Capítulo 3
Existem
lugares onde o mundo é sereno, mas o enorme saguão do Hotel Desenlace não era
um deles. No dia em que os Baudelaire subiram a escadaria através da névoa
branca do funil e entraram na grande arcada curva identificada como ADARTNE —
ou, no reflexo da enorme lagoa, ENTRADA —, o saguão fervilhava de atividade.
Como Kit Snicket previra, os Baudelaire conseguiram passar despercebidos no
hotel, porque todo mundo estava ocupado demais para reparar em qualquer coisa.
Os hóspedes enfileiravam-se na frente de um enorme balcão de recepção — que por
algum motivo tinha o número 101 brasonado na parede acima dele — para poder se
registrar no hotel e ir para o quarto descansar. Mensageiros e mensageiras
empilhavam montes de bagagens em carrinhos e os empurravam para os elevadores —
que por algum motivo tinham o número 118 brasonado nas portas — para poder
descarregar as malas nos quartos dos hóspedes e receber as gorjetas. Garçons e
garçonetes levavam comida e bebida a pessoas sentadas nas cadeiras e bancos do
saguão. Motoristas de táxi introduziam hóspedes no hall para entrar na fila, e
cães arrastavam seus donos para fora do hotel para passear. Turistas confusos,
em pé pelo saguão, olhavam para mapas em cômica perplexidade, e crianças
indisciplinadas brincavam de esconde-esconde entre os vasos de plantas. Um
homem de smoking, sentado a um piano de cauda brasonado com o número 152,
tocava melodias tilintantes para entreter quem se interessasse em ouvir, e pessoas
da equipe de limpeza poliam discretamente os pisos verdes de madeira gravados
com o número 123, para quem se interessasse em ver os pés refletidos a cada passo.
Havia uma enorme fonte em um canto do salão, da qual jorrava uma cascata de água
que escorria por cima do número 131 que estava gravado em uma parede lisa e lustrosa,
e havia uma mulher enorme no canto oposto, em pé sobre o número 176, bradando
repetidamente um nome de homem em um tom de voz cada vez mais irritado.
Os
Baudelaire tentaram ser flâneurs enquanto andavam em meio ao caos do hotel, mas
havia tanta coisa a observar, e tudo se mexia tão depressa que eles se
perguntaram como poderiam começar a nobre incumbência.
"Eu
não tinha idéia de que este lugar estivesse tão movimentado", disse
Violet, piscando atrás dos seus óculos escuros.
"Como
diabos vamos conseguir espiar o impostor", ponderou Klaus, "entre
todos esses possíveis suspeitos?"
"Frank
primeiro", disse Sunny.
"Sunny
está certa", disse Violet. "O primeiro passo em nossa incumbência
deveria ser localizar o nosso novo chefe. Se ele viu o nosso sinal daquela
janela aberta, deve estar aguardando por nós."
"A
não ser que o seu irmão vilanesco Ernest esteja aguardando por nós no lugar dele",
disse Klaus.
"Ou
ambos", disse Sunny.
"Por
que você acha que há tantos números...", Violet começou a perguntar, mas antes
que pudesse concluir a pergunta um homem veio saltitando na direção deles. Era muito
alto e magro e seus braços e pernas se projetavam em ângulos esquisitos, como
se ele fosse feito de canudinhos de refresco em vez de carne e osso. Vestia um
uniforme semelhante ao dos Baudelaire, mas com a palavra GERENTE bordada em
letras elegantes por cima de um dos bolsos do casaco.
"Vocês
devem ser os novos concierges", disse ele. "Bem-vindos ao Hotel Desenlace.
Eu sou um dos gerentes."
"Frank",
perguntou Violet, "ou Ernest?"
"Exatamente",
disse o homem, e piscou para eles. "Fico muito contente por vocês três
estarem aqui, mesmo um de vocês sendo de estatura tão inusitadamente baixa,
pois estamos inusitadamente carentes de mão-de-obra. Estou tão ocupado que
vocês terão de descobrir sozinhos como funciona o sistema."
"Sistema?",
perguntou Klaus.
"Este
lugar é tão complicado quanto é enorme", disse Frank, ou talvez Ernest,
"e vice-versa. Eu detestaria pensar no que poderia acontecer se vocês não
o entenderem."
Os
Baudelaire olharam cautelosos para o seu novo gerente, mas o rosto dele era absolutamente
insondável, uma palavra que aqui significa "sem expressão nenhuma, de modo
que os Baudelaire não podiam saber se ele estava lhes oferecendo um aviso amigável
ou uma ameaça sinistra".
"Tentaremos
fazer o melhor que pudermos", disse Violet baixinho.
"Bom",
disse o gerente, levando as crianças para o outro lado do enorme saguão.
"Vocês
ficarão ao inteiro dispor dos nossos hóspedes", continuou ele, usando uma
frase que significava que os hóspedes iriam mandar e desmandar nos Baudelaire.
"Se alguma pessoa, ou todas as pessoas aqui hospedadas, pedir ou pedirem
ajuda, vocês imediatamente se oferecerão para ajudar."
"Desculpe,
senhor", interrompeu um dos mensageiros. Estava segurando uma mala em cada
mão com uma expressão confusa. "Esta bagagem chegou em um táxi, mas o
motorista disse que o hóspede só vai chegar na quinta-feira. O que devo
fazer?"
"Quinta-feira?",
disse Frank ou Ernest franzindo a testa. "Com licença, concierges. Acho
que não preciso lhes dizer o quanto isso é importante. Volto logo."
O
gerente foi atrás do mensageiro no meio da multidão, deixando os Baudelaire sozinhos
ao lado de um grande banco de madeira identificado com o número 128. Klaus correu
a mão ao longo do banco, que tinha marcas circulares deixadas por pessoas que depositavam
ali suas taças sem usar descansos para copos.
"Você
acha que estávamos falando com Frank", disse Klaus, "ou com
Ernest?"
"Não
sei", disse Violet. "Ele usou a palavra 'voluntário'. Talvez seja
algum tipo de código."
"Quintinteresse",
disse Sunny, o que queria dizer "Ele sabia que a quinta-feira era importante."
"É
verdade", disse Klaus, "mas é importante para ele porque é um
voluntário, ou porque é um vilão?"
Antes
que qualquer das irmãs Baudelaire pudesse arriscar um palpite, uma expressão
que aqui significa "tentar responder à pergunta de Klaus", o gerente
alto e magricelo reapareceu ao lado deles.
"Vocês
devem ser os novos concierges", disse ele, e as crianças se deram conta de
que aquele era o outro irmão. "Bem-vindos ao Hotel Desenlace."
"Você
deve ser Ernest", tentou Violet.
"Ou
Frank", disse Sunny.
"Sim",
disse o gerente, muito embora não estivesse nada claro com quem ele estava
concordando. "Estou muito grato por vocês três estarem aqui. O hotel está
muito cheio no momento, e estamos esperando mais hóspedes para quinta-feira.
Agora, vocês vão ficar postados no balcão de concierges, número 175, logo ali.
Sigam-me."
As
crianças seguiram-no até a parede oposta do lobby, onde havia um grande balcão
de madeira bem abaixo do número 175, que fora pintado acima de uma enorme janela.
Sobre o balcão havia uma pequena luminária em forma de rã, e através da janela as
crianças podiam ver o horizonte cinzento e plano do mar.
"Temos
uma lagoa de um lado", disse Ernest, a não ser, é claro, que fosse Frank, "e
o mar do outro. Não parece muito seguro, e no entanto algumas pessoas acham que
este é sem dúvida um lugar muito seguro." Frank, a não ser que fosse
Ernest, olhou em volta apressadamente e baixou o tom de voz. "O que vocês
acham?"
Mais
uma vez, o rosto do gerente estava insondável, e as crianças não sabiam dizer
se a sua referência a um lugar seguro fazia dele um voluntário ou um vilão.
"Humm",
disse Sunny, o que muitas vezes é uma resposta segura, apesar de na realidade
não ser de todo uma resposta.
"Humm",
disse Frank ou Ernest em resposta. "Agora, deixem-me explicar como este
hotel é organizado."
"Desculpe,
senhor", disse uma mensageira, cujo rosto não dava para ver atrás da pilha
de jornais que carregava. "A última edição d'O Pundonor Diário
chegou."
"Deixe-me
ver", disse ou Ernest ou Frank, pinçando um exemplar do topo da pilha.
"Ouvi
dizer que Geraldine Julienne escreveu uma matéria atualizada sobre o caso Baudelaire."
Os
órfãos Baudelaire ficaram paralisados, mal se atrevendo a olhar um para o outro,
que dizer para o voluntário ou vilão em pé na frente deles, lendo a manchete em
voz alta.
'"RUMORES
ALERTAM: IRMÃOS BAUDELAIRE DE VOLTA À CIDADE'", disse ele. "'Conforme
informação recentemente descoberta por esta repórter ao abrir um biscoito,
Verônica, Klyde e Susie Baudelaire, os notórios assassinos do renomado ator conde
Olaf, estão de volta à cidade, talvez para cometer mais assassinatos cruéis, ou
para continuar com o seu mais recente passatempo: provocar incêndios
criminosos. Aconselha-se aos cidadãos que fiquem alerta a essas três crianças
sedentas de sangue e que as denunciem às autoridades quando avistadas. Se não
forem avistadas, aconselha-se aos cidadãos que nada façam.'" O gerente
voltou-se para os Baudelaire, o rosto insondável como sempre. "O que vocês
acham disso, concierges!"
"Esta
é uma pergunta interessante", replicou Klaus, com mais uma resposta muito segura.
"Fico
feliz por você achá-la interessante", retrucou Ernest ou Frank, com uma resposta
igualmente segura para a resposta segura de Klaus. Ele então voltou-se para a mensageira.
"Vou lhe mostrar a banca de jornais na Sala 168", disse ele, e
desapareceu com os jornais no meio da multidão, deixando os Baudelaire
sozinhos, em pé junto ao balcão e olhando para o mar.
"Acho
que esse era Ernest", disse Violet. "Seu comentário sobre a segurança
do hotel soou muito sinistro."
"Mas
ele não pareceu ficar alarmado com a matéria d’O Pundonor Diário", disse Klaus.
"Se Ernest é um inimigo de C.S.C. ele deve estar prevenido contra nós.
Portanto aquele homem provavelmente era Frank."
"Talvez
ele simplesmente não tenha nos reconhecido", disse Violet. "Afinal, poucas
pessoas reconhecem o conde Olaf quando ele está disfarçado, e seus disfarces não
são muito melhores que os nossos. Talvez estejamos mais parecidos com
concierges do que com os irmãos Baudelaire."
"Ou
talvez não estejamos parecidos de todo com os irmãos Baudelaire", disse Klaus.
"Como disse Kit, não somos mais crianças."
"Nidícola",
disse Sunny, o que queria dizer algo do gênero de "Eu acho que ainda sou
criança".
"É
verdade", admitiu Klaus sorrindo para a irmã, "porém, quanto mais
velhos ficamos, menor a probabilidade de que sejamos reconhecidos."
"Isso
irá facilitar as nossas incumbências", disse Violet.
"O
que você quer dizer com isso?", perguntou uma voz familiar, e os
Baudelaire viram que ou Frank ou Ernest havia retornado.
"O
que a minha colega queria dizer", respondeu Klaus, pensando depressa,
"é que para nós seria mais fácil começar o nosso trabalho como concierges
se nos explicasse como o hotel é organizado."
"Acabei
de dizer que faria isso", disse Frank num tom de voz aborrecido, ou Ernest
num tom de voz irritado. "Depois que vocês entenderem como funciona o
Hotel Desenlace, serão capazes de desempenhar suas incumbências com a mesma
facilidade com que encontrariam um livro em uma biblioteca. E se vocês sabem
como encontrar um livro em uma biblioteca, então já sabem como este hotel
funciona."
"Elucide",
disse Sunny.
"O
Hotel Desenlace é organizado de acordo com o Sistema Decimal Dewey", explicou
Frank ou Ernest. "É o mesmo modo de organização dos livros em muitas bibliotecas.
Por exemplo, se vocês quisessem encontrar um livro sobre poesia alemã, começariam
na seção da biblioteca marcada com o número 800, que contém livros sobre literatura
e retórica. De modo similar, o oitavo andar deste hotel é reservado aos nossos hóspedes
retóricos. Dentro da seção 800 de uma biblioteca, vocês encontrariam livros sobre
poesia alemã rotulados com o número 831, e se tomassem o elevador e entrassem no
quarto 831, encontrariam uma reunião de poetas alemães. Entenderam?"
"Acho
que sim", disse Klaus. Os três Baudelaire tinham passado tempo suficiente em
bibliotecas para estar familiarizados com o Sistema Decimal Dewey, porém mesmo
a vasta experiência de Klaus em pesquisas não significava que ele guardara na
memória o sistema inteiro. Não é necessário, é claro, memorizar o Sistema
Decimal Dewey a fim de usar uma biblioteca, porque a maioria das bibliotecas
possui catálogos, nos quais todos os livros estão listados em fichas ou em uma
tela de computador para torná-los fáceis de encontrar. "Onde podemos
encontrar o catálogo dos serviços do Hotel Desenlace?"
"Catálogo?",
repetiu Frank ou Ernest. "Vocês não vão precisar de um catálogo. Toda a
seção 100 de uma biblioteca é dedicada à filosofia e à psicologia, assim como o
primeiro andar do nosso hotel, do balcão de recepção, que é rotulado como 101,
ou teoria da filosofia, ao balcão de concierges, que é rotulado como 175, ou
ética da recreação e do lazer, e até os sofás ali adiante, que são rotulados
como 135, ou sonhos e mistérios, caso os nossos hóspedes desejem dar um cochilo
ou esconder alguma coisa embaixo das almofadas do sofá. O segundo andar é dos
200, ou religião, e ali temos uma igreja, uma catedral, uma capela, uma
sinagoga, uma mesquita, um templo, um santuário, uma quadra de malha, e o
quarto 296, atualmente ocupado por um rabino meio excêntrico. O terceiro andar
é das ciências sociais, onde se encontram os salões de baile e as salas de reunião;
o quarto andar é dedicado à linguagem, portanto a maioria dos nossos estrangeiros
fica lá. Os 500 são dedicados à matemática e à ciência, e o sexto andar é dedicado
à tecnologia, da sauna na Sala 613, que representa o fomento à saúde, à Sala 697,
que é onde mantemos os controles de aquecimento, ventilação e ar-condicionado. Agora,
se o sétimo andar representa as artes, o que vocês acham que vamos encontrar na
Sala 792, que representa as apresentações cênicas?"
Violet
quis amarrar o cabelo com uma fita para ajudá-la a pensar, mas ficou com medo
de ser reconhecida.
"Um
teatro?", disse ela.
"Você
obviamente já visitou uma biblioteca antes", disse o gerente, muito embora
as crianças não pudessem dizer se ele as estava elogiando ou ficando
desconfiado.
"Receio
que isto não se aplique a todos os nossos hóspedes. Então, quando eles precisam
de algum dos serviços de vocês, eles tocam a sineta para chamar um ou uma concierge
em vez de ficar perambulando sozinhos pelo hotel. Amanhã ou depois de amanhã,
no mais tardar, vocês provavelmente terão percorrido cada seção do hotel, do observatório
astronômico na Sala 999 ao alojamento dos empregados no subsolo, Sala 000."
"É
lá que vamos dormir?", perguntou Klaus.
"Bem,
o turno de vocês é de vinte e quatro horas por dia", disse Ernest, ou
talvez tenha sido Frank. "Mas o hotel fica muito silencioso à noite,
quando os hóspedes vão dormir, ou passam a noite inteira acordados lendo. Vocês
podem tirar um cochilo atrás do balcão, e quando alguém tocar a sineta, ela
servirá de despertador."
Frank
parou de falar, ou quem sabe tenha sido Ernest, e correu os olhos rapidamente
pelo salão antes de se inclinar para perto dos Baudelaire. Os três irmãos, nervosos,
olharam de volta para Ernest através dos seus óculos escuros, ou talvez tenha sido
para Frank.
"A
posição de concierge", disse ele em seu tom insondável, "constitui
uma excelente oportunidade para observar silenciosamente os arredores. As
pessoas tendem a tratar os funcionários do hotel como se fossem invisíveis,
portanto vocês terão a oportunidade de ver e ouvir um bocado de coisas
interessantes. No entanto, vocês devem se lembrar de que também terão muitas
oportunidades de ser observados. Será que fui claro?"
Dessa
vez foi Violet que precisou dar uma resposta segura.
"Humm",
disse ela. "Esta é uma pergunta interessante."
Fosse
Frank ou Ernest, ele apertou os olhos para a mais velha dos Baudelaire, e parecia
estar prestes a dizer alguma coisa quando os órfãos subitamente ouviram alguns sons
fortes e penetrantes.
"A-rá!",
exclamou o gerente. "O trabalho começou!
Os
irmãos deram a volta, seguindo Ernest ou Frank, até o outro lado do balcão, e Frank
ou Ernest apontou para uma grande rede de sinetas diminutas, cada qual não maior
que um dedal, que forravam a parte de trás de um balcão, onde deveriam estar puxadores
de gavetas. Cada sineta tinha um número, de 000 a 999, com uma sineta extra que
não tinha número nenhum. Aquela sineta extra estava tocando, juntamente com a sineta
de número 371 e a sineta de número 674.
"Tocando!",
exclamou ele, fosse Ernest ou Frank. "Tocando! Eu não deveria precisar
dizer a vocês que a sineta é o sinal. Não podemos deixar os nossos hóspedes esperando
nem por um instante. Vocês podem saber qual hóspede está chamando pelo número
da sineta. Se o número escrito na sineta for 469, por exemplo, vocês ficam sabendo
que um dos nossos hóspedes portugueses requer a sua ajuda. Vocês estão prestando
atenção? A sineta número 674 se refere aos nossos associados na indústria madeireira,
assim como o número 674 significa processamento de madeira ou produtos de
madeira no Sistema Decimal Dewey. Não podemos transformar em inimigos os nossos
hóspedes importantes! O número 371 indica hóspedes educacionais. Por favor,
sejam gentis com eles também, muito embora sejam muito menos importantes.
Atendam a todos os nossos hóspedes, sempre que ouvirem aquela sineta!"
"Mas
a que se refere aquela sineta sem identificação?", perguntou Klaus.
"O Sistema Decimal Dewey não vai além de 999."
O
gerente fechou a cara, como se o Baudelaire do meio tivesse lhe dado a resposta
errada.
"É
do salão de bronzeamento da cobertura", disse ele. "As pessoas que
tomam banho de sol normalmente não estão interessadas em biblioteconomia,
portanto não são tão exigentes quanto à localização do salão. Agora,
mexam-se!"
"Mas
aonde vamos primeiro?" disse Violet. "Há hóspedes requerendo ajuda em
três lugares ao mesmo tempo."
"Vocês
vão ter de se separar, é claro", respondeu Frank ou Ernest, tão insondável
como sempre. "Cada concierge escolhe um hóspede e corre para o local
indicado. Peguem os elevadores — eles estão no 118, ou força e energia."
"Desculpe,
senhor", disse mais um mensageiro, dando um tapinha nas costas de Ernest
ou Frank. "Um banqueiro está ao telefone, e quer falar com um dos gerentes
imediatamente."
"É
melhor eu ir trabalhar", disse o gerente, "e vocês também,
concierges. Circulando!"
"Circulando"
é uma expressão usada por pessoas incapazes da cortesia de dizer alguma coisa
mais polida, como "Se você não precisa de mais nada, tenho de ir", ou
"Sinto
muito, mas vou ter de lhe pedir que vá embora, por favor", ou até mesmo
"Desculpe, mas creio que você confundiu a minha casa com a sua, e os meus
mais valiosos pertences com os seus, e devo solicitar-lhe que me devolva os
itens em causa, e saia da minha casa, depois de me desamarrar desta cadeira,
pois não consigo fazer isso sozinho, se não for incômodo". As crianças não
ficaram felizes em ser dispensadas de um modo tão grosseiro, nem ficaram
felizes em saber que o emprego como concierge iria envolver um método
organizacional tão complicado em um hotel tão imenso e desconcertante. Eles não
ficaram felizes por não ter conseguido distinguir entre o gerente que era Frank
e o que era Ernest, e não ficaram felizes em saber que O Pundonor Diário estava
alertando os cidadãos da cidade sobre a chegada dos Baudelaire, e com o fato de
que alguém poderia reconhecê-los a qualquer momento e mandar prendê-los pelos
crimes que não tinham cometido. Porém, mais que tudo, os Baudelaire não ficaram
felizes com a idéia de se separar e desempenhar incumbências diferentes naquele
hotel desconcertante. Eles esperavam desempenhar suas obrigações como
concierges e flâneurs juntos, e a cada passo na direção dos elevadores ficavam
mais infelizes com a idéia de deixar os outros para trás.
"Eu
vou para o salão de bronzeamento da cobertura", disse Violet tentando ser valente.
"Klaus, por que você não fica com o quarto 674, e você, Sunny, com o quarto
371? Vamos nos encontrar no balcão de concierges quando terminarmos."
"Desse
jeito, conseguiremos observar mais", disse Klaus, esperançoso. "Se
nós três ficarmos em andares diferentes, poderemos encontrar o impostor muito
mais depressa."
"Inseguro",
disse Sunny, o que queria dizer alguma coisa parecida com "Eu prefiro não
encontrar o impostor se estiver sozinha".
"Você
estará em segurança, Sunny", disse Klaus. "Este hotel é muito
parecido com uma grande biblioteca."
"Sim",
disse Violet. "E qual é a pior coisa que pode acontecer em uma
biblioteca?"
Os
dois Baudelaire mais jovens não responderam, e os três concierges ficaram em
silêncio por alguns momentos, olhando fixamente para uma pequena placa perto
das portas deslizantes dos elevadores. Quando um par de portas finalmente se
abriu, as crianças entraram e pressionaram os botões apropriados para chegar a
seus hóspedes, e quando o pequeno elevador começou a subir, lembraram-se do
poço do elevador na Avenida Sombria 667, que fora preciso escalar diversas
vezes. Os Baudelaire tinham aprendido qual a pior coisa que pode acontecer em
um poço de elevador, que era ser atirado num deles por uma namorada vilanesca.
Os Baudelaire tinham aprendido qual a pior coisa que pode acontecer em uma
serraria, que era ser forçado a causar um acidente violento por meio do poder
sinistro do hipnotismo. E os Baudelaire tinham aprendido qual a pior coisa que
pode acontecer em uma escola, que era encontrar alguns amigos queridos, somente
para vê-los arrastados para longe em um comprido automóvel negro.
Os
órfãos tinham aprendido qual a pior coisa na casa de um herpetologista, e qual
a pior coisa numa cidade pequena, e num hospital, e num parque de diversões, e
no pico de uma montanha, e num submarino, e numa caverna, e no meio das
correntezas de uma torrente impetuosa, e dentro do porta-malas de um carro, e
num fosso cheio de leões, e numa passagem secreta, e em muitos, muitos outros
lugares sinistros nos quais preferiam nem pensar.
Em
todos esses perigos que encontraram, e nos incontáveis outros perigos além desses,
eles sempre acharam uma biblioteca de um tipo ou de outro, onde conseguiram descobrir
as informações necessárias para salvar a pele, uma expressão que aqui significa
"mantê-los vivos para o próximo capítulo terrível de suas vidas". Mas
agora o novo lar dos Baudelaire era uma biblioteca — estranha, é claro, mas
mesmo assim uma biblioteca —, e, enquanto o elevador silencioso os conduzia aos
seus diversos destinos, eles não sentiram vontade de perguntar a si mesmos qual
a pior coisa que poderia acontecer em uma biblioteca, especialmente depois de
ler as primeiras quatro palavras da pequena placa afixada na parede. EM CASO DE
INCÊNDIO, dizia a placa; e, enquanto os órfãos Baudelaire seguiam cada um o seu
caminho, não sentiram vontade nenhuma de pensar naquilo.
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