Capítulo 2
Se
você segurar este livro na frente de um espelho, verá imediatamente como é desconcertante
ler as letras e palavras "que são refletidas de volta para você"*. De
fato, o mundo inteiro parece desconcertante visto em um espelho, quase como se
"além da lustrosa superfície prateada existisse todo um outro mundo,
exatamente igual ao mundo em que vivemos"*, só que de trás para diante. A
vida nos deixa suficientemente perplexos mesmo quando não pensamos em outros
mundos que nos encaram de dentro do espelho, e é por isso que as pessoas que
passam muito tempo se olhando no espelho tendem a ter dificuldade na hora de
pensar em alguma coisa diferente "dos eventuais segredos que porventura
descobriram depois de tanta reflexão, tais como um irmão previamente desconhecido
que já os observava naquele exato momento".*
NOTA DA
DIGITALIZADORA: No livro original, as palavras e frases grifadas neste texto, apresentam-se
de trás pra frente, como se estivessem refletidas no espelho. Na
impossibilidade de reconhecimento óptico, transcrevo como devem ser lidos.
Os
órfãos Baudelaire, é claro, não tinham passado muito tempo se olhando em espelhos
recentemente, pois estavam bastante desassossegados, uma palavra que aqui significa
"em circunstâncias desesperadoras e misteriosas provocadas pelo conde
Olaf". Mas, mesmo se tivessem passado todos os seus momentos de vigília
olhando o próprio reflexo no espelho, eles não estariam preparados para a
desconcertante visão que os aguardava no final do gramado em declive. Quando
Violet, Klaus e Sunny por fim alcançaram Kit Snicket, tiveram a sensação de ter
entrado no mundo existente do outro lado do espelho, sem nem terem percebido a
passagem. Por mais impossível que possa parecer, o gramado depositou as
crianças no topo de um edifício — não um daqueles que se erguem em direção ao
céu, mas um edifício achatado no chão. Os sapatos dos Baudelaire estavam a
centímetros das telhas rebrilhantes do telhado, onde se lia em uma grande
placa: HOTEL DESENLACE. Abaixo da placa, mais distante dos órfãos, havia uma
fileira de janelas, cujas venezianas eram todas brasonadas com o número 9. A
fileira era muito longa e se estendia para a direita e para a esquerda dos
Baudelaire, tão longe que não dava para ver o fim. Abaixo dessa fileira de
janelas havia outra, com as venezianas brasonadas com o número 8, e depois
outra fileira com o 7, e assim por diante, os números cada vez mais distantes
dos Baudelaire, até chegar no 0.
Projetando-se
de uma das janelas da fileira 0 havia um estranho funil, que expelia uma névoa
espessa e branca na direção dos irmãos e que encobria uma escadaria que levava a
uma ampla passagem curva em arco, identificada como ENTRADA. O edifício fora construído
com bizarros tijolos tremeluzentes, e aqui e ali se viam grandes e estranhas flores,
e manchas escuras de musgo, tudo espalhado no chão diante das crianças.
Depois
de um momento, uma das venezianas se abriu, e num átimo os Baudelaire
perceberam por que o Hotel Desenlace parecia tão desconcertante. Eles não estavam
olhando para o edifício, e sim para o reflexo dele em uma enorme lagoa; o hotel
mesmo ficava do outro lado. Normalmente, é bastante simples distinguir um
edifício do reflexo dele em um corpo d'água, mas o sujeito que projetou o Hotel
Desenlace, quem quer que tenha sido, acrescentou diversas peculiaridades para
confundir os passantes.
Para
começar, o prédio não se erguia verticalmente, mas se inclinava na direção do
solo a um ângulo preciso para que a lagoa refletisse apenas o hotel, sem nada
da paisagem e do céu que o envolviam. Além disso, toda a programação visual —
que é apenas uma expressão sofisticada para dizer "placas" — era
escrita de trás para diante, portanto os números nas janelas só podiam ser lidos
corretamente quando vistos na superfície da lagoa, e as palavras no telhado do
hotel real diziam LETOH ECALNESED. Por fim, algum jardineiro muito esforçado
conseguira cultivar lírios e musgo nos tijolos do hotel — o mesmo tipo de
lírios e musgo que crescem na superfície de lagoas.
Os
três irmãos baixaram os olhos para a lagoa, depois os ergueram para o hotel, para
cima e para baixo várias vezes antes de conseguir recuperar o prumo, uma expressão
que aqui significa "parar de ficar olhando para aquela visão
desconcertante e dirigir a atenção para Kit Snicket".
"Aqui,
Baudelaire!", gritou a mulher grávida, e as crianças viram que Kit se
sentara sobre um enorme cobertor estendido no gramado. Em cima do cobertor
havia pilhas de comida suficientes para alimentar um exército, se naquela manhã
um exército tivesse decidido invadir uma lagoa. Havia três pães, cada qual
assado em um formato diferente, enfileirados na frente de tigelinhas de
manteiga, geléia e algo que parecia ser chocolate derretido. Ao lado dos pães
havia uma enorme cesta com todo tipo de pastelaria, de bolinhos a sonhos e
bombas de creme, que por sinal eram as favoritas de Klaus. Havia duas
assadeiras redondas contendo quiche, que é uma espécie de torta feita com ovos,
queijo e legumes, uma grande travessa de peixe defumado e uma bandeja de
madeira sobre a qual se equilibrava uma alta pirâmide de frutas. Três jarros de
vidro continham três tipos diferentes de suco, havia bules de prata com chá e
café e, dispostos em forma de leque, havia talheres de prata para comer aquilo
tudo, além de três guardanapos com monogramas, uma palavra que aqui significa
"trazendo bordadas as iniciais V.B., K.B., e S.B.".
"Sentem-se,
sentem-se", disse Kit, mordiscando um doce coberto de açúcar de confeiteiro.
"Como eu disse, não temos muito tempo, mas isso não é desculpa para não comer
bem. Sirvam-se do que quiserem."
"De
onde veio toda essa comida?", perguntou Klaus.
"Um
dos nossos associados preparou para nós", disse Kit. "Na nossa
organização, o farnel para os piqueniques deve viajar separadamente dos
voluntários. É praxe. Se os inimigos capturarem as provisões, pelo menos não
vão pôr as garras em nós, e se os capturados formos nós, pelo menos os nossos
inimigos não terão piquenique. Isso é algo a lembrar durante os próximos dias,
quando vocês participarem daquilo que os nossos inimigos chamam de 'luta
perpétua por espaço e comida'. Por favor, provem a geléia. É deliciosa."
Os
Baudelaire sentiam-se atordoados, como se a cabeça ainda estivesse girando devido
ao passeio por entre os arbustos, e Violet enfiou a mão no bolso para procurar uma
fita. A conversa era tão atordoante que a mais velha dos Baudelaire queria se concentrar
intensamente, como quando arquitetava uma invenção. Amarrar os cabelos ajudava
Violet a focalizar sua mente inventiva, mas antes que pudesse encontrar uma
fita, Kit sorriu suavemente para ela e ofereceu a sua própria fita. A mulher
transtornada e grávida fez um gesto para a mais velha dos Baudelaire se sentar
e, com uma expressão gentil nos olhos, amarrou ela mesma os cabelos de Violet.
"Você
se parece demais com o seu pai", Kit suspirou. "Ele franzia a testa
do mesmo jeito quando ficava confuso, muito embora jamais tivesse amarrado o
cabelo com uma fita para resolver um problema. Por favor, irmãos Baudelaire,
comam o brunch, enquanto isso, vou tentar pô-los a par dos nossos apuros
atuais. Quando vocês estiverem no segundo bolinho, espero que suas perguntas já
estejam respondidas."
Os
Baudelaire sentaram-se, estenderam o guardanapo com monograma no colo e começaram
a comer, surpresos ao se dar conta de que estavam tão famintos de brunch quanto
curiosos pelas informações. Violet pegou duas fatias de pão escuro de trigo e
fez um sanduíche de peixe defumado, decidindo provar a pasta de chocolate
depois, se ainda houvesse espaço. Klaus serviu-se de um pouco de quiche e pegou
uma bomba de creme.
Sunny
fuçou na bandeja de frutas até encontrar um grapefruit e começou a descascá-lo com
seus dentes inusitadamente afiados. Kit sorriu para as crianças, limpou os
lábios com um guardanapo bordado com o monograma K.S. e se pôs a falar.
"O
edifício do outro lado da lagoa é o Hotel Desenlace", falou ela. "Já
se hospedaram lá?"
"Não",
disse Violet. "Nossos pais nos levaram uma vez ao Hotel Prelúdio, para passar
o fim de semana."
"É
verdade", disse Klaus. "Eu já tinha quase esquecido."
"Cenouras
de café-da-manhã", disse Sunny, lembrando-se do fim de semana com um
sorriso.
"Bem,
o Hotel Prelúdio é um lugar encantador", disse Kit, "mas o Hotel
Desenlace é mais do que isso. Há anos os nossos voluntários se reúnem nele para
trocar informações, discutir planos para derrotar os inimigos e devolver os
livros que pedimos emprestados uns aos outros. Antes da cisão, havia
incontáveis locais que serviam a esses propósitos. Livrarias e bancos,
restaurantes e papelarias, cafés e lavanderias, antros de ópio e cúpulas
geodésicas — pessoas de nobreza e integridade podiam se reunir praticamente em
qualquer lugar."
"Devem
ter sido tempos maravilhosos", disse Violet.
"É
o que me disseram", disse Kit. "Eu tinha quatro anos de idade quando
tudo mudou. Nossa organização se despedaçou, e foi como se o mundo também
tivesse se despedaçado; e nossos locais seguros foram destruídos, um por um.
Havia um laboratório científico, mas o voluntário que era dono do lugar foi
assassinado. Havia uma caverna enorme, mas uma traiçoeira equipe de corretores
de imóveis a reclamou para si. E havia uma imensa sede de operações no alto das
Montanhas de Mão-Morta, mas..."
"Ela
foi destruída", disse Klaus mansamente. "Estivemos lá pouco tempo
depois do incêndio."
"É
claro que estiveram", disse Kit. "Eu tinha esquecido. Bem, a sede de operações
era o penúltimo lugar seguro."
"Penu
quê?", perguntou Sunny.
"'Penúltimo'
significa antes do último", explicou Kit. "Quando a sede de operações
nas montanhas foi destruída, só restou o Hotel Desenlace. Em todos os outros lugares
na Terra, a nobreza e a integridade estão desaparecendo depressa." Ela
suspirou e fixou o olhar na superfície calma e plana da lagoa. "Se não
tomarmos cuidado, vão desaparecer completamente. Dá para imaginar um mundo em
que prevalecem a perversidade e as falcatruas desenfreadas?"
"Sim",
disse Violet baixinho, e seus irmãos concordaram com um sinal de cabeça.
Eles
sabiam que a palavra "desenfreadas" significava "sem ninguém que
as detenha", e podiam imaginar um mundo assim com grande facilidade,
porque estavam vivendo em um. Desde o primeiro encontro com o conde Olaf, a
perversidade e as falcatruas do vilão prevaleceram desenfreadas sobre a vida
dos Baudelaire, e tinha sido muito difícil para as crianças evitar que elas
próprias se tornassem vilãs. De fato, quando consideravam todos os seus atos
recentes, tinham dúvidas de não terem perpetrado uns poucos atos de vilania,
mesmo tendo razões muito boas para fazer isso.
"Quando
estávamos nas montanhas", disse Klaus, "encontramos uma mensagem que
um dos voluntários havia escrito. Dizia que C.S.C. estaria se reunindo no Hotel
Desenlace na quinta-feira."
Kit
aquiesceu e estendeu a mão para se servir de um pouco mais de café.
"A
mensagem era dirigida a J.S.?", ela perguntou.
"Sim",
disse Violet. "Presumimos que as iniciais eram de Jacques Snicket."
"Irmão?",
perguntou Sunny.
Kit
baixou o olhar para o seu doce, com uma expressão de tristeza.
"Sim,
Jacques era meu irmão. Por causa da cisão, fiquei sem ver nenhum dos meus
irmãos por anos, e só recentemente tomei conhecimento do assassinato
dele."
"Conhecemos
Jacques muito por alto", disse Violet, referindo-se ao período em que os
Baudelaire ficaram sob a tutela de uma cidade inteira. "Você deve ter
ficado chocada com a notícia."
"Triste",
disse Kit, "mas não chocada. Foram tantas as pessoas boas aniquiladas pelos
nossos inimigos." Ela estendeu as mãos por cima do cobertor e acariciou as
mãos dos Baudelaire, primeiro as de um, depois as do outro e por fim as do
terceiro. "Eu sei que não preciso contar a vocês como é horrível a
sensação de perder um membro da família. Tão horrível que jurei nunca mais sair
da cama."
"O
que aconteceu?", disse Klaus.
Kit
sorriu.
"Fiquei
com fome", disse ela, "e quando abri a geladeira encontrei outra mensagem
esperando por mim."
"Colóquio
Secreto Criostático", disse Violet, "o mesmo código da mensagem que encontramos
nas montanhas."
"Sim",
disse Kit. "Vocês três foram localizados por outro voluntário. Sabíamos, é
claro, que vocês, crianças, não tiveram nada a ver com a morte do meu irmão,
mesmo tendo lido o que aquela repórter ridícula escreveu n'O Pundonor
Diário."
Os
Baudelaire se entreolharam. Tinham quase esquecido de Geraldine Julienne, a
jornalista que lhes causara tantas atribulações, uma frase que aqui significa
"que publicara no jornal que os órfãos Baudelaire haviam assassinado
Jacques Snicket, que ela equivocadamente identificou como o conde Olaf".
Os
irmãos precisaram se disfarçar diversas vezes para não ser capturados pelas autoridades.
"Quem
nos localizou?", perguntou Klaus.
"Quigley
Quagmire, é claro", disse ela. "Ele encontrou vocês nas Montanhas de Mão-Morta,
e então me contatou quando vocês foram separados dele. Encontrei-me com Quigley
em um entreposto abandonado de roupões de banho, onde nos disfarçamos de manequins
enquanto pensávamos no que fazer a seguir. Por fim, conseguimos enviar uma
mensagem pelo Correio Sub-reptício Cooperativo para o submarino do capitão Andarré."
"Queequeg",
disse Sunny, designando o veículo subaquático onde recentemente havia passado
alguns dias tenebrosos com os irmãos.
"Nosso
plano era encontrar vocês na Praia de Sal", disse Kit, "e prosseguir
até o Hotel Desenlace para o encontro de C.S.C."
"Mas
onde está Quigley?", perguntou Violet.
Kit
suspirou e tomou um gole de café.
"Ele
estava muito ansioso por vê-los", disse ela, "mas recebeu notícias
dos irmãos dele."
"Duncan
e Isadora!", exclamou Klaus. "Não os vemos há um bocado de tempo. Eles
estão em segurança?"
"Espero
que sim", respondeu Kit. "A mensagem que mandaram estava incompleta, mas
parecia que estavam sendo atacados em pleno ar enquanto voavam sobre o oceano. Quigley
foi imediatamente ajudá-los com um helicóptero que furtamos de um botânico das vizinhanças.
Se tudo der certo, veremos os trigêmeos Quagmire na quinta-feira. Isto é, a não
ser que vocês cancelem o encontro."
"Cancelar?",
admirou-se Violet. "Por que haveríamos de fazer uma coisa dessas?"
"O
lugar seguro pode ser inseguro, afinal", disse Kit tristemente. "Se
for esse o caso, vocês, irmãos Baudelaire, precisarão enviar a C.S.C. um sinal
de que o encontro de quinta-feira está cancelado."
"Inseguro
por quê?", perguntou Sunny.
Kit
sorriu para a mais jovem dos Baudelaire, abriu a pasta acartonada que os órfãos
tinham trazido do táxi e começou a folhear os papéis dentro dela.
"Desculpem
por isto estar tão desorganizado", disse ela. "Não tive tempo de atualizar
o meu livro de lugar-comum. Meu irmão costumava dizer que, se ao menos uma pessoa
tivesse um pouco mais de tempo para algumas leituras importantes, todos os segredos
do mundo se esclareceriam. Eu mal pude olhar para estes mapas, poemas e planos
de ação que Charles me mandou, nem pude escolher o papel de parede para o quarto
do bebê. Aguardem um momento, irmãos Baudelaire. Eu vou encontrar."
As
crianças se serviram de mais brunch, tentando ser pacientes enquanto Kit vasculhava
a pasta, parando de quando em quando para alisar alguns papéis especialmente
amarrotados. Por fim ela ergueu um pequenino pedaço de papel, não maior que uma
lagarta, enrolado como um pequenino rolo de pergaminho.
"Aqui
está", disse ela. "Um garçom passou furtivamente para mim ontem à
noite; isso estava escondido em um biscoito."
Ela
o entregou a Klaus, que desenrolou o papel e apertou os olhos através dos óculos.
"'J.S.
registrou-se'", leu ele em voz alta, "'e pediu chá com açúcar. Meu
irmão manda lembranças. Sinceramente, Frank.'"
"Em
geral as mensagens dentro de biscoitos não passam de superstições absurdas",
disse Kit. "Mas a administração do restaurante mudou recentemente. Vocês podem
entender por que essa mensagem me deixou tão transtornada, irmãos Baudelaire. Alguém
está se fazendo passar pelo meu irmão e se registrou no hotel logo antes da chegada
programada de toda a nossa organização."
"Conde
Olaf", disse Violet.
"Poderia
ser Olaf", concordou Kit, "mas existe uma grande quantidade de vilões
que desejam ardentemente ser impostores. Aqueles dois vilões que estavam nas montanhas,
por exemplo."
"Ou
Hugo, Colette, ou Kevin", disse Klaus, designando três pessoas que as crianças
haviam conhecido no Parque Caligari, e que desde então se juntaram à trupe de Olaf
e combinaram encontrar-se com ele no hotel.
"Mas
esse J.S. não é necessariamente uma pessoa má", disse Kit. "Uma
grande quantidade de pessoas nobres poderia se registrar no Hotel Desenlace e
pedir açúcar no chá. Não para adoçá-lo, é claro — o chá deve ser amargo como
absinto, costumava dizer meu irmão, e pungente como uma espada de dois gumes —,
mas como um sinal. Nossos camaradas e nossos inimigos estão todos atrás da
mesma coisa: o Continente Sacarífero Codificado."
"Açucareiro",
disse Sunny, trocando um olhar consternado com os irmãos. Os Baudelaire sabiam
que Kit estava se referindo a um certo açucareiro que era de grande importância
para C.S.C. e também para o conde Olaf, que estava desesperado para pôr as mãos
nele. As crianças haviam procurado por esse açucareiro do pico mais elevado das
Montanhas de Mão-Morta às profundezas subaquáticas da Gruta Gorgônea, mas não o
encontraram nem ficaram sabendo por que ele era tão importante.
"Isso
mesmo", disse Kit. "O açucareiro está a caminho do hotel neste exato momento,
enquanto estamos aqui conversando, e eu detesto pensar no que aconteceria se os
nossos inimigos pusessem as mãos nele. Não sou capaz de imaginar nada pior, exceto
talvez se os nossos inimigos, de algum modo, puserem as mãos no Mycelium Medusóide."
O
olhar de consternação dos Baudelaire se intensificou, uma palavra que aqui significa
"aumentou dramaticamente quando eles se deram conta de que tinham más notícias
para Kit Snicket".
"Receio
que o conde Olaf tenha uma pequena amostra do Mycelium Medusóide", disse
Violet, referindo-se a um fungo letal que as crianças haviam encontrado
enquanto exploravam o oceano. Seus esporos sinistros infectaram a pobre Sunny,
que poderia não ter sobrevivido caso os irmãos não tivessem conseguido diluir o
veneno no último minuto.
"Trazíamos
alguns esporos hermeticamente fechados dentro de um capacete de mergulho, mas
Olaf conseguiu furtá-lo."
Kit
engoliu em seco.
"Então,
com toda certeza, não temos tempo a perder. Vocês três precisam se infiltrar no
Hotel Desenlace e observar J.S. Se J.S. for uma pessoa nobre, vocês deverão se
empenhar para que o açucareiro caia nas mãos dele ou dela, mas se J.S. for uma pessoa
vilanesca, vocês deverão se empenhar para que não caia. E lamento dizer que isso
não vai ser tão fácil quanto parece."
"Não
parece nem um pouco fácil", disse Klaus.
"Assim
é que se fala", disse Kit, jogando uma uva para dentro da boca. "É
claro que vocês não estarão sozinhos. Chegar cedo é um dos sinais de uma pessoa
nobre, portanto há outros voluntários que já estão no hotel. Vocês podem até
reconhecer alguns voluntários que os estiveram observando durante as suas
viagens. Mas também podem reconhecer alguns dos seus inimigos, pois estarão
posando de pessoas nobres e também chegarão cedo. Enquanto vocês tentam
observar o impostor, diversos impostores estarão, sem dúvida, observando
vocês."
"Mas
como poderemos distinguir os voluntários dos inimigos?", perguntou Violet.
"Do
mesmo jeito que sempre fizeram", disse Kit. "Quando vocês se
encontraram pela primeira vez com o conde Olaf, tiveram alguma dúvida de que
ele era uma pessoa traiçoeira? Quando se encontraram pela primeira vez com os
trigêmeos Quagmire, tiveram alguma dúvida de que eles eram encantadores e
talentosos? Vocês têm de observar todas as pessoas que virem e julgar por si
mesmos. Vocês Baudelaire se tornarão flâneurs."
"Elucide",
disse Sunny, o que queria dizer alguma coisa na linha de "Receio não saber
o que essa palavra significa".
"Flâneurs',
explicou Kit, "são pessoas que observam discretamente os arredores, intrometendo-se
só quando é absolutamente necessário. As crianças são excelentes flâneurs, pois
pouca gente presta atenção nelas. Vocês serão capazes de passar despercebidos
no hotel."
"Nós
não podemos passar despercebidos", disse Klaus. "O Pundonor Diário publicou
as nossas fotografias. Alguém certamente vai nos reconhecer e comunicar a nossa
presença às autoridades."
"Meu
irmão está certo", disse Violet. "Três crianças não podem
simplesmente ficar perambulando por um hotel, observando as coisas."
Kit
sorriu e ergueu um canto do cobertor do piquenique. Embaixo havia três pacotes
embrulhados em papel.
"O
homem que me enviou a mensagem sobre o impostor", disse ela, "é um membro
de C.S.C. Ele sugeriu empregar vocês três como concierges. Seus uniformes estão
nestes pacotes."
"Elucide
novamente", disse Sunny.
Klaus
pegara o seu livro de lugar-comum e estava tomando nota do que Kit dizia. A
oportunidade de definir uma palavra, no entanto, foi suficiente para
interromper o seu afazer.
"Concierge",
disse ele à irmã, "é alguém que desempenha diversas tarefas para os
hóspedes de um hotel."
"É
o disfarce perfeito", disse Kit. "Vocês irão executar os mais diversos
serviços, de buscar pacotes a recomendar restaurantes. Terão permissão para
entrar em todos os cantos do hotel, do salão de bronzeamento da cobertura à
lavanderia no subsolo, e ninguém suspeitará que vocês estão lá para espionar.
Frank os ajudará tanto quanto puder, mas tenham muito cuidado. A cisão
transformou muitos irmãos em inimigos. Em nenhuma circunstância vocês devem
revelar a Ernest, o traiçoeiro gêmeo idêntico de Frank, quem verdadeiramente
são."
"Idêntico?",
repetiu Violet. "Se eles são idênticos, como vamos distinguir um do outro?"
Kit
tomou um último gole de café.
"Por
favor, tentem prestar atenção", disse ela. "Vocês têm de observar
todas as pessoas que virem e julgar essas coisas por si mesmos. Esse é o único
modo de distinguir um vilão de um voluntário. Então, está tudo perfeitamente
claro?"
Os
Baudelaire se entreolharam. Eles não podiam se lembrar de uma só ocasião de
suas vidas em que tudo tivesse estado menos claro do que naquele exato momento,
quando cada frase pronunciada por Kit parecia ser mais misteriosa que a última.
Klaus olhou para as anotações que tinha feito no seu livro de lugar-comum e
tentou resumir a incumbência que Kit delineara para eles.
"Vamos
nos disfarçar de concierge?, disse ele cautelosamente, "para que nos tornemos
flâneurs e observemos um impostor que pode ser um voluntário ou um
inimigo."
"Um
homem chamado Frank vai nos ajudar", disse Violet, "mas seu irmão
Ernest vai tentar nos deter."
"Há
diversos outros voluntários no hotel", disse Klaus, "mas diversos outros
inimigos também."
"Açucareiro",
disse Sunny.
"Muito
bom", disse Kit em tom de aprovação. "Quando vocês terminarem o
brunch, podem vestir o uniforme atrás daquela árvore e sinalizar a Frank que
estão a caminho. Vocês têm alguma coisa que possam jogar na lagoa?"
Violet
enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma pedra que tinha recolhido na Praia de
Sal.
"Imagino
que isto sirva", disse ela.
"É
perfeito", disse Kit. "Frank deve estar observando de uma das janelas
do hotel, a não ser, é claro, que Ernest tenha interceptado a minha mensagem e
esteja observando no lugar dele. Qualquer que seja o caso, quando estiverem
prontos para encontrá-lo, podem jogar a pedra na lagoa, aí ele verá as
ondulações e saberá que vocês estão a caminho."
"Você
não vem conosco?", perguntou Klaus.
"Receio
que não", disse Kit. "Tenho outras incumbências pela frente. Enquanto
Quigley tenta resolver a situação no céu, tentarei resolver a situação no mar,
e vocês terão de resolver a situação aqui em terra."
"Nós
só?", perguntou Sunny. Ela queria dizer alguma coisa como "Você acha realmente
que três crianças podem levar tudo isso a cabo sozinhas?", e seus irmãos foram
ligeiros em traduzir.
"Dêem
uma olhada em si mesmos", disse Kit, fazendo um gesto na direção da lagoa.
Os
Baudelaire se levantaram, se aproximaram da beira da água e se inclinaram sobre
a lagoa de modo a fazer aparecer seu reflexo na frente do telhado do hotel.
"Quando
os seus pais morreram", disse Kit, "você era apenas uma menininha,
Violet. Mas você amadureceu. Esses não são os olhos de uma menininha. Esses são
os olhos de alguém que enfrentou um sofrimento sem fim. E olhe para você,
Klaus. Tem a aparência de um pesquisador experiente — não apenas o jovem leitor
que perdeu os pais num incêndio. E você, Sunny, você está sobre os seus
próprios pés, e são tantos os dentes que estão crescendo que já nem parecem ser
de um tamanho tão exagerado como quando você era um bebê. Vocês não são mais
crianças, irmãos Baudelaire. Vocês são voluntários, prontos para enfrentar os
desafios de um mundo desesperado e desconcertante. Vocês precisam ir ao Hotel
Desenlace, e Quigley precisa ir à casa móvel auto-sustentável a ar quente, e eu
preciso ir a uma formação de corais de qualidade dúbia onde um bote inflável
deverá estar me aguardando. Mas se Quigley conseguir construir uma rede grande
o bastante para capturar todas aquelas águias, e eu conseguir contatar o
capitão Andarré e fazer com que venha se encontrar comigo em um certo
aglomerado de algas, estaremos aqui na quinta-feira. Hector deve conseguir
pousar a sua casa móvel auto-sustentável a ar quente no telhado, mesmo que
estejamos todos a bordo."
"Hector?",
disse Violet, lembrando-se do homem que fora tão gentil com eles na cidade dos
Cultores Solidários de Corvídeos e da enorme invenção que o arrastara para longe
dos Baudelaire. "Ele está em segurança?"
"Espero
que sim", disse Kit suavemente e levantou-se. Ela desviou o rosto dos Baudelaire,
e sua voz soou trêmula ao falar. "Não se preocupem com as sobras do
brunch, irmãos Baudelaire. Um dos meus camaradas se ofereceu para recolher tudo
depois do nosso piquenique. Ele é um cavalheiro magnífico. Vocês vão conhecê-lo
na quinta-feira, se tudo der certo. Se tudo der certo..."
Mas
ela não conseguiu terminar a frase. Em vez disso, soltou um pequeno gemido, e
seus ombros começaram a sacudir enquanto os Baudelaire se entreolhavam. Quando
uma pessoa está chorando, é claro que a coisa mais nobre a fazer é confortá-la.
Mas
se a pessoa está tentando esconder as lágrimas, talvez também seja nobre fazer
de conta que você não percebeu, para que ela não se sinta constrangida. Por um
momento, as crianças não souberam como escolher entre a nobre atividade de
confortar uma pessoa que está chorando e a nobre atividade de não deixar
constrangida uma pessoa que está chorando, mas, quando Kit Snicket se pôs a
chorar cada vez mais forte, decidiram confortá-la. Violet apertou uma das mãos
dela entre as suas. Klaus passou-lhe um braço em volta do ombro. Sunny abraçou
Kit logo acima dos joelhos, que era o mais alto que podia alcançar.
"Por
que você está chorando?", perguntou Violet. "Por que está tão transtornada?"
"Porque
não vai dar tudo certo", disse Kit afinal. "Agora vocês já podem
saber, irmãos Baudelaire. Este é um momento tenebroso, tão tenebroso quanto um
corvo voando em noite escura como breu. Nossas incumbências podem ser nobres,
mas não teremos sucesso. Desconfio que antes de quinta-feira verei o seu sinal
e saberei que todas as nossas esperanças se transformaram em fumaça."
"Mas
como vamos sinalizar?", perguntou Klaus. "Que código devemos
usar?"
"Qualquer
código que vocês inventarem", disse Kit. "Estaremos observando o céu."
Dizendo
isso, ela soltou-se dos braços reconfortantes das crianças e afastou-se apressadamente
da lagoa, sem mais uma palavra. Violet, Klaus e Sunny ficaram olhando enquanto
a figura de Kit diminuía à medida que ela corria gramado acima, talvez voltando
para o táxi, ou para juntar-se a algum outro voluntário misterioso, até por fim
desaparecer além do declive. Por um momento, nenhuma das crianças disse nada, e
então Sunny inclinou-se para baixo e pegou os pacotes.
"Vestir?",
perguntou ela.
"Acho
que sim", disse Violet com um suspiro. "É uma pena desperdiçar toda
essa comida, mas não agüento nem mais um pouco de brunch."
"Talvez
o voluntário que vem recolher tudo leve para alguma outra pessoa", disse Klaus.
"Talvez",
concordou Violet. "Há tanta coisa sobre C.S.C. que continua sendo um mistério."
"Talvez
saibamos mais quando formos flâneur?, disse Klaus. "Se observarmos tudo à
nossa volta, talvez alguns desses mistérios se esclareçam. Assim espero."
"Eu
também assim espero", disse Violet.
"Assim
espero também", disse Sunny, e os Baudelaire não disseram mais nada.
Deixando
o brunch de lado, eles se esquivaram para trás da árvore sugerida por Kit e penduraram
o cobertor do piquenique como se fosse uma cortina, para que cada uma das crianças
pudesse vestir o uniforme de concierge em relativa privacidade. Violet afivelou
um lustroso cinto prateado com as palavras HOTEL DESENLACE gravadas em grandes letras
pretas em toda a volta, esperando ser capaz de perceber a diferença entre Frank
e o seu traiçoeiro irmão Ernest. Klaus ajustou o seu chapéu rígido e redondo,
que tinha uma firme alça elástica apertada embaixo do queixo, esperando ser
capaz de saber quais entre os hóspedes eram voluntários e quais eram vilões. E
Sunny enfiou os dedos nas luvas brancas e limpas, surpresa por Frank ter
conseguido encontrá-las em tamanho tão pequeno, esperando ser capaz de
investigar o impostor que se passava por Jacques Snicket.
Quando
as três crianças acabaram de vestir seus uniformes, caminharam de volta até a
beira da lagoa e puseram a última peça do disfarce: três enormes pares de
óculos escuros que lembravam um par usado pelo conde Olaf quando ele fingira
ser um detetive.
Os
óculos escuros eram tão grandes que cobriam não só os olhos como também grande parte
do rosto — Klaus podia até mesmo usar os seus óculos normais embaixo deles sem que
ninguém percebesse. Quando olharam através dos óculos escuros para o próprio reflexo,
os órfãos se perguntaram se os disfarces seriam suficientes para mantê-los
longe das garras das autoridades por tempo suficiente para resolver todos os
mistérios que os cercavam; também se perguntaram se era verdade o que Kit
Snicket dissera, que eles não eram mais crianças, e sim voluntários prontos
para enfrentar os desafios de um mundo desesperado e desconcertante. Os
Baudelaire assim esperavam.
Mas,
quando Violet segurou a pedra em sua mão enluvada e atirou-a no meio da lagoa,
eles se perguntaram se as suas esperanças iriam afundar do mesmo modo. Ficaram
observando as ondulações que se formavam na superfície da lagoa, quebrando o reflexo
do hotel. Ficaram observando as telhas da cobertura se transformarem em um borrão,
e ficaram observando a palavra "Desenlace" desaparecer como se
estivesse escrita em um papel que alguém estava amarrotando com a mão. Os
irmãos ficaram observando as fileiras de janelas se fundirem, e ficaram
observando todas as flores e musgos se dissolverem no nada enquanto a pedra
afundava cada vez mais na lagoa e as ondulações em círculos se espalhavam mais
e mais longe através do reflexo. Os órfãos Baudelaire ficaram observando aquele
mundo refletido desaparecer, e se perguntaram se as suas esperanças também
iriam desaparecer no estranho e ondulante mundo do Hotel Desenlace e
"todos os mistérios e segredos que jazem lá no fundo".
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