Capítulo 2 - Por que o Sr. Snicket dedicou a vida ao caso Baudelaire?


Caro Sr. Snicket
Graças aos céus o senhor está vivo e relativamente bem! Na noite passada, quando cheguei ao Observatório Orion para proferir minha conferência anual para a Sociedade Meteorológica, vi alguém arrombando um jipe azul-marinho, estacionado no canto sudoeste do estacionamento, e meu coração deu um pulo: talvez houvesse uma chance de o senhor estar vivo. Eu não esperava ter certeza disso, até que um funcionário me entregou sua carta. Foi um risco terrível me contatar, mas fico feliz que o senhor o tenha corrido. Lamento muito não ter podido impedir, ou ao menos adiar, sua captura no meu baile de máscaras naquela noite. Saiba que andei doente de preocupação durante todos esses anos em que esteve morto, a despeito dos rumores sobre suas atividades que se espalhavam pela rede de membros leais. Não restaram muitos de nós, Sr. Snicket, mas estamos prontos a ajudá-lo do melhor modo que pudermos.
Não posso, no entanto, ajudá-lo a responder a pergunta que o senhor me fez naquele papel de chiclete. O baile de máscaras foi o último evento público ao qual os membros da organização se atreveram a comparecer juntos, portanto, se um deles escondeu alguma coisa no quarto de hóspedes, deve ter sido naquela noite, provavelmente enquanto serviam a salada, quando o barão Van de Wetering, fantasiado de carvalho, distraiu a todos fingindo que havia um tigre debaixo da mesa. Após o desastroso final da noitada, não ousei chamar a atenção dos policiais para os pertences do senhor que eles se esqueceram de confiscar — eles poderiam ter deduzido que o senhor estava presente na festa, o que tornaria as coisas ainda piores para todos nós.
Oh, Sr. Snicket, tudo o que o senhor deixou na minha casa se foi. Sua roupa de toureiro se foi juntamente com todos os outros disfarces que confiou a mim: a falsa perna de pau, a caixa de perucas e aquele terno estranho que lhe permitiu se passar por uma cômoda. Sua máquina de escrever também se foi, assim como o acordeom azul-claro, que, pelo que me lembro, o senhor disse ser o seu terceiro favorito. Tudo naquele quarto de hóspedes se foi, e tudo no quarto de hóspedes vizinho também. Beatrice, é claro, está longe de reclamar bens perdidos — a mesma razão, estou certo, por que o senhor dedicou sua vida a pesquisar as vidas daquelas três pobres crianças.
Elas também se foram? Parece que isso está acontecendo com tudo hoje em dia. Também se foram meus adorados lanches e meus móveis: as mesas, redondas, quadradas, retangulares, se foram — todas as mesas, e mais as cadeiras que as acompanhavam. Foram-se as cortinas, com exceção das que eram à prova de fogo, que ainda estão empilhadas aguardando o começo ao julgamento. Foi-se a grande escadaria com aqueles dois corvos de madeira entalhados na ponta de cada um dos corrimãos. Foram-se todas as plantas ornamentais e os guardanapos de pano com o brasão de Winnipeg bordado de um lado e o mapa subterrâneo da cidade bordado do outro. Foram-se as perucas que eu usei quando quis me disfarçar do senhor disfarçado de alguma outra pessoa. Foi-se a caixa de charutos que ganhei de meu pai na primeira vez em que fui visitar minha casa depois de ter sido levada, e foi-se minha cama de infância, onde os tutores de C.S.C. cuidaram de mim antes de ter sido agarrada pelos calcanhares e ter sido apresentada a minha nova vida.
Tudo se foi, sr. Snicket. Cada página de cada livro da minha biblioteca particular — A teia de Charlotte, Mansões verdes, Ivan Lacrimoso: O Explorador do Lago — virou cinzas ilegíveis. Como fazia muito frio, fechei as janelas e, sem poder ouvir os grilos, o que me acordou naquela noite foi o som de uma estante de livros desmoronando, então saí correndo da mansão em chamas e fui direto para a neve, ainda de pijama e agarrada a um punhado de fotografias que estivera examinando antes de dormir. Eu olhava para as fotografias e me perguntava como tudo pôde ter dado tão errado.
Tenho a impressão, meu caro amigo, que em determinado momento na enfermaria estávamos nos tornando amigos, cada um contando ao outro histórias que nos fizessem esquecer a dor nos tornozelos, mas no momento seguinte a organização inteira tinha se dissipado, como cinzas carregadas pelos deploráveis e úmidos ventos de Winnipeg. O fogo é como a ganância, meu camarada. Ele se espalha pelo mundo, pensando apenas em si mesmo, e apodera-se de tudo o que encontra, acabando com a diversão de todo mundo.
Fique com essas fotografias, Sr. Snicket. São tudo o que posso lhe oferecer, além de minha lealdade e preocupação, sem esquecer de dois lenços que acabei de encontrar no bolso. Estude essas imagens, meu amigo — o retrato de sua irmã e eu, ou melhor, o retrato que dissemos ser de sua irmã e eu, mas na verdade não era, o instantâneo do Segundo Piquenique Anual de Criptoanálise, e as duas imagens de nossa sala de reuniões, vazia na primeira foto, e ocupada por uma figura solitária na segunda, alguém que aguardava pacientemente o início da sessão naquela enorme sala de madeira verde. A jovem parece estar bastante contente, não acha? Tão contente e, no entanto, tão inflamável.
Respeitosamente,










NOTA PARA ARQUIVO:
Esta carta chegou a mim aqui em Veblen Hall, onde estou aguardando alguns fornecedores para interrogá-los sobre quem exatamente estava dirigindo o carro naquele dia terrível. Por comoventes que sejam essas palavras, não posso ter certeza de que se trata realmente da duquesa de Winnipeg. O jipe do lado de fora do Observatório Orion não era azul-marinho, mas preto, e estava estacionado no lado noroeste, não no sudoeste. Ela jamais teria esquecido isso. A verdadeira R. foi posta à prova, mês após mês, durante mais de sete anos, a respeito dessa informação. Estaria ela tentando me dizer alguma coisa?
Haveria outro jipe estacionado ali? Ou essa carta é de algum falsário? Essas fotografias poderiam ter sido roubadas da mansão da duquesa na noite da festa, ou mesmo terem sido fabricadas de algum modo — talvez pelo computador avançado da Escola Preparatória Prufrock.
A carta estava embrulhada em um guardanapo de linho branco, com o brasão de Winnipeg bordado de um lado. O outro lado está em branco. Normalmente os grilos ficam em silêncio no inverno. Temo o pior.

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