Capítulo 3
A expressão ‘’me arrepia o
madeirame!’’ vem da cultura dos piratas, que se divertem com expressões
interessantes quase na mesma medida em que gostam de pular a bordo de navios de
outras pessoas e roubar seus objetos de valor. Expressa extremo assombro e é
usada em circunstâncias nas quais a pessoa se sente como se seus próprios
ossos, ou o ‘’madeirame’’ se arrepiassem. A última vez que usei essa expressão
foi numa noite chuvosa em que, perplexo, precisei me fingir de pirata, mas
quando o capitão Andarré contou aos Baudelaire para onde o Queequeg estava indo
e o que procurava, surgiu a oportunidade perfeita para pronunciar aquelas
palavras.
― Me arrepia o madeirame! ―
gritou Sunny .
― O seu madeirame?! ―
gritou de volta o capitão. ― Então os Baudelaire estão praticando a pirataria?
Positivo! Céus! Se seus pais soubessem que vocês estavam roubando tesouros de
outras...
― Nós não somos piratas,
capitão Andarré ― disse rápido Violet. ― Sunny está apenas usando uma expressão
que aprendeu em um filme antigo. Ela só queria dizer que nós ficamos surpresos.
― Surpresos? ― O capitão
começou a andar de um lado para o outro na frente deles, fazendo sua roupa à
prova d'água enrugar-se a cada passo. ― Vocês acham que o Queequeg fez todo
esse esforço para navegar contra a corrente do Arroio Enamorado até aqui só
para minha diversão pessoal? Vocês acham que eu iria enfrentar um perigo tão
terrível simplesmente porque não tinha outros planos para esta tarde? Positivo?
Vocês acham que deram com nosso periscópio por uma coincidência maluca?
Positivo? Vocês acham que esse uniforme me faz parecer mais gordo? Positivo?
Vocês acham que os membros de C.S.C, iriam ficar sentados, girando os
polegares, enquanto a traição do conde Olaf recobre a Terra como a crosta de
uma torta recobre o recheio? Positivo?
― Você estava procurando
por nós? ― perguntou Klaus, assombrado. Ele sentiu-se tentado a dizer ― me
arrepia o madeirame! ― como a irmã, mas não quis alarmar ainda mais o capitão.
― Por vocês! ― bradou o
capitão. ― Positivo! Pelo açucareiro! Positivo! Por justiça! Positivo! E liberdade!
Positivo! Por uma oportunidade de deixar o mundo em paz! Positivo! E em
segurança! Positivo! E talvez só até quinta-feira! Positivo! Estamos em grande
perigo! Positivo! Portanto, mãos à obra!
― Mistificaeu! ― gritou
Sunny.
― Minha irmã está confusa ―
disse Violet, ― e também nós, capitão Andarré. Se pudéssemos apenas parar por
um momento e ouvir sua história desde o começo...
― Parar por um momento? ―
repetiu o capitão, atônito. ― Acabo de explicar nossas circunstâncias
desesperadoras, e você me pede para vacilar? Minha querida menina, lembre-se da
minha filosofia de vida! Positivo! Aquele ou aquela que vacila está perdido!
Agora vamos lá! ― As crianças se entreolharam frustradas. Elas não queriam ir e
vir mais do que já vinham indo e vindo. Os órfãos Baudelaire tinham a sensação
de estar num incessante vaivém desde aquele dia terrível na praia, quando suas
vidas foram viradas de ponta-cabeça. Eles foram de mudança para a casa do conde
Olaf, e depois para a casa de diversos tutores.
Eles foram para fora de uma cidade que tencionava queimá-los na
fogueira, e foram para um hospital que explodira em chamas à sua volta. Eles
foram para o sertão no porta-malas do carro do conde Olaf, e foram para fora do
sertão disfarçados. Eles foram Montanhas de Mão-Morta acima, esperando
encontrar um de seus pais, e depois Montanhas de Mão-Morta abaixo, achando que
nunca mais iriam vê-los, e agora que vieram parar em um minúsculo submarino no Arroio
Enamorado, queriam parar de ir e vir, só um pouquinho, e receber
algumas respostas para as perguntas que vinham
se fazendo desde que todo esse vaivém começara.
― Padrasto ― disse Fiona
gentilmente, ― por que você não aciona os motores do Queequeg enquanto eu
mostro aos Baudelaire onde estão os uniformes de reserva?
― Eu sou o capitão! ―
anunciou o capitão. ― Quem dá as ordens aqui sou eu! ― Então ele encolheu os
ombros e apertou os olhos na direção das crianças. Pela primeira vez, os
Baudelaire repararam numa escada de corda pendurada junto à parede lateral.
Levava a uma pequena plataforma, onde as crianças podiam ver uma grande roda,
usada provavelmente para manobrar o submarino, e umas poucas alavancas e chaves
de metal enferrujado, cujo propósito era bizantino, uma palavra que aqui
significa ‘’tão complicado que talvez até mesmo Violet Baudelaire teria
dificuldade em manusear’’. ― Ordeno a mim mesmo que suba a escada ― continuou
um pouco envergonhado o capitão, ― e acione os motores do Queequeg. ― Com um
último ― positivo! ― o capitão tratou de alçar-se para o teto, e os Baudelaire
ficaram sozinhos com Fiona e Phil.
― Vocês devem estar
exaustos, jovens Baudelaire ― disse Phil. ― Lembro-me do primeiro dia a bordo
do Queequeg. Fez a Serraria Alto-Astral parecer calma e tranquila!
― Phil, que tal servir uns
refrigerantes para os Baudelaire enquanto eu encontro uniformes para eles? ―
disse Fiona.
― Refrigerantes? ― disse
Phil com uma olhadela nervosa para o capitão, que já estava na metade da
escada. ― Não deveríamos guardar os refrigerantes para uma ocasião especial?
― Esta é uma ocasião
especial ― disse Fiona. ― Estamos dando as boas-vindas a mais três voluntários
a bordo. Que tipo de refrigerante vocês preferem, irmãos Baudelaire?
― De qualquer coisa, menos
de salsa ― disse Violet, referindo-se a uma bebida apreciada por Esmé Squalor.
― Vou trazer alguns de lima
limão ― disse Phil. ― Os marinheiros devem sempre se assegurar de que haja
cítricos em abundância em seu organismo. Estou tão contente em rever vocês,
crianças. Sabem, eu não estaria aqui se não fossem vocês. Fiquei tão
horrorizado depois do que aconteceu em Paltry ville que não pude mais continuar
na Alto-Astral, e desde então minha vida tem sido uma grande aventura!
― Sinto muito por sua perna
não ter sarado ― disse Klaus, referindo-se ao andar claudicante de Phil. ― Eu
não sabia que o acidente com a prensa tinha sido tão sério.
― Não é por isso que estou
mancando ― disse Phil. ― Fui mordido por um tubarão na semana passada. Doeu um
bocado, mas tive muita sorte. A maioria das pessoas nunca tem uma oportunidade
de chegar tão perto de um peixe tão letal!
Os Baudelaire observaram enquanto ela manquitolava de volta pela
porta da cozinha, assobiando uma melodia animada.
― Phil era assim, sempre
otimista, quando vocês o conheceram? ― perguntou Fiona.
― Sempre ― disse Violet, e
seus irmãos balançaram a cabeça em concordância. ― Nunca conhecemos ninguém
capaz de continuar assim tão alegre, não importa que coisas horríveis tenham
ocorrido.
― Para dizer a verdade, eu
às vezes acho isso um pouco cansativo ― disse Fiona, e ajustou seus óculos
triangulares. ― Vamos procurar alguns uniformes? ― Os Baudelaire assentiram e
seguiram Fiona para fora do salão principal, de volta ao corredor estreito. ―
Sei que vocês têm uma porção de perguntas a fazer ― disse ela, ― portanto vou
tentar contar tudo o que sei. Meu padrasto acredita que aquele ou aquela que
vacila está perdido, mas eu tenho uma filosofia de vida mais cautelosa.
― Ficaríamos muito
agradecidos se você pudesse nos contar algumas coisas ― disse Klaus.
― Primeiro, como vocês
sabem quem somos nós? E por que estavam nos procurando? Como sabiam em que
parte nos encontrar?
― Vamos por partes ― disse
Fiona com um sorriso. ― Acho que vocês Baudelaire se esquecem de que seus
feitos não são exatamente um segredo. Quase todos os dias saía uma matéria
sobre vocês em algum dos jornais mais populares.
― O Pundonor Diário! ―
perguntou Violet. ― Espero que não tenha acreditado nas mentiras horríveis que
eles têm publicado sobre a gente.
― É claro que não ― disse
Fiona. ― Mas até a mais ridícula das histórias pode conter um grãozinho de verdade.
O Pundonor Diário disse que vocês assassinaram um homem na cidade dos Cultores
Solidários de Corvídeos, e depois atearam fogo no Hospital Heimlich e no Parque
Caligari. Nós sabíamos, é claro, que vocês não tinham cometido esses crimes,
mas percebemos que estiveram lá. Meu padrasto e eu deduzimos que vocês
encontraram a mancha secreta no mapa de madame Lulu, e se dirigiram para a base
de operações de C.S.C.
Klaus perdeu o fôlego de espanto.
― Você sabia sobre madame
Lulu ― disse ele, ― e a mancha em código?
― Foi meu padrasto que
ensinou esse código a madame Lulu ― explicou Fiona, ― muito tempo atrás, quando
os dois eram jovens. Bem, ouvimos falar da destruição da base de operações, e
assim presumimos que vocês estavam regressando montanha abaixo. Portanto,
tracei para o Queequeg o curso Arroio Enamorado acima.
― Você navegou até aqui em
cima ― disse Klaus, ― só para nos encontrar?
Fiona baixou os olhos.
― Bem, não ― disse ela. ―
Vocês não eram a única coisa na base de operações de C.S.C. Um de nossos
boletins do Correio Sub-reptício Cooperativo nos informou que o açucareiro
também estava lá.
― Depinejá? ― perguntou
Sunny .
― O que são, exatamente,
boletins de Correio Sub-reptício Cooperativo? ― traduziu Violet.
― Um meio de compartilhar
informações ― disse Fiona. ― Como é difícil os voluntários se encontrarem uns
com os outros, os boletins servem para que aquele que encontra a chave de um
mistério possa escrevê-la em um telegrama. Desse modo, informações importantes
circulam, e em pouco tempo nossos livros de lugar-comum ficam repletos de
informações para derrotar nossos inimigos. Um livro de lugar-comum é...
― Sabemos o que é um livro
de lugar-comum ― disse Klaus, e removeu do bolso seu caderno azul-escuro. ― Eu
mesmo venho escrevendo um.
Fiona sorriu e tamborilou seus dedos enluvados na capa do livro de
Klaus.
― Eu devia saber ― disse
ela. ― Se suas irmãs também quiserem começar seus próprios livros, devemos ter
aqui alguns deles de reserva. Está tudo na sala de suprimentos.
― Então vamos subir até as
ruínas da base de operações ― perguntou Violet, ― para pegar o açucareiro? Nós
não o vimos lá.
― Achamos que alguém o
atirou pela janela ― respondeu Fiona, ― quando o incêndio começou. Se o
açucareiro foi atirado pela janela da cozinha, ele deve ter caído no Arroio
Enamorado e ter sido arrastado pelo ciclo das águas para o pé das montanhas.
Estávamos procurando o açucareiro no fundo do arroio quando demos com vocês
três.
― Provavelmente o arroio o
arrastou para muito mais longe ― disse Klaus, pensativo.
― Também acho ― concordou
Fiona. ― Espero que você possa descobrir sua localização estudando as cartas
náuticas do meu padrasto. Para mim, elas não têm pé nem cabeça.
― Vou mostrar como se lêem
as cartas ― disse Klaus. ― Não é difícil.
― É isso que me assusta ―
disse Fiona. ― Se aquelas cartas não são difíceis de ler, então o conde Olaf
pode ter uma chance de encontrar o açucareiro antes de nós. Meu padrasto diz
que, se o açucareiro cair nas mãos dele, então todos os esforçosde todos os
voluntários terão sido em vão.
Os Baudelaire assentiram, e as quatro crianças seguiram em
silêncio pelo corredor. A expressão ‘’em vão’’ é simplesmente um jeito elegante
de dizer ‘’para coisa nenhuma’’ e não importa que expressão você use, pois
ambas são igualmente desestimulantes. Hoje por exemplo, mais para o fim da
tarde, vou entrar em uma sala grande e cheia de areia e, se não encontrar o
tubo de ensaio que procuro, será desestimulante perceber que peneirei toda
aquela areia para coisa nenhuma. Se você insistir em terminar este livro,
achará desestimulante, por entre acessos de lágrimas, perceber que leu esta
história em vão, e que teria sido melhor folhear tediosas descrições do ciclo
das águas. E os Baudelaire acharam desestimulante imaginar que todas as
dificuldades por que passaram acabariam sendo em vão, que todas as suas
aventuras não significariam nada, e que suas vidas inteiras seriam em vão e
para coisa nenhuma se o conde Olaf conseguisse encontrar aquele açucareiro
crucial antes deles. Os três irmãos seguiram Fiona pelo corredor mal iluminado,
esperando que sua estada a bordo do Queequeg não fosse mais uma jornada
aterradora, terminada em decepção, desilusão e desespero. No momento, contudo,
a jornada se interrompeu diante de uma pequena porta, onde Fiona parou e
virou-se para os Baudelaire.
― Esta é nossa sala de
suprimentos ― disse. ― Dentro, vocês encontrarão uniformes para os três, embora
até mesmo o menor tamanho possa ser grande demais para Sunny.
― Risca de giz ― disse
Sunny . Ela queria dizer alguma coisa como: ― Não se preocupe, estou acostumada
a usar roupas mal ajustadas ― e seus irmãos traduziram com presteza.
― Vocês também vão precisar
de capacetes de mergulho ― disse Fiona. ― Este é um submarino velho, e pode
estourar um vazamento. Se o vazamento é grave, a pressão da água pode fazer as
paredes do Queequeg implodirem, enchendo todas as salas e os corredores de
água. Os sistemas de oxigênio dos capacetes de mergulho possibilitam a vocês
respirar embaixo d'água — pelo menos durante um breve período.
― Seu padrasto disse que os
capacetes seriam grandes demais para Sunny , e que ela teria de se enroscar
dentro de um deles ― disse Violet. ― Será que isso é seguro?
― Seguro, porém desconfortável
― disse Fiona. ― Como tudo no Queequeg. Esse submarino já esteve em excelentes
condições, mas sem ninguém que entenda de mecânica, já não está mais à altura
de sua antiga glória. Muitas salas estão inundadas, portanto lamento dizer que
vamos dormir em acomodações bastante apertadas. Espero que vocês gostem de
beliches.
― Já dormimos em coisa pior
― disse Klaus.
― Foi o que ouvi dizer ―
retrucou Fiona. ― Li uma descrição do Barraco dos Órfãos na Escola Preparatória
Prufrock. Parecia horrível.
― Então você sabia de nós,
mesmo naquela época? ― perguntou Violet. ― Por que não nos encontraram antes?
Fiona suspirou.
― Nós sabíamos sobre vocês
― disse ela. ― Eu lia histórias horríveis no jornal todos os dias, mas meu
padrasto disse que não podíamos fazer nada a respeito de toda a perfídia
contida naquelas matérias.
― Por que não? ― perguntou
Klaus.
― Ele disse que seus
problemas eram enormes demais ― respondeu ela.
― Não entendo ― disse
Violet.
― Na verdade, eu também não
― admitiu Fiona. ― Meu padrasto disse que a quantidade de perfídia nesse mundo
é enorme, e que o melhor que podemos fazer é uma única coisinha nobre. É por
isso que estamos procurando o açucareiro. Vocês poderiam pensar que a
realização de uma tarefa tão pequena seria fácil, mas estamos procurando há um
tempão e ainda não o encontramos.
― Mas o que há de tão
importante nesse açucareiro? ― perguntou Klaus.
Fiona suspirou de novo e piscou várias vezes por trás dos óculos
triangulares. Parecia tão triste que o Baudelaire do meio quase desejou não ter
perguntado.
― Não sei ― disse ela. ―
Ele não quer me contar.
― Purquenaum? ― perguntou
Sunny.
― Ele disse que era melhor
eu não saber ― disse Fiona. ― Acho que isso também é enorme, um enorme segredo.
Ele disse que pessoas foram destruídas por saber segredos tão enormes, e que
não queria que eu corresse esse tipo de perigo.
― Mas você já está em
perigo ― disse Klaus. ― Estamos todos em perigo. Estamos a bordo de um
submarino instável, tentando encontrar um minúsculo e importante objeto antes
que um vilão nefando ponha as mãos nele.
Fiona girou a maçaneta da porta, que se abriu com um alto e
prolongado crééééc! que causou arrepio nos Baudelaire. A sala era diminuta e
muito mal iluminada por uma única luzinha verde, e por um momento pareceu estar
cheia de gente que fitava silenciosamente as crianças no corredor. Mas então os
irmãos viram que era apenas uma fileira de uniformes flácidos pendurados em
ganchos ao longo da parede.
― Acho que existem perigos
piores ― disse Fiona em tom calmo.
― Acho que existem perigos
que simplesmente não podemos nem sequer imaginar.
Os Baudelaire olharam para sua companheira e depois para a fantasmagórica
fileira de uniformes vazios. Em uma prateleira acima das roupas à prova d'água,
havia uma fileira de grandes capacetes de mergulho, esferas de metal com
pequenas aberturas circulares no meio pelas quais as crianças poderiam enxergar
do lado de fora quando os colocassem na cabeça. A pálida luz verde, os
capacetes se pareciam um pouco com olhos, encarando ferozes os Baudelaire
dentro da sala de suprimentos, exatamente como o olho no tornozelo do conde
Olaf olhara para eles tantas vezes no passado. Muito embora ainda não fossem
piratas, os irmãos se sentiram tentados a dizer mais uma vez ‘’me arrepia o madeirame!’’
quando puseram os pés dentro da sala pequena e atravancada, e sentiram um
arrepio até os ossos. Eles não gostavam de pensar em vazamentos estourados no
Queequeg, ou na implosão do submarino, tampouco em suas cabeças enfiadas em
capacetes — ou, no caso de Sunny , inteiramente enroscada lá dentro. Eles não
gostavam de pensar sobre onde estaria o conde Olaf nem o que aconteceria se ele
encontrasse o açucareiro antes. Porém, mais que tudo, os órfãos Baudelaire não
gostavam de pensar nos perigos que Fiona mencionara — perigos piores que os que
enfrentavam agora, perigos que eles simplesmente não podiam nem imaginar.
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