Capítulo 13

"Rá!", exultou o conde Olaf. "Essa levou a palma!" Ele estava usando uma
expressão que aqui significa "Achei isso especialmente divertido e chocante!", muito embora
o catálogo subaquático de Dewey Dénouement contivesse uma lista de vinte e sete
palmas de ouro roubadas por Olaf. Com um olhar de pérfida alegria, ele esticou o braço
para baixo e fez um agrado na cabeça de Sunny Baudelaire, usando a mão que não
estava agarrando o lançador de arpões. "Depois de todo esse tempo, a órfã menorzinha
quer seguir o meu exemplo!", exclamou ele. "Eu sabia que tinha sido um bom tutor,
afinal!"
"Você não é um bom tutor", disse Violet, "e Sunny não é incendiaria. Minha irmã
não sabe o que está dizendo."
"Incendiar hotel", insistiu Sunny.
"Você está se sentindo bem, Sunny?", perguntou Klaus, examinando de perto os
olhos da irmã. Estava preocupado com a possibilidade de que o Mycelium Medusóide,
que ameaçara a vida da mais jovem dos Baudelaire havia poucos dias, estivesse
afetando a pobrezinha de alguma maneira sinistra. Klaus pesquisara um meio de diluir o
fungo traiçoeiro, mas agora se perguntava se a diluição fora insuficiente.
"Sinto ótima", disse Sunny. "Incendiar hotel."
"Essa é a minha garota!", gritou o conde Olaf. "Eu só queria que Carmelita tivesse
a sua garra! Com todas as incumbências que eu tinha, incendiar este hotel nem chegou a
me ocorrer. Mas, mesmo quando a gente está muito ocupado, deve sempre encontrar
tempo para o lazer."
"O seu lazer", disse a juíza Strauss, "não passa de vilania, conde Olaf. Os
Baudelaire podem querer aliar-se a você na perversidade, mas eu farei tudo o que estiver
ao meu alcance para detê-lo."
"Não há nada ao seu alcance", escarneceu Olaf. "Os seus colegas juizes são
meus camaradas, os seus colegas voluntários estão correndo vendados de um lado para
o outro no saguão deste hotel, e eu estou com o lançador de arpões."
"E eu tenho uma história abrangente da injustiça!", exclamou a juíza Strauss.
"Este livro deve servir para alguma coisa!"
O vilão não prosseguiu com seus argumentos: ele simplesmente apontou a arma
para a juíza.
"Vocês, órfãos, vão começar o fogo aqui na lavanderia", disse ele, "enquanto eu
me asseguro de que a juíza Strauss não vai nos impedir."
"Sim, senhor", disse Sunny e segurou as mãos dos irmãos.
"Não!", gritou a juíza Strauss.
"Por que está fazendo isso, Sunny?", perguntou Violet à irmã. "Você vai ferir
pessoas inocentes!"
"Por que você está ajudando o conde Olaf a incendiar este prédio?", perguntou
Klaus.
Sunny olhou para a lavanderia e depois ergueu os olhos para os irmãos. Em
silêncio, sacudiu a cabeça como se aquele não fosse o momento apropriado para discutir
tais assuntos.
"Me ajudem", disse ela, e não precisou dizer mais nada. Embora Violet e Klaus
achassem insondável a atitude da irmã, eles a seguiram para dentro da lavanderia
enquanto Olaf emitia uma sucinta risada de triunfo.
"Rá!", gritou o conde. "Prestem atenção, órfãos, que vou ensinar-lhes alguns dos
meus melhores truques. Primeiro, espalhem esses lençóis sujos pelo chão em toda parte.
Então peguem aqueles potes de produtos químicos extremamente inflamáveis e
despejem por cima de todos os lençóis."
Em silêncio, Violet espalhou o resto dos lençóis pelo piso de madeira da
lavanderia, enquanto Klaus e Sunny abriam os potes de plástico e despejavam o
conteúdo por cima dos lençóis. Um odor forte e mordente evolou-se da lavanderia,
enquanto as crianças se voltavam para o conde Olaf e perguntavam o que viria a seguir.
"O que vem a seguir?", perguntou Sunny.
"A seguir vêm um fósforo e um pouco de papel velho para atear o fogo",
respondeu Olaf e enfiou no bolso a mão que não estava segurando a arma.
"Eu sempre trago fósforos comigo", disse ele, "assim como os meus inimigos
sempre trazem o papel velho." Ele se inclinou para a frente e arrancou A odiosa avidez
pelas finanças das mãos da juíza Strauss. "Este livro serve, sim, para alguma coisa",
disse Olaf, e jogou-o no centro dos lençóis sujos, por pouco não acertando os irmãos que
caminhavam em direção ao corredor. O livro de Jerome Squalor se abriu ao cair, e as
crianças viram o que parecia ser um diagrama cuidadosamente desenhado, com setas e
linhas pontilhadas, com uma legenda de um parágrafo embaixo.
Os Baudelaire se inclinaram para a frente para ver se conseguiam ler o que o
especialista em injustiça escrevera e pegaram apenas a palavra "corredor" antes que Olaf
acendesse um fósforo e o jogasse com destreza profissional sobre a página. O papel
pegou fogo imediatamente e o livro começou a arder.
"Oh", Sunny disse baixinho e encostou-se em seus irmãos. Todos os três
Baudelaire, e os adultos que estavam com eles, olharam fixamente para a lavanderia em
silêncio.
Um livro sendo queimado é uma visão triste, muito triste, pois muito embora um
livro nada mais seja senão tinta e papel, a sensação é de que as idéias contidas nele
estão desaparecendo à medida que as páginas se transformam em cinzas, e a capa e a
encadernação — que é o termo usado para a costura e a cola que mantêm juntas as
páginas — vão ficando pretas e engrouvinhadas enquanto as chamas fazem seu trabalho
maligno. Quando alguém está queimando um livro, demonstra total desprezo por todos os
pensamentos que produziram as suas idéias, todo o trabalho aplicado nas suas palavras
e sentenças, e todos os contratempos que recaíram sobre o autor, desde a invasão dos
cupins que tentaram destruir suas anotações até a enorme pedra que alguém fez rolar
para cima do ilustrador enquanto ele estava sentado à beira do espelho d’água
aguardando a entrega do original.
A juíza Strauss olhou para o livro com uma carranca chocada, talvez pensando na
pesquisa de Jerome Squalor e em todos os vilões que ela poderia ter levado à justiça. O
conde Olaf olhou para o livro com um sorriso presunçoso, talvez pensando em todas as
outras bibliotecas que ele tinha destruído. Mas você e eu sabemos que não existe "talvez"
a respeito do que os órfãos Baudelaire estavam pensando enquanto olhavam para as
chamas que devoravam a história abrangente da injustiça. Violet, Klaus e Sunny estavam
pensando no incêndio que levara seus pais e seu lar, e que os largara no mundo para
esgrimir por si mesmos contra as adversidades, uma frase que aqui significa "ir primeiro
de tutor em tutor e depois de situação desesperada em situação desesperada, tentando
sobreviver e resolver os mistérios que pairavam como fumaça sobre as suas cabeças".
Os órfãos Baudelaire estavam pensando no primeiro incêndio que entrara em suas vidas
e se perguntavam se este seria o último.
"É melhor darmos o fora daqui", disse o conde Olaf quebrando o silêncio. "Pela
minha experiência, uma vez que as chamas atingem os produtos químicos, o fogo se
alastra muito depressa. Receio que o coquetel tenha de ser cancelado, mas se nos
apressarmos ainda há tempo para infectar os hóspedes deste hotel com o Mycelium
Medusóide antes de escapar. Rá! Aos elevadores!"
Girando o lançador de arpões nas mãos, o vilão marchou arrastando a juíza pelo
corredor abaixo, e os Baudelaire se apressaram em segui-lo. Quando chegaram ao
elevador, as crianças olharam para um aviso afixado perto de um dos vasos ornamentais.
O aviso era idêntico ao que estava afixado no saguão, e era um aviso que você mesmo
provavelmente já viu. "EM CASO DE INCÊNDIO", lia-se em letras elegantes, "USE AS
ESCADAS, NÃO USE O ELEVADOR."
"Escadas", disse Sunny apontando para o aviso.
"Ignore isso", disse Olaf desdenhosamente, apertando o botão para chamar o
elevador.
"Perigoso", alertou Sunny. "Use as escadas."
"Você pode ter tido a idéia de incendiar o hotel", disse o conde Olaf, "mas ainda
sou eu quem manda aqui, neném! Não conseguiremos chegar até o fungo a tempo se
formos pelas escadas! Vamos pegar o elevador!"
"Droga", disse Sunny baixinho e franziu a testa, pensativa. Violet e Klaus olharam
para a irmã curiosos, se perguntando por que uma criança que não se importava em
incendiar um hotel haveria de se incomodar com uma coisa como um elevador. Então
Sunny olhou para os irmãos e pronunciou uma palavra que deixou tudo claro.
"Prelúdio", disse ela, e um momento depois seus irmãos sorriram.
"O quê?", Olaf perguntou bruscamente e socou o botão várias vezes seguidas, o
que nunca adianta nada.
"O que a minha irmã quer dizer", disse Violet, "é que ela gostou muito da aula
sobre como provocar incêndios", mas não é nada disso que a mais jovem dos Baudelaire
queria dizer. Com "Prelúdio", seus irmãos sabiam, Sunny se referia ao Hotel Prelúdio, e
ao fim de semana que a família Baudelaire inteira passara lá. Como Kit Snicket
mencionara, o Hotel Prelúdio era um lugar encantador, e fico feliz em contar que ele ainda
está em pé, como uma pequena bênção, e que o seu salão de baile ainda tem os
famosos candelabros em forma de enormes medusas que se movem para cima e para
baixo no ritmo da música tocada pela orquestra, e que a livraria do saguão ainda privilegia
as obras de novelistas americanos da escola realista, e a piscina ao ar livre ainda é bonita
como sempre, com o seu reflexo das janelas do hotel tremulando quando alguém
mergulha para nadar.
Os órfãos Baudelaire, porém, não estavam se lembrando dos candelabros, nem
da livraria, nem mesmo da piscina, onde Sunny aprendera pela primeira vez a soltar
bolhas. Eles estavam se lembrando de uma diabrura que seu pai lhes ensinara quando se
encontrava em um de seus estados de ânimo esdrúxulos, a qual pode ser feita em
qualquer elevador. A diabrura, uma palavra que aqui significa "brincadeira que se faz com
alguém com quem você divide o espaço de um elevador", funciona melhor no momento
em que você está para sair do elevador e os seus colegas passageiros vão continuar
subindo para um andar mais alto. A mãe dos Baudelaire fizera objeções quanto ao pai
ensinar esse tipo de diabrura a eles, pois a considerava inconveniente, mas o pai
ressaltou que não era mais inconveniente do que fazer truques de magia com os
pãezinhos servidos às refeições, coisa que a mãe fizera naquela mesma manhã no
restaurante do hotel, e ela concordou com relutância em participar da diabrura. É claro
que este momento em particular na vida dos Baudelaire não era o melhor para uma
diabrura, porém Violet e Klaus compreenderam de imediato o que a irmã tinha em mente,
e quando as portas deslizantes se abriram e o conde Olaf marchou para dentro do
elevador, os três Baudelaire o seguiram e apertaram todos os botões, sem exceção.
Quando o pai dos Baudelaire aplicara essa diabrura, saindo em seguida do elevador, o
resultado fora que a passageira remanescente, uma mulher desagradável chamada
Eleanora, vira-se forçada a visitar cada um dos andares a caminho do seu quarto, mas ali
no Hotel Desenlace a diabrura serviu a uma dupla finalidade, uma expressão que aqui
significa "capacitou os Baudelaire a fazer duas coisas ao mesmo tempo".
"O que estão aprontando?", berrou Olaf. "Nunca vou conseguir chegar ao
Mycelium Medusóide a tempo de envenenar todo mundo!"
"Vamos conseguir avisar o maior número possível de pessoas que o prédio está
em chamas!", exclamou a juíza Strauss.
"Dupla finalidade", disse Sunny e compartilhou um sorrisinho com os irmãos no
momento em que o elevador chegou ao saguão e abriu as portas. O enorme salão
abobadado estava quase vazio, e os Baudelaire puderam ver que todos haviam seguido o
conselho dos dois juizes malfazejos da Corte Suprema, ou seja, continuavam a
perambular pelo hotel com os olhos vendados.
"Fogo!", gritou Violet, sabendo que as portas se fechariam em um instante.
"Atenção todo mundo! Há um incêndio no hotel! Por favor, saiam imediatamente!"
O homem com barba mas sem cabelo estava em pé ali perto, com uma das mãos
sobre o ombro de Jerome Squalor para poder empurrar o especialista em injustiça de um
lado para outro.
"Fogo?", disse ele com sua estranha voz rouca. "Bom trabalho, Olaf!"
"O que você quer dizer com bom trabalho?", perguntou Jerome, o cenho franzido
aparecendo embaixo da venda.
"Eu quero dizer 'Lá vai, Olaf!', respondeu o homem apressadamente, empurrando
Jerome na direção do elevador. "Capturem-no! Ele precisa ser levado às autoridades!"
"Olaf está aqui?", perguntou provavelmente Frank, que estava tateando ao longo
da parede, junto com seu irmão. "Eu vou capturá-lo!"
"Onde estão os Baudelaire?", perguntou provavelmente Ernest. "Eu vou
capturá-los!"
"No elevador!", berrou a mulher com cabelo mas sem barba do outro lado do
saguão, no entanto as portas deslizantes já estavam se fechando.
"Chamem o corpo de bombeiros!", gritou Violet desesperada.
"Qual deles?", foi a resposta, mas as crianças não souberam dizer se viera de
Frank ou de Ernest, e as portas se fecharam sobre aquele último vislumbre dos vilões e
voluntários antes de o elevador começar a sua ascensão ao segundo andar.
"Aqueles juizes prometeram que se eu aguardasse até amanha veria todos os
meus inimigos destruídos", resmungou o conde Olaf, "e agora estão tentando me capturar.
Eu sabia que eles iriam me desapontar algum dia."
Os Baudelaire não tiveram tempo para salientar que Olaf também desapontara os
juizes ao planejar envenená-los com o Mycelium Medusóide, assim como todos no
saguão, porque imediatamente o elevador parou no segundo andar e abriu as portas.
"Há um incêndio no hotel!", gritou Klaus para o corredor. "Saiam todos
imediatamente!"
"Um incêndio?", disse Esmé Squalor. Os Baudelaire ficaram surpresos ao ver que
aquela pérfida mulher ainda estava usando a sua venda, mas talvez ela tivesse decidido
que pedaços de pano preto eram in. "Quem disse isso?"
"Foi Klaus Baudelaire", disse Klaus Baudelaire. "Vocês precisam sair do hotel!"
"Não dêem ouvidos àquele bisbórria!", gritou Carmelita Spats, que estava
passando a mão em cima de um vaso ornamental. "Ele está só tentando escapar de nós!
Vamos tirar as nossas vendas e espiar!"
"Não tirem as suas vendas!", gritou o conde Olaf. "Esses Baudelaire são
acusados de desacato ao tribunal, e estão tentando enganar vocês para se juntar a eles!
Não há nenhum incêndio! Não saiam do hotel em hipótese alguma!"
"Nós não estamos enganando vocês!", disse Klaus. "É Olaf quem está enganando
vocês! Por favor, acreditem em nós!"
"Eu não sei em quem acreditar", disse Esmé, sarcástica. "Vocês, órfãos, são tão
desonestos quanto o meu ex-namorado."
"Deixem-nos em paz!", ordenou Carmelita dando um esbarrão na parede.
"Podemos encontrar o nosso próprio caminho!"
As portas se fecharam antes que os Baudelaire pudessem discutir mais, e de fato
as crianças nunca mais discutiram com nenhuma daquelas duas fêmeas desagradáveis.
Um momento depois o elevador chegou ao terceiro andar, e Sunny levantou a voz para
ser ouvida por todos os que estavam no corredor, fossem eles pérfidos ou nobres.
"Fogo!", gritou ela. "Use as escadas. Não use o elevador!"
"Sunny Baudelaire?", chamou o sr. Poe, reconhecendo a voz da criança. O
banqueiro, voltado para uma direção inteiramente errada, segurava um lenço branco na
frente da sua venda preta. "Não acrescente falso alarme de incêndio à sua lista de crimes!
Você já é culpada de desacato ao tribunal, e talvez de assassinato!"
"Não é falso!", exclamou a juíza Strauss. "Há realmente um incêndio, senhor Poe!
Saia deste hotel!"
"Não posso sair", retrucou o sr. Poe, tossindo no seu lenço. "Ainda sou
encarregado dos assuntos dos Baudelaire, de seus pais e da fort..."
As portas do elevador se fecharam antes que o sr. Poe pudesse terminar, e os
Baudelaire foram afastados do banqueiro uma última vez, e a cada parada do elevador,
lamento dizer, ocorreu mais ou menos a mesma coisa. Os Baudelaire viram a sra. Bass
no terceiro andar, ainda usando a sua pequena peruca loira como um gorro de neve em
cima do pico de uma montanha, e a venda esticada por cima da sua pequena máscara
estreita, e viram o sr. Remora, que perambulava pelo sétimo andar com o vice-diretor
Nero. Viram Geraldine Julienne, que usava o seu microfone como alguns cegos usam
uma bengala, e viram Charles e Senhor, que estavam de mãos dadas para não se perder
um do outro, e viram Hugo, e Colette, e Kevin, que seguravam o papel pega-pássaros que
Klaus dependurara do lado de fora da janela da sauna, e viram o sr. Lesko discutindo com
a sra. Morrow, e viram um homem com um violão fazendo amizade com uma mulher de
chapéu em forma de corvo, e viram muitas pessoas que não reconheceram, fossem
voluntários ou vilões, que vagavam pelos corredores do hotel capturando qualquer um
que achassem suspeito.
Algumas daquelas pessoas acreditaram nos Baudelaire quando eles falaram do
incêndio, e algumas daquelas pessoas acreditaram no conde Olaf quando ele falou que
os Baudelaire estavam mentindo, e algumas daquelas pessoas acreditaram na juíza
Strauss quando ela falou que o conde Olaf estava mentindo quando disse que os
Baudelaire estavam mentindo quando falaram do incêndio. Mas a parada do elevador em
cada andar do hotel era muito breve, e as crianças só viram de relance cada uma dessas
pessoas. Elas ouviram a sra. Bass resmungar alguma coisa sobre um carro para fuga, e
ouviram o sr. Remora perguntando a si mesmo alguma coisa sobre bananas fritas.
Ouviram Nero se preocupando com o estojo do seu violino, e Geraldine guinchando sobre
manchetes, e ouviram Charles e Senhor altercando sobre os incêndios, se eram bons ou
não para a indústria madeireira. Ouviram Hugo perguntando se o planejamento do hors
d'oeuvre ainda estava valendo, e ouviram Colette perguntando a respeito de depenar
corvos, e ouviram Kevin se queixando de que não sabia se devia segurar o papel
pega-pássaros na mão direita ou na mão esquerda, e ouviram o sr. Lesko insultando a sra.
Morrow, e o homem barbado cantando uma canção para a mulher de chapéu de corvo, e
ouviram um homem chamando Bruce e uma mulher chamando a mãe, e dúzias de
pessoas cochichando para e gritando com, discutindo sobre e concordando a respeito de,
iradamente acusando e humildemente defendendo, furiosamente elogiando e gentilmente
insultando dúzias de outras pessoas, tanto dentro como fora do Hotel Desenlace, cujos
nomes os Baudelaire reconheciam, tinham esquecido e nunca tinham ouvido antes.
Cada história tinha a sua história, e cada história de história era insondável na
curta jornada dos órfãos Baudelaire, e muitas das histórias de histórias são insondáveis
para mim, mesmo depois de todos esses anos solitários e toda essa pesquisa solitária.
Talvez algumas dessas histórias sejam mais claras para você, porque você espiou as
pessoas envolvidas. Talvez a sra. Bass tenha mudado de nome e more perto de você, ou
talvez o nome do sr. Remo-ra seja o mesmo, e ele more longe. Talvez Nero trabalhe
agora como funcionário de uma mercearia, ou Geraldine Julienne lecione artes e ofícios.
Talvez Charles e Senhor não sejam mais sócios, e você tenha tido a oportunidade de
estudar a fisionomia de um deles quando se sentou na sua frente em um ônibus, ou talvez
Hugo, Colette e Kevin ainda sejam camaradas, e você tenha seguido essas pessoas
insondáveis depois de notar que uma delas usava igualmente as duas mãos. Talvez o sr.
Lesko agora seja seu vizinho, ou a sra. Morrow agora seja sua irmã, ou sua mãe, ou sua
tia, ou esposa, ou até seu marido. Talvez o barulho que você ouve do lado de fora da sua
porta seja um homem barbado tentando entrar pela janela, ou talvez seja uma mulher
com um chapéu em forma de corvo chamando um táxi. Talvez você tenha avistado os
gerentes do Hotel Desenlace, ou os juizes da Corte Suprema, ou os garçons do Café
Salmonela, ou do Palhaço Ansioso, ou talvez você tenha conhecido um especialista em
injustiça, ou tenha se tornado um você mesmo.
Talvez as pessoas da sua insondável vida, e suas insondáveis histórias, sejam
claras para você enquanto você abre o seu caminho no mundo, mas quando o elevador
parou pela última vez, e as portas deslizantes se abriram para revelar a cobertura
inclinada do Hotel Desenlace, os Baudelaire sentiram como se estivessem em delicado
equilíbrio sobre uma misteriosa e desconcertante pilha de mistérios insondáveis. Eles não
sabiam quem iria sobreviver ao incêndio que ajudaram a provocar, e quem iria perecer.
Não sabiam quem achava que eles eram voluntários e quem achava que eles eram vilões,
ou quem acreditava que eles eram inocentes e quem acreditava que eles eram culpados.
E não sabiam se as suas próprias observações, incumbências e ações significavam que
eles eram nobres, ou perversos, ou alguma coisa no meio. Quando saíram do elevador e
caminharam através do salão de bronzeamento da cobertura, os órfãos Baudelaire
sentiram como se a sua vida inteira fosse como um livro repleto de informações cruciais
que fora queimado, como a história abrangente da injustiça reduzida a cinzas em um
incêndio que a cada segundo assumia maiores proporções.
"Olhem!", gritou o conde Olaf, inclinando-se por cima da beirada do hotel e
apontando para baixo. Os Baudelaire olharam, esperando ver a enorme, calma superfície
da lagoa refletindo o Hotel Desenlace de volta para eles como um espelho gigantesco.
Porém, o ar estava maculado pelas manchas de fumaça espessa e negra que se
derramavam das janelas do subsolo quando o fogo começou a se alastrar, e a superfície
da lagoa parecia uma série de espelhos diminutos, todos quebrados em formatos
estranhos e insondáveis. Aqui e ali, entre a fumaça e os espelhos, as crianças podiam ver
os vultos pequeninos correndo para cá e para lá, mas não sabiam dizer se eram as
autoridades que viam no chão, ou pessoas que estavam no hotel e que agora corriam
para escapar das chamas.
Olaf continuava a olhar para baixo, e os Baudelaire não sabiam dizer se ele
parecia satisfeito ou desapontado.
"Graças a vocês, órfãos", disse ele, "é tarde demais para destruir todo mundo
com o Mycelium Medusóide, mas pelo menos conseguimos começar um incêndio."
A juíza Strauss ainda olhava para a fumaça que jorrava das janelas e subia para o
céu, e sua expressão era igualmente insondável.
"Graças a vocês, órfãos", disse ela mansamente para os Baudelaire, "este hotel
será destruído pelo fogo, mas pelo menos impedimos Olaf de liberar o fungo."
"O fogo não está ardendo muito depressa", disse Olaf. "Muitas pessoas vão
escapar."
"O fogo também não está ardendo devagar", disse a juíza Strauss. "Algumas
pessoas não vão conseguir."
Os órfãos Baudelaire se entreolharam, mas antes que alguém pudesse dizer mais
alguma coisa, o prédio inteiro tremeu, e as crianças tiveram de lutar para manter o
equilíbrio sobre a cobertura inclinada. As reluzentes esteiras de bronzeamento rolaram
através do salão, e a água da piscina fustigou o costado do grande barco de madeira,
encharcando a figura de proa — um polvo atacando um homem em traje de mergulho.
"O fogo está enfraquecendo as fundações estruturais do edifício", disse Violet.
"Temos de sair daqui", disse Klaus.
"De pronto", disse Sunny.
Sem mais palavra, os Baudelaire desviaram-se dos adultos e marcharam
rapidamente para o barco. Passando a pilha de lençóis para uma só mão, Violet tirou o
seu chapéu de concierge, enfiou a outra mão no bolso e encontrou a fita que Kit Snicket
lhe dera, com a qual prendeu o cabelo. Klaus enfiou a mão no bolso e encontrou o seu
livro de lugar-comum, o qual começou a folhear. Sunny não enfiou a mão no bolso;
pensativa, raspou os dentes afiados uns nos outros, como se suspeitasse que eles
poderiam ser necessários.
Violet examinou criticamente o barco.
"Vou prender o drag chute à figura de proa", disse ela. "Acho que vou conseguir
dar um nó Língua do Diabo em volta do capacete do mergulhador." Ela fez uma pequena
pausa. "E onde o Mycelium Medusóide está escondido", disse ela. "O conde Olaf o
guardou lá, onde ninguém pensaria em procurar."
Klaus examinou criticamente as suas anotações.
"Vou mudar o ângulo da vela de modo a captar o vento", disse ele. "Se não for
assim, um objeto pesado como este cairia direto dentro da água." Ele também fez uma
pequena pausa. "Foi o que aconteceu com o açucareiro", disse ele. "Dewey Dénouement
deixou todo mundo pensar que ele tinha caído dentro da lavanderia, para que ninguém o
encontrasse na lagoa."
"Espátulas como remos", disse Sunny, apontando para os implementos que Hugo
usara para virar os hóspedes.
"Boa idéia", Violet concordou e fixou o olhar nas águas cinzentas e revoltas do
mar. "Talvez os nossos amigos nos encontrem. Hector deve estar voando para cá, com
Kit Snicket e os Quagmire."
"E Fiona", acrescentou Klaus.
"Não", disse Sunny.
"O que você quer dizer?", perguntou Violet, passando cautelosamente da beira da
piscina para o costado do barco, onde começou a escalar uma escada de corda em
direção à figura de proa.
"Eles disseram que chegariam na quinta-feira", disse Klaus, ajudando Sunny a
içar-se a bordo e depois embarcando ele mesmo. O convés era mais ou menos do
tamanho de um cobertor grande, grande o suficiente para conter os Baudelaire e talvez
mais um ou dois passageiros. "Agora é quarta-feira à tarde."
"O incêndio", disse Sunny e apontou para a fumaça que subia para o céu.
Os dois Baudelaire mais velhos engasgaram. Tinham quase esquecido que Kit
lhes contara que estaria observando o céu, procurando um sinal que cancelaria o
encontro de quinta-feira.
"Foi por isso que você pensou em atear o fogo", disse Violet amarrando
apressadamente os lençóis em volta da figura de proa. "É um sinal."
"C.S.C. o verá", disse Klaus, "e saberá que todas as suas esperanças se
transformaram em fumaça."
Sunny assentiu com a cabeça.
"O último lugar seguro", disse ela, "não é mais seguro."
Foi uma frase impressionante para a mais jovem dos Baudelaire, porém uma
frase triste.
"Talvez os nossos amigos nos encontrem assim mesmo", disse Violet. "Eles
podem ser as últimas pessoas nobres que conhecemos."
"Se eles são realmente nobres", disse Klaus, "podem não querer ser nossos
amigos."
Violet assentiu, e seus olhos se encheram de lágrimas.
"Você tem razão", admitiu ela. "Nós matamos um homem."
"Acidente", disse Sunny com firmeza.
"E incendiamos um hotel", disse Klaus.
"Sinal", disse Sunny.
"Tínhamos boas razões", disse Violet, "mas ainda assim fizemos coisas más."
"Queremos ser nobres", disse Klaus, "mas tivemos de ser pérfidos."
"Nobres suficiente", disse Sunny, mas o prédio tremeu de novo, como que
sacudindo a cabeça em desacordo. Violet se agarrou à figura de proa, e Klaus e Sunny se
agarraram um ao outro enquanto o barco colidia com as laterais da piscina.
"Ajudem-nos!", gritou Violet para os adultos, que ainda estavam olhando para a
fumaça ascendente. "Agarrem aquelas espátulas e empurrem o barco para a beira da
cobertura!"
"Não fique me dando ordens!", rosnou Olaf, que de toda maneira seguiu a juíza
até o canto da cobertura onde estavam as espátulas, seus espelhos refletindo o sol da
tarde e o céu que escurecia de tanta fumaça. Cada adulto agarrou uma espátula e
começou a cutucar o barco da mesma forma que você poderia cutucar uma aranha que
quer tirar de dentro da sua banheira. Bum! Bum! O veleiro bateu contra a beirada da
piscina e depois forçou passagem para fora dela, de onde deslizou lentamente, com um
ruído forte de atrito, até a beirada oposta da cobertura. Os Baudelaire se seguraram firme
enquanto a metade dianteira do barco continuou a deslizar para além dos espelhos do
salão, até que ele ficasse suspenso acima de nada a não ser o ar fuma-cento. O barco
oscilou para a frente e para trás em um equilíbrio delicado entre a cobertura do hotel e o
mar lá embaixo.
"Subam a bordo!", gritou Violet, dando um último puxão nos seus nós.
"É claro que vou subir a bordo!", anunciou Olaf, estreitando os olhos para o
capacete da figura de proa. "Sou o capitão deste barco!" Ele atirou a sua espátula para o
convés, por pouco não atingindo Klaus e Sunny, e então pulou para dentro da
embarcação, fazendo-a balançar violentamente na beira do edifício.
"Você também, juíza Strauss!", chamou Klaus, mas a juíza apenas pôs de lado a
sua espátula e olhou tristemente para as crianças.
"Não", disse ela, e as crianças viram que ela estava chorando. "Eu não vou. Não
está certo."
"O que mais podemos fazer?", disse Sunny, mas a juíza Strauss apenas sacudiu
a cabeça.
"Eu não vou fugir da cena do crime", disse ela. "Vocês, crianças, devem vir
comigo, e explicaremos tudo às autoridades."
"Elas podem não acreditar em nós", disse Violet, preparando o drag chute, "ou
poderá haver inimigos à espreita em suas fileiras, como os vilões na Corte Suprema."
"Talvez", disse a juíza, "mas isso não é desculpa para fugir."
O conde Olaf deu uma olhada desdenhosa para a sua antiga vizinha, depois
voltou-se para os Baudelaire.
"Ela que queime até ficar crocante, se é isso que deseja", disse ele, "mas está na
hora de partirmos."
A juíza Strauss respirou fundo, então deu um passo à frente e pôs a mão em cima
da revoltante escultura de madeira, como se pretendesse arrastar o barco inteiro de volta
ao hotel.
"Há pessoas que afirmam que o comportamento criminoso é o destino das
crianças que vêm de um lar desfeito", disse ela entre lágrimas. "Não façam com que este
seja o seu destino, irmãos Baudelaire."
Klaus estava encostado no mastro, ajustando os controles da vela.
"Este barco", disse ele, "é o único lar que nós temos."
"Estive acompanhando vocês esse tempo todo", disse ela, segurando a figura de
proa com ainda mais força. "Sempre estiveram fora do meu alcance por muito pouco,
desde o momento em que o senhor Poe os levou embora do teatro no carro dele, até o
momento em que Kit Snicket os levou através das sebes no táxi dela. Não vou deixá-los ir,
irmãos Baudelaire!"
Sunny deu um passo na direção da juíza, e por um momento seus irmãos
pensaram que ela ia sair do barco. Entretanto, ela simplesmente olhou a juíza nos olhos
lacrimosos e deu-lhe um sorriso muito triste.
"Adeus", disse ela, depois abriu a boca e mordeu a mão da juíza. Com um grito de
dor e frustração, a juíza Strauss soltou a figura de proa, e o prédio tremeu de novo,
fazendo-a despencar no chão e o barco despencar da cobertura, bem no momento em
que o relógio do Hotel Desenlace anunciava a hora pela última e derradeira vez.
Nadabom! Nadabom! Nadabom! O relógio bateu três vezes, e os três Baudelaire
gritaram quando foram arremessados em direção ao mar — até o conde Olaf gritou
"Mamãe!" quando pareceu, por um terrível instante, que a sorte deles se acabara afinal, e
que o barco não iria sobreviver à queda, devido à força da gravidade. Então Violet soltou
os lençóis sujos, e o drag chute ondeou no ar, quase parecendo mais uma mancha de
fumaça contra o céu; Klaus manobrou a vela de modo a captar o vento, e o barco
interrompeu sua queda e começou a deslizar, assim como um pássaro capta o vento e
descansa as asas por alguns momentos, especialmente quando está cansado de tanto
carregar uma coisa pesada e importante.
Por um instante, o barco desceu flutuando pelo ar, como em uma história mágica.
E, mesmo com todo o pânico e medo que sentiam, os Baudelaire não puderam deixar de
maravilhar-se com o modo como estavam escapando. Finalmente, com um portentoso
tchibum! o barco pousou no oceano, a uma boa distância do hotel em chamas. Por outro
instante terrível, a sensação foi de que o barco iria afundar na água, exatamente como
Dewey Dénouement afundara na lagoa, guardando o seu catálogo subaquático e todos os
seus segredos, e deixando a mulher que ele amava grávida e transtornada. Mas a vela
captou o vento, a figura de proa se aprumou, e Olaf pegou a sua espátula e a entregou a
Sunny.
"Comece a remar", ordenou ele, e em seguida se pôs a tagarelar, os olhos
brilhando muito. "Por fim vocês estão nas minhas garras, órfãos", disse ele. "Estamos
todos no mesmo barco."
Os Baudelaire olharam para o vilão e depois para a praia. Por um segundo se
sentiram tentados a pular borda afora e nadar de volta para a cidade e para longe de Olaf.
Porém, quando olharam para a fumaça que jorrava das janelas do hotel, e para as
chamas que voluteavam em torno dos lírios e dos musgos que alguém cultivara sobre as
paredes com tanto cuidado, deram-se conta de que em terra seria igualmente perigoso.
Eles viram as figuras diminutas das pessoas em pé do lado de fora do hotel, apontando
agressivamente para o mar, e viram o edifício tremer. Parecia que logo o Hotel Desenlace
iria desmoronar, e as crianças queriam estar bem longe dali. Dewey lhes prometera que
não precisariam mais estar no mar, no entanto, naquele momento, o mar era o último
lugar seguro para os Baudelaire.
Richard Wright, um romancista americano da escola realista, formula uma famosa
pergunta insondável em seu conhecido romance Filho nativo. "Quem sabe quando algum
ligeiro choque", pergunta ele, "perturbando o delicado equilíbrio entre ordem social e
aspiração sequiosa, fará com que desmoronem os arranha-céus de nossas cidades?" É
uma pergunta difícil de ler, quase como se estivesse em algum tipo de código, mas depois
de muita pesquisa fui capaz de ver um sentido em suas misteriosas palavras. "Ordem
social", por exemplo, é uma expressão que pode se referir aos sistemas que as pessoas
usam para organizar suas vidas, como o Sistema Decimal Dewey, ou os procedimentos
vendados da Corte Suprema. E "aspiração sequiosa" é uma expressão que pode se
referir àquilo que as pessoas querem, como a fortuna dos Baudelaire, ou o açucareiro, ou
um lugar seguro que órfãos solitários e exaustos possam chamar de lar. Portanto, quando
o sr. Wright formula a sua pergunta, ele pode estar se perguntando se um pequeno
evento, como uma pedra caindo em uma lagoa, pode causar ondulações nos sistemas do
mundo, fazendo tremer as coisas que as pessoas querem, até que todos esses tremores
e ondulações derrubem algo enorme, como um edifício.
Os Baudelaire, é claro, não tinham um exemplar do Filho nativo no barco de
madeira que lhes servia de novo lar, mas, enquanto olhavam através da água para o
Hotel Desenlace, fizeram a si mesmos uma pergunta não muito diferente da que foi feita
pelo sr. Wright. Violet, Klaus e Sunny pensaram em todas as coisas, grandes e pequenas,
que fizeram. Eles pensaram em suas observações como flâneurs, que deixaram tantos
mistérios sem solução. Eles pensaram em todas as suas incumbências como concierges,
que tantos problemas provocaram. E eles se perguntaram se ainda eram os nobres
voluntários que queriam ser, ou se, enquanto o incêndio abria seu caminho maligno
através do hotel e o edifício ameaçava desmoronar, era seu destino se tornar algo
diferente. Os órfãos Baudelaire estavam no mesmo barco que o conde Olaf, o notório
vilão, e perscrutavam o mar, onde esperavam poder encontrar seus nobres amigos, e se
perguntavam o que mais poderiam fazer, e quem poderiam vir a ser.

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