode ser o primeiro."
O banco de madeira rangeu de novo quando o vilão se levantou. Os Baudelaire
ouviram o conde Olaf suspirar e sentiram o seu hálito fétido.
"Senhoras e senhores", disse ele, "eu sou tão incrivelmente inocente que a
palavra 'inocente' deveria ser escrita na minha cara em letras maiúsculas. A letra I
representaria 'indubitavelmente inocente'. A letra N representaria 'nada de errado', que é o
que fiz. A letra A representaria..."
"Não é assim que se escreve 'inocente'", interrompeu a juíza Strauss.
"Eu não acho importante como se escreve", resmungou o conde Olaf.
"Como se escreve é importante, sim", disse a juíza, severa.
"Bem, 'inocência' deveria se escrever O-L-A-F", disse o conde Olaf, "e aqui
termina o meu discurso."
O banco rangeu quando Olaf se sentou de novo.
"Isso é tudo o que você tem a dizer?", perguntou surpresa a juíza Strauss.
"Isso aí", disse o conde Olaf.
"Eu recomendei que nada de importante fosse deixado de fora", lembrou a juíza.
"Eu sou a única coisa importante", insistiu o conde Olaf, "e sou muito inocente.
Tenho certeza de que naquela enorme pilha de evidências há mais provas da minha
inocência do que da minha culpa."
"Ora, tudo bem", disse a juíza, incerta. "Órfãos Baudelaire, agora vocês podem
nos contar o seu lado da história."
Cambaleantes, os Baudelaire se puseram de pé, as pernas trêmulas em nervosa
antecipação, e eles mais uma vez não sabiam muito bem o que dizer.
"Prossigam", disse gentilmente a juíza Strauss. "Estamos ouvindo."
Os órfãos Baudelaire se deram as mãos. Apesar de terem sido recém-notificados
do julgamento, havia umas poucas horas apenas, as crianças se sentiam como se
estivessem esperando há uma eternidade para poder levantar-se e contar a sua história a
quem quisesse ouvir. Embora grande parte da história tivesse sido contada ao sr. Poe,
anotada no livro de lugar-comum de Klaus e discutida com os trigêmeos Quagmire e
outras pessoas nobres que encontraram em suas viagens, eles nunca tiveram a
oportunidade de contar a história inteira, desde o pavoroso dia na Praia de Sal, em que o
sr. Poe lhes dera a terrível notícia sobre os seus pais, até esta mesma tarde, em que
estavam ali perfilados perante a Corte Suprema, esperando que todos os vilões de suas
vidas fossem finalmente levados à justiça.
Talvez eles não tivessem tido tempo bastante para sentar e contar sua história
exatamente como queriam contá-la, ou talvez sua história fosse tão desventurada que
eles não ousavam compartilhar todos os deploráveis detalhes com ninguém. Ou talvez os
Baudelaire simplesmente não tivessem encontrado ninguém que os ouvisse tão bem
quanto os pais deles costumavam ouvir. Os irmãos, ali perfilados perante a Corte
Suprema, foram capazes de visualizar o rosto da mãe e do pai, assim como as
expressões que mostravam enquanto ouviam os filhos. Ocasionalmente, enquanto um
dos Baudelaire contava uma história aos pais, ocorria algum tipo de interrupção — o
telefone tocava, ou ouvia-se o ruído estridente de uma sirene lá fora, ou mesmo um dos
outros irmãos fazia um comentário. "Psiu!", diziam os pais Baudelaire para a interrupção.
"Você não está com a palavra", explicavam, e então se viravam de novo para o
Baudelaire que estava falando e, com um movimento de cabeça, indicavam que a história
devia continuar.
Então, no julgamento, os órfãos se puseram em pé ao mesmo tempo, provocando
um ranger do banco de madeira atrás deles, e começaram a contar a história de suas
vidas, o que há muito desejavam fazer.
"Bem", disse Violet, "uma tarde meus irmãos e eu estávamos na Praia de Sal. Eu
estava pensando em uma invenção que pudesse recuperar uma pedra que tinha sido
atirada no oceano. Klaus examinava criaturas em poças de maré. E Sunny notou que o
senhor Poe estava caminhando em nossa direção."
"Humm", disse a juíza Strauss, mas não era o tipo de "humm" de quem está
pensativo. A mais velha dos Baudelaire pensou que talvez a juíza estivesse dizendo
"humm" do mesmo jeito que ela, Violet, tinha dito "humm" para Frank ou Ernest, como
uma resposta segura.
"Prossiga", disse uma voz grave e profunda que pertencia a um dos outros juizes.
"A juíza Strauss só estava pensativa."
"O senhor Poe nos contou que tinha ocorrido um incêndio terrível", continuou
Klaus. "Que a nossa casa fora destruída, e que os nossos pais haviam morrido."
"Humm", disse novamente a juíza Strauss, mas não era o tipo de "humm" de
quem estava demonstrando compaixão. Klaus pensou que talvez a juíza estivesse
tomando um gole de chá, para fortalecer-se enquanto os irmãos contavam sua história.
"Por favor, continue", disse outra voz. Esta era muito rouca, como se o terceiro
juiz tivesse ficado aos gritos durante horas e agora mal pudesse falar. "A juíza Strauss só
estava demonstrando compaixão.
"Bildungsroman", disse Sunny. Ela queria dizer alguma coisa nos moldes de "A
partir daquele momento, nossa história foi uma longa, apavorante educação nos
perversos caminhos do mundo e nos misteriosos segredos escondidos em todos os
cantos", mas, antes que seus irmãos pudessem traduzir, a juíza Strauss emitiu mais um
"humm", e esse foi o mais estranho de todos. Não era o "humm" de quem está pensativo,
não soava como uma resposta segura, certamente não demonstrava compaixão,
tampouco era o ruído que alguém pudesse fazer ao tomar um gole de chá. Para Sunny, o
"humm" soou como um ruído que ela ouvira muito tempo atrás, não muito depois daquele
dia na Praia de Sal que as crianças estavam descrevendo. A mais jovem dos Baudelaire
ouvira o mesmo ruído vindo da sua própria boca, quando estava pendurada do lado de
fora do quarto da torre do conde Olaf dentro de uma gaiola, com um pedaço de fita
adesiva cobrindo-lhe a boca. Sunny engoliu em seco ao reconhecer o som, assim como
Klaus reconhecera a voz do segundo juiz e Violet reconhecera a voz do terceiro. Às cegas,
os Baudelaire estenderam os braços para segurar as mãos uns dos outros, em pânico.
"O que vamos fazer?", sussurrou Violet o mais baixo possível.
"Espiar", sussurrou Sunny em resposta.
"Se espiarmos", sussurrou Klaus, "seremos acusados de desacato ao tribunal."
"O que vocês estão esperando, órfãos Baudelaire?", perguntou a voz grave e
profunda.
"Sim", disse a voz rouca. "Continuem a história."
Mas os órfãos Baudelaire sabiam que não poderiam continuar sua história, não
importava o tempo que estiveram aguardando para contá-la. Ao som daquelas vozes
familiares, eles não tiveram escolha senão remover suas vendas. As crianças não se
importavam de serem acusadas de desacato ao tribunal, porque sabiam que se os outros
dois juizes fossem quem pensavam que eram, então a Corte Suprema era de fato uma
coisa que consideravam desprezível e vergonhosa; sem mais discussão elas desataram
os pedaços de pano preto que lhes cobriam os olhos e espiaram.
O que aguardava os Baudelaire era uma espiada chocante e perturbadora.
Apertando os olhos por causa da luz súbita, eles espiaram direto em frente, de onde
tinham vindo as vozes da juíza Strauss e dos outros juizes. As crianças viram-se espiando
o balcão dos concierges, onde estavam empilhadas todas as evidências que a multidão
submetera, inclusive matérias de jornal, estudos ambientais, livros escolares, projetos de
bancos, registros administrativos, papelada, registros financeiros, livros de regras,
constituições, cartazes de parque de diversões, desenhos anatômicos, livros, páginas em
branco cravejadas de rubis, um livro alegando o quanto Carmelita Spats era maravilhosa,
livros de lugar-comum, fotografias, registros hospitalares, artigos de revistas, telegramas,
dísticos, mapas, livros de culinária, retalhos de papel, roteiros de cinema, dicionários de
rimas, cartas de amor, resumos de óperas, dicionários analógicos, licenças de casamento,
comentários talmúdicos, legados e testamentos, catálogos de leilões, livros de códigos,
enciclopédias micológicas, cardápios, tabelas de horários de balsas, programas de teatro,
cartões comerciais, memorandos, novelas, biscoitos, provas sortidas que uma certa
pessoa não queria categorizar e a mãe de alguém, tudo isso coisas que Dewey
Dénouement tinha esperança de catalogar. No entanto, o que faltava no balcão era a
juíza Strauss, e quando os Baudelaire deram uma espiada em volta no saguão, viram que
outra pessoa também estava faltando, pois não havia ninguém no banco de madeira,
apenas algumas marcas circulares deixadas por pessoas que depositavam ali suas taças
sem usar descansos para copos. Freneticamente, eles espiaram a multidão vendada que
aguardava impaciente a continuação da história, e por fim avistaram o conde Olaf no
extremo oposto do salão. A juíza Strauss também estava lá, enfiada na dobra do
antebraço de Olaf do modo como você poderia carregar um guarda-chuva se as suas
duas mãos estivessem ocupadas. Nenhuma das mãos imundas do conde Olaf estava
ocupada — estavam ambas comprometidas com outras tarefas, uma expressão que aqui
significa que uma das mãos cobria a boca da juíza Strauss com fita adesiva para que ela
só pudesse dizer "humm", e a outra apertava apressadamente o botão do elevador. O
lançador de arpões, com seu último gancho pontiagudo faiscando de um jeito maligno,
estava encostado na parede, ao alcance fácil do pérfido vilão.
Tudo isso foi uma espiada chocante e perturbadora, é claro, mas ainda mais
chocante e perturbador foi o que as crianças viram quando seu olhar retornou ao balcão
dos concierges. Sentados nas duas extremidades, com os cotovelos apoiados na pilha de
evidências, havia dois vilões nos quais as crianças esperavam jamais ter de dar uma
espiada de novo, vilões de tamanha perversidade que seria chocante e perturbador
demais para mim escrever seus nomes. Posso unicamente descrevê-los como o homem
com barba mas sem cabelo e a mulher com cabelo mas sem barba — entretanto, para os
órfãos Baudelaire, aqueles dois juizes vilanescos eram mais uma espiada nos perversos
caminhos do mundo.

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