Capítulo 14
Para
Beatrice —
Nós somos
como barcos navegando pela noite — especialmente
você.
O último registro na letra dos pais Baudelaire em Desventuras
em Série diz o seguinte:
Como suspeitávamos,
vamos ser náufragos mais uma vez. Os outros acreditam que a ilha deveria ficar
longe da perfídia do mundo, e portanto este lugar seguro é perigoso demais para
nós. Vamos partir em um barco que B construiu e batizou com o meu nome. Estou
de coração partido, mas já estive de coração partido antes, e isto pode ser o
melhor que posso esperar. Não podemos realmente proteger nossas crianças, aqui
ou em qualquer outro lugar, portanto pode ser melhor para nós e melhor para o
bebê se imergirmos no mundo. Aliás, se for menina vamos chamá-la de
Violet, e se for menino vamos chamá-lo de Lemony.
Os órfãos Baudelaire leram esse registro uma noite depois
de um jantar de salada de algas, bolinhos de caranguejo e cordeiro assado, e
quando Violet acabou de ler todas as três crianças riram. Até a filhinha de
Kit, sentada no joelho de Sunny, soltou um gritinho alegre.
— Lemony? — repetiu Violet. — Eles
teriam me chamado de Lemony? De onde tiraram essa ideia?
— De alguém que morreu, presumivelmente — disse Klaus. — Lembra-se do costume da
família?
— Lemony Baudelaire —
experimentou Sunny, e a criancinha riu de novo. A filha de Kit estava com quase
um ano e se parecia muito com a mãe.
— Eles nunca nos contaram sobre
um Lemony — disse Violet, e passou as mãos pelos
cabelos. Ela estivera consertando o sistema de filtragem de água o dia inteiro
e estava muito cansada.
Klaus serviu mais água-de-coco para as irmãs, que as
crianças preferiam beber fresca.
— Eles não nos contaram uma porção de coisas — disse ele. — O que você acha que
significa ''já estive de coração partido antes''?
— Você sabe o que significa ''coração partido'' — disse Sunny, e então
concordou com a cabeça quando a bebezinha murmurou ''Abelardo''. A mais jovem dos Baudelaire era a melhor
em decifrar o modo de falar um tanto inusitado da criancinha.
— Acho que ela quer dizer que
devemos partir — disse Violet.
— Deixar a ilha? — disse Klaus. —
E ir para onde?
— Qualquer lugar — disse Violet.
— Não podemos ficar aqui para sempre. Aqui há tudo o que
possamos precisar, mas não está certo ficar assim tão longe do mundo.
— E sua perfídia? — perguntou Sunny.
— Seria possível pensar que já tivemos perfídia suficiente para toda uma vida —
disse Klaus, — mas a vida é mais do que segurança.
— Nossos pais partiram — disse
Violet. — Talvez devamos honrar sua vontade.
— Chekrio? — disse a bebê, e os Baudelaire a examinaram por um momento. A filha de Kit estava
crescendo muito depressa, e explorava avidamente a ilha a cada oportunidade.
Todos os três irmãos tinham de ficar de olho nela, em especial no arboreto, que
ainda continha pilhas de detritos mesmo depois de um ano de catalogação. Muitos
dos itens da enorme biblioteca eram perigosos para criancinhas, mas a pequenina
nunca se machucara seriamente. Ela também ouvira falar em perigo, sobretudo no registro de crimes,
desatinos e desventuras da humanidade que os Baudelaire liam em voz alta todas
as noites, muito embora eles não tivessem lhe contado a história
inteira. Ela não sabia de todos os segredos dos Baudelaire, e de fato havia
alguns que nunca saberia.
— Não
podemos nos abrigar aqui para sempre — disse Klaus. — De qualquer modo, a
perfídia virá dar nestas praias.
— Estou surpresa que ainda não tenha acontecido — disse Violet. — Uma profusão de destroços de
naufrágios foi arrastada para cá, mas ainda não vimos um único náufrago.
— Se partirmos — perguntou Sunny,
— o que encontraremos?
Os Baudelaire silenciaram. Como nenhum náufrago
chegara naquele ano, eles tinham poucas notícias do mundo além de alguns
fragmentos de jornal que sobreviveram a uma terrível tempestade. A julgar pelas
matérias, ainda havia vilões à solta no mundo, embora uns poucos voluntários
também parecessem ter sobrevivido a todos os problemas que trouxeram os irmãos
à ilha. As matérias, no entanto, eram d' O Pundonor Diário, por isso as
crianças não podiam ter certeza se eram acuradas. Pelo tanto que sabiam, os
ilhéus tinham espalhado o Mycelium Medusóide, e o mundo inteiro poderia
estar envenenado. Isso, porém, parecia improvável, pois o mundo, que se saiba,
não importa o quão monstruosamente pudesse ter sido ameaçado, nunca sucumbiu
por completo. Os Baudelaire também pensaram em todas as pessoas que esperavam
ver de novo, muito embora, lamentavelmente, isso também parecesse improvável,
se bem que não impossível.
— Não
saberemos até chegar lá — disse Violet.
— Bem, se vamos partir, é melhor nos apressarmos — disse Klaus. O Baudelaire do meio levantou-se
e caminhou até o banco, onde ele tinha construído um calendário que acreditava
ser razoavelmente acurado. — A plataforma costeira vai inundar em breve.
— Não
vamos precisar de muita coisa — disse Sunny. — Temos uma boa quantidade de
alimentos não perecíveis.
— Eu cataloguei uma boa
quantidade de equipamento naval — disse Violet.
— Eu tenho alguns bons mapas —
disse Klaus, — mas devíamos também deixar espaço para
alguns dos nossos detritos favoritos. Há alguns romances de P. G. Wodehouse que
eu estava pretendendo ler.
— Projetos — disse Violet,
pensativa.
— Meu batedor — disse Sunny,
olhando para o item que Sexta-Feira escamoteara para ela muito tempo atrás, e que provara ser um utensílio muito útil, mesmo depois que a bebê
superara a fase de comida batida.
— Bolo! — gritou a criancinha, e
seus tutores riram.
— Levamos isto? — perguntou
Violet, erguendo o livro que tinha lido em voz alta.
— Acho que não — disse Klaus. — Talvez chegue algum outro náufrago, e continue a
história.
— De qualquer modo — disse Sunny,
— ele terá alguma coisa para ler.
— Então estamos realmente partindo — disse Violet, e eles realmente estavam.
Depois de uma boa noite de sono, os Baudelaire começaram a se preparar para a
viagem, e era verdade que eles não precisavam de muita coisa. Sunny conseguiu
acondicionar uma grande quantidade de comida que seria perfeita para a jornada,
e até deu um jeito de incluir sub-repticiamente alguns luxos, como um pouco de
ovas que ela colhera de peixes locais e uma torta de maçã um pouco amarga mas
ainda assim saborosa. Klaus enrolou diversos mapas em um cilindro caprichado e
acrescentou vários itens úteis e interessantes da vasta biblioteca. Violet
adicionou alguns projetos e equipamentos ao monte, e então selecionou um barco
entre todos os destroços de naufrágios que estavam no arboreto. A mais velha dos Baudelaire ficou surpresa
ao descobrir que o barco que parecia ser o melhor para a tarefa era o mesmo em
que eles tinham chegado, embora, depois de terminar os reparos e prepará-lo para a viagem, ela afinal não tivesse ficado tão surpresa. Violet
consertou o casco do barco, prendeu velas novas aos mastros e por fim olhou
para a placa com o nome Conde Olaf; franzindo
de leve as sobrancelhas, arrancou a fita e a removeu. Como as crianças tinham
notado em sua viagem para a ilha, havia outra placa por baixo, e quando Violet
leu o que estava escrito nela, e chamou seus irmãos e sua filha adotiva para
vê-la, mais uma pergunta sobre as suas vidas foi respondida, e mais um mistério
havia começado.
Finalmente, o dia da partida chegou, e quando a plataforma costeira começou a inundar, os Baudelaire carregaram o barco — ou, como diria o tio
Monty, vaporetto — para a praia e o encheram com todos os suprimentos.
Violet, Klaus e Sunny olharam para as areias brancas da praia, onde novas
macieiras estavam crescendo. As crianças tinham passado quase todo o seu tempo
no arboreto e, assim, o lado da ilha onde era a colônia é que agora dava a
sensação de ser o ''outro'' lado da ilha, em vez de o lugar onde seus pais
viveram.
— Estamos prontos para imergir no
mundo? — perguntou Violet.
— Só
espero não imergir no mar — disse Klaus com um sorrisinho.
— Eu também — disse Sunny, e sorriu de volta para o irmão.
— Onde está a bebê? — disse Violet. — Quero ter certeza de que estes coletes
salva-vidas que projetei servem direito.
— Ela quis dizer adeus para a mãe dela — disse Sunny. — Logo estará aqui.
E, de fato, a figura pequenina da filha de Kit podia ser vista
engatinhando em direção às crianças e a seu barco. Os
Baudelaire observaram-na se aproximar, perguntando a si mesmos qual seria o
próximo capítulo na história daquela menininha, e isso realmente é difícil de
dizer. Alguns afirmam que os Baudelaire reingressaram nas fileiras de C.S.C. e
estão engajados em bravas missões até hoje, talvez sob nomes diferentes para
evitar ser capturados. Outros sustentam que eles pereceram no mar, se bem que
boatos sobre a morte de alguém afloram com grande freqüência, e com grande
freqüência se provam irreais. Mas, seja como for, como a minha investigação
acabou, nós com efeito chegamos ao último capítulo da história dos Baudelaire,
mesmo que os Baudelaire
não tenham chegado. As três crianças subiram no barco e
esperaram a bebê engatinhar até a beira da água, onde pôde se colocar em
posição vertical agarrando-se à popa. Logo a plataforma costeira iria inundar,
e os órfãos Baudelaire estariam a caminho, imergindo no mundo e deixando esta
história para sempre. Até mesmo a bebê agarrada ao barco, cuja história acabara
de começar, logo iria desaparecer desta crônica, depois de pronunciar apenas
umas poucas palavras.
— Vi! — ela gritou, que era o seu
jeito de chamar Violet. — Kla! Sun!
— Não
partiríamos sem você — disse Violet, sorrindo para a bebê.
— Venha a bordo — disse Klaus,
falando com ela como se fosse uma adulta.
— Sua coisinha — disse Sunny,
usando um termo carinhoso que ela mesma inventara.
A bebê parou e olhou para a parte de trás do barco, onde
tinha sido afixada a placa com o nome. Ela não tinha como saber isso, é claro,
mas a placa tinha sido pregada na popa do barco por uma pessoa que estava
exatamente no mesmo lugar onde ela estava agora — pelo menos, até onde minha
pesquisa revelou. A criancinha estava em pé em um ponto na história de outra
pessoa, durante um momento que era seu, porém ela não estava pensando nem na
história distante no passado nem na sua própria, que se estendia futuro adentro
como o mar aberto. Ela estava olhando para a placa, e sua testa estava franzida
de concentração. Finalmente, ela pronunciou uma palavra. Os órfãos Baudelaire perderam
o fôlego ao ouvi-la, mas não podiam dizer com certeza se ela estava lendo a
palavra em voz alta ou apenas declarando o seu próprio nome, e certamente
jamais ficariam sabendo. Talvez essa última palavra tenha sido o primeiro
segredo da bebê, juntando-se aos segredos que os Baudelaire estavam guardando
dela, e todos os outros segredos imersos no mundo. Talvez seja melhor não saber
precisamente o que ela queria dizer com essa palavra, pois algumas coisas é
melhor deixar no grande desconhecido. Algumas palavras, é claro, seria melhor
deixar impronunciadas — mas não, acredito que não a palavra pronunciada pela
minha sobrinha, uma palavra que aqui significa que a história acabou. Beatrice.
Eles morrem no final
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