Capítulo 12
― Sunny
― disse Klaus, ― existe algum equivalente culinário de raiz-forte? ― Sunny abriu
a boca como se estivesse tentando dizer alguma coisa, mas os Baudelaire mais
velhos só ouviram o som rouco e sibilante do ar tentando passar pelos cogumelos.
Suas mãozinhas se encurvaram em punhos fechados, e seu corpo se contorceu de um
lado para outro em dores e medo. Por fim, ela conseguiu pronunciar uma palavra
— uma palavra que muitos poderiam não ter entendido.
Alguns poderiam ter pensado que era parte
do vocabulário pessoal de Sunny — talvez seu jeito de dizer ‘’eu amo vocês’’ ou
mesmo ‘’adeus, irmãos ‘’. Alguns poderiam ter pensado que era puro disparate,
apenas os ruídos que uma pessoa é capaz de produzir quando um fungo letal a
derrotou. Mas existem muitos outros que teriam entendido imediatamente. Uma
pessoa do Japão teria entendido que ela estava falando de um condimento muitas
vezes servido com peixe cru e gengibre condimentado. Um chefe de cozinha
saberia que Sunny estava se referindo a uma raiz verde de sabor pungente,
considerada por muitos o equivalente culinário da raiz-forte. E Violet e Klaus
sabiam que sua irmã estava lutando pela vida, uma expressão que aqui significa ‘’tentando
fazer alguma coisa que salvasse sua vida’’ ou ‘’alguma coisa que a salvasse do
My celium Medusóide’’ ou, ainda mais importante, que estava se referindo a ‘’um
item que os Baudelaire mais velhos ainda tinham no bolso à prova d'água do
uniforme, selado em uma lata que Sunny encontrara em uma caverna subterrânea’’.
― Wasabi
― disse Sunny, em um sussurro rouco, abafado pelos cogumelos, e não precisou
dizer mais nada.
Os Baudelaire nunca tiveram muita
oportunidade de usar a expressão ‘’a sorte virou’’ pois ela se refere a uma
situação que foi subitamente revertida, portanto os que antes estavam em uma
situação de fraqueza se viram de repente em uma situação de força, ou
vice-versa. Para os Baudelaire, a sorte tinha virado na Praia de Sal, onde
receberam a notícia do terrível incêndio, e o conde Olaf subitamente se tornou
uma poderosa e terrível figura em suas vidas. Com o passar do tempo, os irmãos
aguardaram e aguardaram que a sorte virasse de novo, para que Olaf fosse
derrotado de uma vez por todas e eles pudessem se ver livres das forças sinistras
e misteriosas que ameaçavam engolfá-los, mas a sorte das vidas dos Baudelaire
parecia estar emperrada, deixando as crianças sempre em uma posição de miséria
e desespero enquanto o mal parecia triunfar à sua volta. Mas quando Violet
abriu apressadamente a lata de wasabi que tinha guardada no bolso e, com uma
colher, enfiou a mistura verde e picante na boca ofegante de Sunny , pareceu
que a sorte finalmente iria virar. Sunny engasgou quando o wasabi tocou sua
língua, e os talos e píleos do My celium Medusóide estremeceram e pareceram
encolher de medo do poderoso condimento japonês. Em pouco tempo, o fungo
murchou e diminuiu, e o arquejar de Sunny foi se transformando em tosse, e a
tosse em respirações profundas, e assim a mais jovem dos Baudelaire começou a
recobrar o alento, uma expressão que aqui significa ‘’recuperar as forças e a
capacidade de respirar’’. A mais jovem dos Baudelaire segurou-se com firmeza
nas mãos dos irmãos, seus olhos se encheram de lágrimas, mas Violet e Klaus
puderam ver que o My celium Medusóide não iria triunfar.
― Está
funcionando ― disse Violet. ― A respiração de Sunny está voltando ao normal.
― Sim
― disse Klaus. ― A sorte virou contra o fungo horroroso.
― Água ― disse Sunny, e seu irmão ergueu-se do
chão da cozinha e se apressou em buscar um copo d'água. Enfraquecida, a mais
jovem dos Baudelaire endireitou o corpo, bebeu sofregamente, e depois abraçou
os dois irmãos o mais apertado que pôde.
― Obrigada
― disse ela. ― Salvação.
― Você mesma se salvou ― ressaltou Violet. ― Estávamos
com o wasabi o tempo todo, mas nem pensamos em usá-lo, até que você nos contou.
Sunny tossiu de novo e deitou no chão.
― Exaurida
― murmurou ela.
― Não fico surpresa por você estar exausta ―
disse Violet. ― Passou por uma provação e tanto. Quer que a carreguemos até o
alojamento para descansar?
― Descansar
aqui ― disse Sunny, enroscando-se ao pé do fogão.
― Você vai mesmo se sentir confortável no chão
da cozinha? ― perguntou Klaus.
Sunny abriu um
olho exausto e sorriu para os irmãos.
― Perto
de vocês ― disse ela.
― Tudo bem, Sunny ― disse Violet, pegando um
pano de prato no balcão da cozinha e dobrando-o para servir de travesseiro para
a irmã. ― Estaremos no salão principal, se você precisar de nós.
― E
agora? ― murmurou ela.
― Shhh... ― fez Klaus, cobrindo-a com mais um
pano de prato. ― Não se preocupe, Sunny. Vamos pensar no que fazer.
Os Baudelaire saíram pé ante pé da
cozinha, levando a lata de wasabi.
― Você
acha que ela vai ficar bem? ― perguntou Violet.
― Tenho
certeza que sim ― disse Klaus. ― Depois de uma soneca, ela vai ficar nova. Mas
nós também precisamos comer um pouco de wasabi. Quando abrimos o capacete de
mergulho, ficamos expostos ao My celium Medusóide, e precisamos de todas as
nossas forças para escapar do conde Olaf.
Violet assentiu e enfiou uma colher de
wasabi na boca, estremecendo violentamente quando o condimento tocou sua
língua.
― Sobrou
uma última colherada ― disse ela, passando a lata para o irmão. ― Até que
arranjemos mais um pouco de raiz-forte para acabar de vez com aquele fungo, é
melhor mantermos o capacete fechado.
Klaus concordou com a cabeça, fechou os
olhos e comeu o que restou do condimento japonês.
― Se
algum dia inventarmos aquele código alimentar de que falamos com Fiona ― disse
ele, ― a palavra 'wasabi' vai significar
'poderoso'. Não é à toa que isso curou nossa irmã.
― Agora
que a curamos ― disse Violet, lembrando-se da pergunta que Sunny tinha feito
antes de cair no sono, ― e agora?
― Agora
vem o Olaf ― disse Klaus com firmeza. ― Ele disse que tinha tudo o que precisava
para derrotar C.S.C, para sempre — com exceção do açucareiro.
― Você
tem razão ― disse Violet. ― A sorte tem que virar contra ele e nos fazer achar
o açucareiro antes.
― Mas
não sabemos onde está o açucareiro ― disse Klaus. ― Alguém deve tê-lo tirado da
Gruta Gorgônea.
― Eu
fico pensando... ― começou Violet, mas ela nunca chegou a dizer o que ficava
pensando, porque um barulho estranho a interrompeu. Era um zumbido, seguido por
uma espécie de ‘’bip’’ e outros ruídos que pareciam vir bem do fundo das
máquinas do Queequeg. Por fim, uma luz verde se acendeu no painel e um objeto
branco e fino começou a ser cuspido para fora de uma pequena fenda no painel.
― É
um papel ― disse Klaus.
― É mais que isso ― disse Violet, e avançou na
direção do painel. A tira de papel se enrolou na mão dela logo que emergiu da
fenda, como se a máquina estivesse impaciente para que a mais velha dos
Baudelaire lesse a mensagem. ― Esse é o dispositivo telegráfico. E esse papel
deve ser um...
― Boletim
do Correio Sub-reptício Cooperativo ― completou Klaus. Violet assentiu e deu
uma olhada rápida no papel. De fato, as palavras ‘’Correio Sub-reptício Cooperativo’’
estavam impressas no topo e, assim que a máquina cuspiu mais papel, a mais
velha dos Baudelaire pôde ler a quem a mensagem era endereçada: ‘’Ao Queequeg’’.
Logo abaixo, estavam impressos o nome da pessoa que enviara o telegrama, alguém
em terra seca, a quilômetros de distância dali, e a data. Era um nome que
Violet quase não se atrevia a pronunciar em voz alta, apesar de sentir que
vinha sussurrando-o para si mesma havia dias, desde que as águas geladas do
Arroio Enamorado arrastaram para longe o jovem que significava tanto para ela.
― É
de Quigley Quagmire ― disse ela baixinho.
Os olhos de Klaus
se arregalaram de perplexidade.
― O
que está escrito? perguntou. Violet sorriu enquanto o telegrama acabava de ser
impresso, e seu dedo tocou o Q do nome do amigo. Era como se saber que Quigley
estava vivo já fosse o suficiente. ― ‘’E
de meu conhecimento que vocês têm três voluntários adicionais a bordo do
Queequeg PONTO’’ ― leu ela, lembrando-se de que ‘’PONTO’’ indicava o fim de uma
sentença em um telegrama. ― Estamos desesperadamente
necessitados dos serviços deles para uma questão da mais absoluta urgência
PONTO. Favor levá-los na terça-feira ao local indicado nos versos abaixo PONTO.
― Ela correu os olhos pelo papel e franziu o cenho, pensativa. ― Depois vêm
dois poemas ― disse ela. ― Um de Lewis Carroll e o outro de T. S. Eliot.
Klaus tirou seu livro de lugar-comum do
bolso e folheou até encontrar o que estava procurando.
― Comunicação
por Semiflutuações em Cânticos ― disse ele. ― Esse é o código que aprendemos na
gruta. Quigley deve ter mudado algumas palavras dos poemas para que mais
ninguém soubesse onde devemos encontrá-lo. Vamos ver se reconhecemos as
mudanças.
― Violet
assentiu e leu o primeiro poema em voz alta:
― Ó,
Ostras, venham, passeiem conosco! Seu Morsa pediu e implorou. Um passeio gostoso,
um papo legal, Ao longo do cinema.
― A
última parte me parece errada ― disse Violet.
― Não existiam cinemas quando Lewis Carroll
estava vivo ― disse Klaus. ― Mas quais são as verdadeiras palavras do poema?
― Não
sei ― disse Violet. ― Sempre achei Lewis Carroll esdrúxulo demais para o meu
gosto.
― Eu
gosto dele ― disse Klaus, ― mas não sei seus poemas de cor. Leia o outro. Talvez
ajude.
Violet assentiu e leu em voz alta:
― A hora rosada, quando os olhos e as costas
Da mesa voltam-se para cima, quando fã máquina humana aguarda Qual festa
pulsante de pônei...
A voz da mais velha dos Baudelaire foi
sumindo enquanto ela olhava confusa para o irmão.
― Isso
é tudo ― disse ela. ― O poema pára aqui. ― Klaus franziu o cenho. ― O telegrama
não diz mais nada?
― Só
algumas letras bem no fim ― disse ela. ― 'CC: J.S.'. O que significa isso?
― 'CC' significa que Quigley mandou uma cópia
da mensagem para mais alguém ― disse Klaus, ― e 'J.S.' são as iniciais do nome
da tal pessoa.
― Aquelas
misteriosas iniciais outra vez ― disse Violet. ― Não pode ser Jacques Snicket,
porque ele está morto. Mas quem mais poderia ser?
― Não
podemos nos preocupar com isso agora ― disse Klaus. ― Temos de descobrir quais
foram as palavras substituídas nesses poemas.
― Como
vamos fazer isso? ― perguntou Violet.
― Não sei ― disse Klaus. ― Por que Quigley
haveria de achar que nós memorizamos esses poemas?
― Ele
não acharia isso ― disse Violet. ― Ele nos conhece. Mas o telegrama foi endereçado
ao Queequeg. Ele sabia que alguém a bordo poderia decodificar a poesia.
― Mas
quem? ― perguntou Klaus. ― Não é Fiona — ela é uma micetologista. Um otimista
como Phil provavelmente não está familiarizado com T. S. Eliot. E é difícil
imaginar o capitão Andarré muito interessado em poesia.
― Hoje
em dia não ― disse Violet pensativa. ― Mas o irmão de Fiona disse que costumava
estudar poesia com o capitão.
― É
verdade ― disse Klaus. ― Ele disse que costumavam ler um para o outro no salão
principal. ― Klaus caminhou até o guarda-louça e abriu o armário, examinando os
livros que Fiona guardava lá dentro. ― Mas não há poesia aqui — apenas a
biblioteca micetológica de Fiona.
― O
capitão Andarré não iria expor seus livros de poesia assim ― disse Violet. ― Com
certeza ele os manteria em segredo.
― Exatamente
como ele mantinha em segredo o que aconteceu com o irmão de Fiona ― disse
Klaus.
― Ele
achava que certos segredos são terríveis demais para que gente jovem os conheça
― disse Violet, ― mas agora precisamos conhecê-los.
Klaus ficou um momento em silêncio e
depois se voltou para a irmã.
― Há
uma coisa que nunca contei ― disse ele. ― Lembra-se de quando nossos pais
ficaram muito zangados por causa do atlas estragado?
― Nós
falamos sobre isso na gruta ― disse Violet. ― A chuva o estragou quando deixamos
a janela da biblioteca aberta.
― Não
acho que essa tenha sido a única razão por que eles ficaram zangados ― disse
Klaus. ― Peguei aquele atlas na estante do alto — que só dava para alcançar pondo
a escadinha em cima da cadeira. Eles não achavam que eu conseguiria chegar até
lá.
― Por
que isso os deixaria zangados? ― perguntou Violet.
Klaus baixou os
olhos.
― É
lá que eles deixavam os livros que não queriam que encontrássemos ― disse ele. ―
Eu estava interessado no atlas, mas quando o tirei da estante, havia lá toda
uma fileira de outros livros.
― Que
espécie de livros? ― perguntou Violet.
― Não cheguei a dar uma boa olhada neles ―
disse Klaus. ― Havia uns poucos livros sobre guerra e acho que alguns romances.
Eu também estava interessado no atlas para pesquisar mais um pouco, mas
lembro-me de ter pensado que era estranho nossos pais terem escondido aqueles
livros. É por isso que ficaram tão zangados, penso eu, quando viram o atlas na
poltrona perto da janela. Naquele momento eu soube que tinha descoberto o
segredo deles.
― Você
chegou a examiná-los de novo? ― perguntou Violet.
― Não tive oportunidade ― disse Klaus. ― Eles
mudaram os livros para outro esconderijo, e nunca mais os vi.
― Talvez
nossos pais pretendessem nos contar o que havia naqueles livros quando fôssemos
mais velhos ― disse Violet.
― Talvez
― concordou Klaus. ― Mas jamais saberemos. Nós os perdemos no incêndio. ― Os
dois Baudelaire ficaram sentados em silêncio por um momento, olhando para o
guarda-louça, e então, sem mais palavra, os dois irmãos subiram na mesa de
madeira para abrir o armário do alto. Dentro havia uma pequena pilha de livros
sobre assuntos enfadonhos, como educação de crianças, alimentação adequada e
inadequada, e o ciclo das águas, mas quando as crianças empurraram aqueles
livros para o lado, deram com o que estavam procurando.
― Elizabeth
Bishop ― disse Violet. ― Charles Simic, Samuel Taylor Coleridge, Franz Wright,
Daphne Gottlieb — aqui há todos os tipos de poesia.
― Por
que você não lê T. S. Eliot ― sugeriu Klaus, estendendo para ela um volume grosso
e empoeirado, ― enquanto eu dou uma olhada no Lewis Carroll? Se lermos depressa,
talvez possamos encontrar os poemas como realmente são e decodificar a
mensagem.
― Eu
encontrei mais uma coisa ― disse Violet, entregando ao irmão um pedaço quadrado
de papel todo amarrotado. ― Veja.
Klaus olhou para o que a irmã lhe dera.
Era uma fotografia, fora de foco e apagada com o tempo, de quatro pessoas
agrupadas como uma família. No centro da imagem estava um homem grande, com um
bigode muito comprido e de pontas viradas, que lembrava dois parênteses — era o
capitão Andarré, muito embora parecesse bem mais jovem e um bocado mais feliz
do que aquele sujeito que as crianças tinham conhecido. Estava rindo, e seu
braço estava em volta de alguém que os dois Baudelaire reconheceram como o
homem de mãos de gancho, muito embora na foto ele não tivesse ganchos — ambas
as mãos estavam perfeitamente intactas, uma pousada no ombro do capitão e a
outra apontando para quem estava tirando a fotografia — e ele era
suficientemente jovem para ser ainda chamado de adolescente. Do outro lado do
capitão estava uma mulher, que também sorria, e em seus braços havia um bebê
usando um pequenino par de óculos triangulares.
― Essa
deve ser a mãe de Fiona ― disse Klaus, indicando a mulher sorridente.
― Olhe ― disse Violet, apontando para a parede
atrás da família. ― A foto foi tirada a bordo do Queequeg. Ali está a ponta da
placa com a filosofia de vida do capitão: ‘’Aquele que vacila está perdido’’.
― A
família inteira está perdida, quase ― disse Klaus mansamente. ― A mãe de Fiona
está morta. O irmão juntou-se à trupe do conde Olaf. E quem sabe quem é o seu padrasto
realmente? ― Ele pôs a fotografia de lado, abriu seu livro de lugar-comum e o
folheou até o começo, onde tinha colado outra fotografia. Essa fotografia,
tirada havia muito tempo, também tinha quatro pessoas, embora uma delas
estivesse virada de costas para a câmera, sendo portanto impossível dizer quem
era. Klaus guardava a foto desde que as crianças a encontraram no Hospital
Heimlich, e olhava para ela todos os dias, contemplava os rostos de seus pais e
lia e relia a única frase, escrita a máquina acima da imagem. ― Devido às evidências
discutidas na página nove ― dizia a frase, ― os peritos agora suspeitam que
possa haver de fato um sobrevivente do incêndio, mas seu paradeiro é desconhecido.
― Por um bom tempo, os Baudelaire acharam que isso significava que um de seus
pais ainda estava vivo, afinal; mas agora tinham quase certeza de que não era
isso. Violet e Klaus olharam de uma foto para a outra, imaginando uma época em
que ninguém que aparecia nas fotos estava perdido, e todos eram felizes.
Klaus suspirou e olhou para a irmã.
― Talvez
não devêssemos ficar vacilando aqui ― disse Klaus. ― Talvez devêssemos salvar o
nosso capitão, em vez de ficar lendo livros de poesia e olhando velhas
fotografias. Não quero perder Fiona.
― Fiona
está segura com o irmão dela ― disse Violet, ― e tenho certeza de que vai juntar-se
a nós assim que puder. Precisamos decodificar essa mensagem, ou então
perderemos tudo. Nesse caso, aquele ou aquela que vacila está perdido.
― E
se decodificarmos a mensagem antes de Fiona chegar? ― perguntou Klaus.
― Devemos esperar que ela se junte a nós?
― Não vai ser preciso ― disse Violet. ― Nós
três podemos perfeitamente operar este submarino sem ela. Se consertarmos a
vigia, provavelmente poderemos manobrar o Queequeg para fora do Carmelita.
― Não
podemos abandoná-la aqui ― disse Klaus. ― Ela não nos abandonaria.
― Você tem certeza? ― perguntou Violet.
Klaus suspirou e
olhou de novo para a foto.
― Não
― disse ele. ― Vamos pôr mãos à obra. ― Violet balançou a cabeça concordando, e
os dois Baudelaire arquivaram a discussão uma expressão que aqui significa ‘’interromperam
temporariamente a conversa’’ e desarquivaram os livros de poesia, a fim de pôr
mãos à obra na decodificação da Comunicação por Semiflutuações em Cânticos de
Quigley . Já se passara algum tempo desde a época em que os Baudelaire conseguiam
ler em um lugar confortável, e as crianças ficaram contentes por estar
folheando livros em silêncio, procurando certas palavras e até fazendo algumas
anotações. Ler poesia, mesmo quando seu objetivo é encontrar uma mensagem
secreta escondida nele, pode muitas vezes dar uma sensação de poder, assim como
você se sente poderoso quando é o único que trouxe um guarda-chuva em um dia de
chuva ou o único que sabe como desatar nós quando é feito refém. A cada poema,
as crianças se sentiam mais e mais poderosas — ou, como elas poderiam ter dito
no seu código alimentar, mais e mais wasabi —, e até o momento em que os dois
voluntários foram interrompidos, a sensação era de que a sorte estava prestes,
apenas prestes a virar a seu favor.
― Lanche!
― anunciou uma voz alegre abaixo deles, e Violet e Klaus ficaram contentes ao
ver a irmã emergindo da cozinha com um pequeno prato na mão.
― Sunny!
― exclamou Violet. ― Pensamos que você estivesse dormindo.
― Recobrei ― disse a mais jovem dos
Baudelaire, o que queria dizer qualquer coisa na linha de: ‘’Tirei uma soneca
rápida e, quando acordei, me senti disposta para preparar algo de comer’’.
― Estou
com um pouco de fome ― admitiu Klaus. ― O que você fez para nós?
― Amuse bouche ― disse Sunny , o que queria
dizer alguma coisa como: ‘’Pequenos sanduíches de castanhas, com patê de queijo
e sementes de gergelim’’.
― São
muito gostosos ― disse Violet, e as três crianças dividiram o prato de amuse bouche,
enquanto os Baudelaire mais velhos puseram Sunny ao corrente da situação, uma
expressão que aqui significa ‘’contaram à irmã tudo o que aconteceu enquanto
ela sofria dentro do capacete de mergulho’’. Contaram a ela sobre o terrível
submarino que engolira o Queequeg, e o terrível vilão que encontraram lá
dentro. Descreveram as circunstâncias hediondas em que se encontravam os
Escoteiros da Neve, e sobre as roupas hediondas usadas por Esmé Squalor e
Carmelita Spats. Contaram a ela sobre o Correio Sub-reptício Cooperativo e a Comunicação
por Semi-flutuações em Cânticos, que estavam tentando decodificar. E,
finalmente, contaram a ela sobre o homem de mãos de gancho, o irmão perdido
havia muito tempo de Fiona, que possivelmente se juntaria a eles a bordo do
Queequeg.
― Perifido
― disse Sunny, o que queria dizer: ― Seria insensato confiar em um dos asseclas
de Olaf.
― Nós
não confiamos nele ― disse Klaus. ― Não de verdade. Mas Fiona confia, e nós confiamos
em Fiona.
― Volátil
― disse Sunny.
― Sim ― admitiu Violet, ― mas não temos muita escolha.
Estamos no meio do oceano...
― E
precisamos chegar até a praia ― disse Klaus, e ergueu o livro de poesias de Lewis
Carroll. ― Acho que resolvemos uma parte de Comunicação por Semiflutuações em
Cânticos. Lewis Carroll tem um poema chamado 'A morsa e o carpinteiro'.
― Havia
alguma coisa sobre uma morsa no telegrama ― disse Violet.
― Sim ― disse Klaus. ― Levei algum tempo para
encontrar a estrofe específica, mas aqui está. Quigley escreveu: ‘’Ó, Ostras,
venham, passeiem conosco! Seu Morsa pediu e implorou. Um passeio gostoso, um
papo legal, Ao longo do cinema’’.
― Sim
― disse Violet. ― Mas o que diz o verdadeiro poema que Klaus leu? ― Ó,
Ostras, venham, passeiem conosco! Seu Morsa pediu e implorou. Um passeio
gostoso, um papo legal, Ao longo da Praia de Sal.
Klaus fechou o livro e ergueu os olhos
para as irmãs.
― Quigley
quer que nos encontremos com ele ― disse, ― amanhã, na Praia de Sal.
― Praia
de Sal ― repetiu Violet baixinho. A mais velha dos Baudelaire, é claro, não precisava
nem lembrar aos irmãos a última vez em que estiveram na Praia de Sal, ouvindo
da boca do Sr. Poe que a sorte de suas vidas tinha virado. Os três irmãos
sentaram-se e pensaram naquele dia terrível, que dava a sensação de estar fora
de foco e apagado, como a fotografia da família de Fiona — ou a fotografia de
seus próprios pais, colada no livro de lugar-comum de Klaus. Voltar à Praia de
Sal, depois de todo esse tempo, era para os Baudelaire como um enorme passo
atrás, como se fossem perder os pais e o lar mais uma vez, e mais uma vez ser
levados pelo Sr. Poe para a casa do conde Olaf, era como se todas as desventuras
fossem desabar em série sobre eles mais uma vez, como as ondas do oceano
desabavam sobre as minúsculas e passivas criaturas que viviam dentro das poças
d'água na Praia de Sal.
― Como
vamos chegar lá? ― perguntou Klaus.
― No Queequeg ― disse Violet. ― Este submarino
deve ter algum dispositivo de localização, e quando soubermos onde estamos,
acho que poderemos traçar um curso para a Praia de Sal.
― Distância?
― perguntou Sunny.
― Não deve estar longe ― disse Klaus. ― Vou
ter de conferir nas cartas náuticas. Mas o que faremos quando chegarmos lá?
― Acho
que tenho a resposta para isso ― disse Violet, voltando-se para o livro de poemas
de T. S. Eliot.
― Quigley
usou versos de um poema muito longo desse livro, chamado 'A terra desolada'.
― Tentei
ler ― disse Klaus, ― mas achei T. S. Eliot muito obscuro. Não entendi quase nada.
― Talvez
esteja em código ― disse Violet. ― Ouça isso que Quigley escreveu: ‘’A hora
rosada, quando os olhos e as costas Da mesa voltam-se para cima, quando a
máquina humana aguarda Qual festa pulsante de pônei..?’’
― Mas
o verdadeiro poema diz: ‘’A hora violeta, quando os olhos e as costas Da mesa
voltam-se para cima, quando a máquina humana aguarda Qual.. ‘’
― Blá
blá blá ha ha ha! ― interrompeu uma voz cruel e zombeteira. ― Ha blá ha blá ha
blá! Qui qui quac ri ti hi hi! Oba oba gui gui di di desenlace!
Os Baudelaire ergueram os olhos de seus
livros para encarar o conde Olaf, que já avançava pela vigia para cima da mesa
de madeira. Atrás dele estava Esmé Squalor, com um sorriso escarninho por trás
do capuz de polvo, e as crianças ouviram os desagradáveis passos chapinhantes
dos horrorosos sapatos cor-derosa de Carmelita Spats, que enfiou a cara
ornamentada de corações no submarino e deu uma risadinha asquerosa.
― Estou
mais feliz que um porco comendo toucinho! ― exclamou o conde Olaf.
― Estou me coçando que nem um caucasiano
queimado de sol! Estou me sentindo mais alegre que uma cova recém-aberta! Estou
tão despreocupado que as pessoas preocupadas vão me bater com cacetetes da mais
pura e desenfreada inveja! Rá rá rá rabanete! Quando passei pelo calabouço para
ver como ia o meu capanga e descobri que vocês órfãos tinham fugido da raia,
fiquei com medo de que tivessem escapulido, ou que estivessem sabotando o meu submarino,
ou até enviando um telegrama de socorro! Mas eu devia saber que vocês são
bobocas demais para fazer algo de útil! Olhem para vocês, órfãos, lanchando e
lendo poesias, enquanto as pessoas poderosas e bonitas do mundo gargalham em triunfo!
Garga garga garganta na faca!
― Em
apenas alguns minutos ― jactou-se Esmé, ― vamos chegar ao Hotel Desenlace,
graças à nossa fedelhíssima tripulação. Re re re regozijo triunfal! O santuário
de C.S.C, logo se transformará em cinzas, assim como a sua casa, órfãos
Baudelaire!
― Vou
apresentar um recital especial da princesa bailarina sapateadora e veterinária
encantada ― bravateou Carmelita, ― em cima dos túmulos de todos aqueles
voluntários! ― Carmelita pulou pela vigia, seu tutu rosado esvoaçando como se
tentasse fugir, e juntou-se a Olaf em cima da mesa para dar início a uma dança
triunfal.
― C
é de 'coisinha fofa' ― cantou Carmelita, ― A é de 'adorável'! Ré de 'resplandecente'!
M é de 'belís...'!
― Vamos,
vamos, Carmelita ― disse o conde Olaf, com um sorriso tenso para a princesa
bailarina sapateadora e veterinária encantada. ― Que tal deixar o recital de
dança para mais tarde? Vou comprar para você todas as fantasias de dança do
mundo. Com C.S.C. fora do caminho, todas as fortunas do mundo serão minhas — a
fortuna Baudelaire, a fortuna Quagmire, a fortuna Andarré, a...
― Onde
está Fiona? ― perguntou Klaus, interrompendo o vilão. ― O que você fez com ela?
Se você a machucou...
― Se
eu a machuquei? ― perguntou o conde Olaf, os olhos brilhando muito forte embaixo
da única sobrancelha arrepiada. ― Se machuquei a Olhos de Triângulo? Por que eu
haveria de machucar uma menina esperta como aquela? Qui qui qui membro da
equipe! ― Com um de seus exaustivos gestos dramáticos, o conde Olaf apontou
para trás, e Esmé bateu os tentáculos em aplauso quando duas pessoas apareceram
na vigia. Uma era o homem de mãos de gancho, que parecia tão malvado como
sempre. E a outra era Fiona, que parecia ligeiramente diferente. Uma diferença
era a expressão no seu rosto, que parecia resignada, uma palavra que aqui
significa ‘’como se a micetologista tivesse desistido de derrotar o conde Olaf’’.
Mas outra diferença estava impressa bem no meio do uniforme escorregadio que
ela usava.
― Não
― disse Klaus, manso, olhando para a amiga.
― Não ― disse Violet com firmeza, e olhou para
Klaus.
― Não! ― disse Sunny, furiosa, e arreganhou os
dentes quando Fiona passou pela vigia e se postou ao lado do conde Olaf sobre a
mesa de madeira. Sua bota esbarrou nos livros de poesia que Violet e Klaus
tinham tirado do armário, inclusive os livros de Lewis Carroll e T. S. Eliot.
Alguns diriam que a poesia de Lewis Carroll era esdrúxula demais, uma palavra
que aqui significa ‘’cheia de absurdos engraçados’’ e outros se queixariam de
que a poesia de T. S. Eliot é obscura demais, que é o mesmo que dizer que ‘’complica
as coisas sem necessidade’’. Mas se por um lado não há consenso sobre os poetas
cujos livros repousavam sobre a mesa de madeira, por outro lado todos os
leitores nobres do mundo concordam que o poeta representado no uniforme de
Fiona era um escritor de talento limitado, que escreveu poesias canhestras e
tediosas sobre assuntos irremediavelmente sentimentais.
― Sim
― disse Fiona mansamente, e os órfãos Baudelaire ergueram os olhos para o retrato
de Edgar Guest, sorrindo no uniforme dela, e sentiram que a sorte estava virando
mais uma vez.
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)