Capítulo 4
A expressão ‘’servir como uma luva’’ é estranha, porque existem
muitos tipos diferentes de luvas, mas apenas algumas vão se ajustar às
situações que se apresentam. Se você precisa manter as mãos aquecidas em um
ambiente frio, então vai precisar de um par de luvas com isolamento térmico bem
ajustadas, e uma luva feita para caber na cômoda de uma casa de bonecas não
ajudaria. Se você precisa entrar sorrateiramente em um restaurante japonês no
meio da noite para furtar um par de hashis sem ser descoberto, então vai
precisar de um par de luvas finas que não deixem vestígios, e uma luva
ornamentada com guizos barulhentos não serviria. E se você precisa passar
desapercebido em uma paisagem coberta de arbustos, então vai precisar de uma
luva muito, muito grande, feita de tecido folhoso, e um elegante par de luvas
de seda seria inteiramente inútil.
Todavia, a expressão ‘’servir como uma luva’’ significa
simplesmente que alguma coisa é muito adequada, assim como um pudim é adequado
como sobremesa, ou um par de hashis é um instrumento adequado para remover
papéis de uma pasta aberta.
E quando os órfãos Baudelaire vestiram os uniformes do Queequeg,
descobriram que eles serviam como uma luva, a despeito de, na verdade, não
caírem muito bem. Violet ficou tão satisfeita com o fato de os uniformes terem
diversas laçadas em volta da cintura, perfeitas para pendurar ferramentas, que
nem se importou com o fato de as mangas formarem barriga nos cotovelos. Klaus
ficou feliz porque havia um bolso à prova d'água para seu livro de lugar-comum,
e nem se importou com o fato de as botas terem ficado um pouquinho apertadas. E
Sunny assegurou-se de que o material lustroso era robusto o bastante para
resistir, além da água, a eventuais respingos na cozinha, e nem se importou com
o fato de que precisava dobrar as pernas do traje quase até o fim para poder
andar. Porém havia algo mais, além das características individuais dos
uniformes, que dava aquela sensação de adequação — era o lugar e as pessoas que
eles representavam. Durante um longo tempo, os Baudelaire se sentiram como um disco
de frisbee danificado, lançado de uma pessoa a outra sem ser apreciado, e de um
lugar a outro sem se encaixar nos ambientes. Mas quando fecharam os zíperes dos
uniformes e alisaram os retratos de Herman Melville, as crianças se sentiram
como se o frisbee de suas vidas pudesse de repente ser consertado.
Usando os uniformes do Queequeg, os irmãos sentiam-se parte de
alguma coisa — não exatamente de uma família, mas de um encontro de pessoas que
se ofereceram como voluntárias para a mesma missão. Pensar que suas habilidades
de inventar, pesquisar e cozinhar seriam apreciadas era algo que não lhes
ocorria há tempos, e em pé na sala de suprimentos, olhando atentamente um para
o outro, essa sensação lhes serviu como uma luva.
― Vamos voltar ao salão
principal? ― perguntou Violet. ― Estou pronta para dar uma olhada no
dispositivo telegráfico.
― Deixe-me só afrouxar as
fivelas dessas botas ― disse Klaus, ― e estarei pronto para lidar com aquelas
cartas náuticas.
― Cuisi... ― disse Sunny.
Com ‘’cuisi’’? ela queria dizer algo como: ‘’Não vejo a hora de examinar a
cozi...’’, mas o ruído estridente de alguma coisa raspando, vindo de cima dela,
impediu a mais jovem dos Baudelaire de terminar a frase. O submarino inteiro
pareceu sacudir, e algumas gotas d'água caíram do teto sobre a cabeça dos
Baudelaire.
― O que foi aquilo? ―
perguntou Violet, pegando um capacete de mergulho. ― Você acha que estourou um
vazamento no Queequeg!
― Eu não sei ― disse Klaus,
pegando um capacete para ele e outro para Sunny. ― Vamos investigar.
Os três Baudelaire voltaram às pressas pelo corredor para o salão
principal, enquanto o ruído horripilante continuava. Se você já ouviu o som
estridente de unhas raspando contra uma lousa, sabe como pode ser enervante
esse ruído; e para as crianças ele soava como se as maiores unhas do mundo
tivessem confundido o submarino com um item de equipamento educacional.
― Capitão Andarré! ― gritou
Violet por cima do ruído estridente, assim que os Baudelaire entraram no salão.
O capitão ainda estava no topo da escada, agarrado à roda de direção com a mão
enluvada. ― O que está acontecendo?
― Esse maldito mecanismo de
direção só dá vexame! ― bradou o capitão, enojado. ― Positivo! O Queequeg acaba
de colidir com uma formação rochosa na margem do arroio. Se eu não tivesse
conseguido recuperar o controle, o Submarino Q e Sua Tripulação de Dois
estariam dormindo com os peixes! Positivo!
― Talvez eu deva examinar o
mecanismo de direção primeiro ― disse Violet, ― e consertar o dispositivo
telegráfico depois.
― Não seja ridícula! ―
disse o capitão. ― Se não pudermos receber os boletins do Correio Sub-reptício
Cooperativo, será o mesmo que sairmos por aí às tontas de olhos vendados! Temos
de encontrar o açucareiro antes do conde Olaf! Positivo! Nossa segurança
pessoal não é nem de longe tão importante! Agora corram! Positivo! Chispem!
Positivo! Tomem uma atitude! Positivo! Tomem um copo d'água! Positivo! Aquele
ou aquela que vacila está perdido!
Violet não se deu ao trabalho de salientar que seria impossível
encontrar o açucareiro se o submarino fosse destruído, e já sabia que era
melhor não discutir a filosofia de vida do capitão.
― Vale uma tentativa ―
disse ela, e foi até a pequena plataforma de rodas. ― Se importa se eu usar
isso? ― perguntou a Fiona. ― Vai me ajudar a dar uma boa olhada no mecanismo do
dispositivo.
― Fique à vontade ― disse
Fiona. ― Klaus, vamos trabalhar nas cartas náuticas. Podemos estudá-las na mesa
e enquanto isso ficar de olho para ver se vislumbramos o açucareiro através da
vigia. Não creio que vamos encontrá-lo, mas vale dar uma olhada.
― Fiona ― disse Violet
hesitante, ― você poderia também ficar de olho para ver se vislumbra nosso
amigo Quigley Quagmire? Ele foi arrastado pelo outro afluente do arroio, e não
o vimos mais desde então.
― Quigley Quagmire? Sério?
― perguntou Fiona. ― O cartógrafo?
― É nosso amigo ― disse
Klaus. ― Você o conhece?
― Só de reputação ― disse
Fiona, usando uma expressão que aqui significa ‘’não o conheço pessoalmente,
mas ouvi falar do trabalho que faz’’. ― Os voluntários perderam a pista dele
muito tempo atrás, juntamente com Hector e os outros trigêmeos Quagmire.
― Os Quagmire não tiveram a
mesma sorte que nós ― disse Violet, amarrando o cabelo com uma fita para
ajudá-la a se concentrar no conserto do dispositivo telegráfico. ― Espero que
você o localize com o periscópio.
― Vale a tentativa ― disse
Fiona, quando Phil entrou pela porta da cozinha com um avental por cima do
uniforme.
― Sunny? ― perguntou ele. ―
Me disseram que você vai me ajudar na cozinha. Estamos com o estoque de
provisões um pouco baixo, receio. Consegui apanhar alguns bacalhaus com as
redes do Queequeg, e temos meio saco de batatas, mas não muito mais. Você tem
alguma idéia do que fazer para o jantar?
― Sopão? ― perguntou Sunny.
― Vale a tentativa ― disse
Phil, e nas próximas poucas horas todos os três Baudelaire tentaram ver se suas
tarefas valiam a tentativa. Violet, que rolara para baixo das tubulações para
dar uma boa olhada no dispositivo telegráfico, franzia o cenho enquanto torcia
fios e apertava parafusos com uma chave de fenda que encontrara largada. Klaus,
sentado à mesa, examinava as cartas náuticas, usando um lápis para traçar
caminhos possíveis que o açucareiro poderia ter tomado quando o ciclo das águas
o arrastara aos trambolhões pelo Arroio Enamorado. E Sunny, em pé para alcançar
o balcão da pequena e encardida cozinha, trabalhava com Phil sobre um grande
caldeirão de sopa, cozinhando batatas e catando espinhas no bacalhau. E quando
a tarde se tornou noite, e as águas do Arroio Enamorado ficaram ainda mais
escuras pela vigia, o salão principal do Queequeg estava em silêncio enquanto
todos os voluntários trabalhavam nas tarefas de que foram incumbidos. Porém,
mesmo quando o capitão Andarré desceu a escada, retirou um pequeno sino do
bolso do uniforme e a sala se encheu de ecos do re-pique forte e metálico, os
Baudelaire ainda não podiam saber com certeza se todos seus esforços tinham
valido a tentativa.
― Atenção! ― disse o
capitão. ― Positivo! Quero que toda a tripulação do Queequeg faça um relatório
dos progressos! Reúnam-se ao redor da mesa e contem-me o que está acontecendo!
― Violet rolou para fora do dispositivo telegráfico e reuniu-se ao irmão e a
Fiona na mesa, enquanto Sunny e Phil emergiam da cozinha.
― Eu relato primeiro! ―
disse o capitão. ― Positivo! Porque sou o capitão! Não porque quero me exibir!
Positivo! Eu tento não me exibir demais! Positivo! Porque isso é falta de
educação! Positivo! Eu consegui manobrar e nos levar mais adiante pelo Arroio
Enamorado abaixo, sem colidir com mais nada! Positivo! O que é muito mais
difícil do que parece! Positivo! Chegamos ao mar! Positivo! Agora vai ficar
mais fácil não colidir com nada! Positivo! Violet, e quanto a você?
― Bem, examinei
minuciosamente o dispositivo telegráfico ― disse ela. ― Fiz alguns pequenos
reparos, mas não encontrei nada que pudesse interferir na recepção de um
telegrama.
― Você quer dizer que o
dispositivo não está quebrado, positivo? ― demandou o capitão.
― Positivo ― disse Violet,
mais à vontade com o modo de falar do capitão. ― Acho que deve haver um
problema na outra ponta.
― Procto? ― perguntou Sunny,
o que queria dizer: ‘’Na outra ponta?’’.
― Um telegrama requer dois
dispositivos ― disse Violet. ― Um para enviar e outro para receber a mensagem.
Acho que você não está recebendo os boletins do Correio Sub-reptício
Cooperativo porque quem envia as mensagens está com um problema na máquina.
― Mas todos os tipos de
voluntários nos enviam mensagens ― disse Fiona.
― Positivo! ― disse o
capitão. ― Já recebemos boletins de mais de vinte e cinco agentes!
― Então muitas máquinas
devem estar danificadas ― retrucou Violet.
― Sabotagem ― disse Klaus.
― Parece que o dano foi
causado de propósito ― concordou Violet. ― Lembra-se de quando enviamos um
telegrama ao senhor Poe, do Armazém Geral Última Chance?
― Mutis ― disse Sunny , o
que queria dizer: ‘’Não tivemos nenhuma resposta’’.
― Eles estão se aproximando
― disse o capitão, soturno. ― Nossos inimigos estão impedindo que nos
comuniquemos.
― Não vejo como o conde
Olaf poderia ter tempo para destruir todas aquelas máquinas ― disse Klaus.
― Muitos telegramas são
transmitidos por linhas telefônicas ― disse Fiona. ― Não seria difícil.
― Além disso, Olaf não é o
único inimigo ― disse Violet, pensando nos dois outros vilões que os Baudelaire
tinham encontrado no Cume das Aflições.
― Positivo! ― disse o
capitão. ― Isso é certeza. O mal que existe por aí, não dá nem para imaginar.
Klaus, você fez algum progresso com as cartas náuticas? ― Klaus abriu uma carta
náutica em cima da mesa para que todos pudessem ver. A carta era na realidade
um mapa, que mostrava o Arroio Enamorado a serpentear pelas montanhas antes de
chegar ao mar, com setinhas diminutas e notas que descreviam o modo como a água
se movimentava. As setas e notas eram de várias cores diferentes, como se a
carta tivesse passado de pesquisador a pesquisador, cada qual adicionando notas
à medida que descobriam mais informações sobre a área. ― É mais complicado do
que eu pensava ― disse o Baudelaire do meio, ― e muito mais maçante. Essas
cartas registram cada detalhe do ciclo das águas.
― Maçante! ― rugiu o
capitão. ― Positivo? Estamos no meio de uma missão desesperada e tudo o que
você consegue pensar é no seu próprio divertimento? Positivo? Quer que nós
vacilemos! Que interrompamos nossas atividades e apresentemos um espetáculo de
marionetes só para você não achar este submarino maçantes.
― Você me entendeu mal ―
Klaus apressou-se em explicar. ― Eu só queria dizer que fica mais fácil
pesquisar uma coisa se ela for interessante.
― Você parece Fiona ― disse
o capitão. ― Quando quero que ela pesquise a vida de Herman Melville, ela
trabalha devagar, mas é rápida como um raio quando o assunto é cogumelos.
― Cogumelos? ― perguntou
Klaus. ― Por acaso você é micetologista? ― Fiona sorriu, e seus olhos se
arregalaram atrás dos óculos triangulares. ― Nunca pensei que encontraria
alguém que conhecesse essa palavra ― disse ela.
― Além de mim. Sim, sou
micetologista. Me interessei por fungos a vida inteira. Se tivermos tempo, vou
mostrar a você minha biblioteca micetológica.
― Tempo? ― repetiu o
capitão Andarré. ― Nós não temos tempo para livros de fungos! Positivo! Também
não temos tempo para vocês dois ficarem aí nesse namorico!
― Não é namorico! ― disse
Fiona. ― Estamos conversando.
― A mim, pareceu namorico ―
disse o capitão. ― Positivo!
― Que tal nos contar sobre
sua pesquisa? ― disse Violet a Klaus, sabendo que o irmão iria preferir
discorrer sobre cartas náuticas a falar sobre a sua vida pessoal. Klaus sorriu
para ela agradecido e apontou para um local na carta.
― Se meus cálculos
estiverem corretos ― disse ele, ― o açucareiro deve ter sido arrastado pelo
mesmo afluente que descemos. As correntes prevalecentes do arroio levam
diretamente até aqui embaixo, onde começa o mar.
― Portanto ele foi
arrastado para o mar ― disse Violet.
― É o que acho ― disse
Klaus. ― E podemos ver aqui que as marés o afastariam da costa Sontag na
direção noroeste.
― Pique? ― perguntou Sunny,
o que queria dizer algo do tipo: ‘’O açucareiro não deveria simplesmente cair
em direção ao fundo do oceano?’’.
― Ele é muito pequeno ―
disse Klaus. ― Os oceanos estão em movimento constante, e um objeto que cai no
mar pode acabar indo parar a quilômetros de distância.
Parece que as marés e correntes nesta parte do oceano levariam o
açucareiro para além do arquipélago de Gulag, aqui, e depois descendo na
direção da Medíocre Barreira de Recifes, antes de virar neste ponto aqui,
assinalado como ‘’A.A.’’ Sabe o que é isso, capitão? Parece algum tipo de
estrutura flutuante. ― O capitão suspirou e ergueu um dedo para brincar com as
pontas viradas do bigode.
― Positivo ― disse ele
tristemente. ― Aquáticos Anwhistle. É uma central de pesquisas marinhas e
serviços de aconselhamento retórico — ou pelo menos era. Foi incendiada.
― Anwhistle? ― perguntou
Violet. ― Esse era o sobrenome da tia Josephine.
― Positivo ― disse o
capitão. ― A Aquáticos Anwhistle foi fundada por Gregor Anwhistle, o famoso
icnólogo, cunhado de Josephine. Mas tudo isso é história antiga. Para onde foi
o açucareiro depois?
Os Baudelaire teriam preferido saber mais, no entanto não
adiantava discutir com o capitão, e Klaus apontou para um pequeno oval na carta
antes de continuar seu relatório.
― Essa é a parte que me
deixa confuso ― disse ele. ― Está vendo esse oval, bem ao lado da Aquáticos
Anwhistle? Está assinalado com 'G.G.', mas não existe outra explicação.
― G.G.? ― disse o capitão
Andarré, e cofiou o bigode, pensativo. ― Nunca vi um oval como esse em uma
carta náutica como essa.
― Há mais uma coisa confusa
― disse Klaus, examinando o oval. ― Dentro dele há duas setas diferentes, cada
qual apontando para uma direção diferente.
― Parece que a maré está
indo em duas direções ao mesmo tempo ― disse Fiona.
Violet franziu o cenho.
― Isso não faz nenhum sentido
― disse.
― Também estou confuso ―
disse Klaus. ― De acordo com meus cálculos, o açucareiro foi arrastado
diretamente para esse lugar no mapa. Mas para onde foi dali, nem imagino.
― Acho que devíamos traçar
um curso para G.G., seja lá o que for isso ― disse Violet, ― e ver o que
encontramos ao chegar lá.
― Eu sou o capitão! ―
bradou o capitão. ― Eu dou as ordens por aqui! Positivo! E ordeno que tracemos
um curso para aquele oval, para ver o que encontramos ao chegar lá! Mas,
primeiro, estou com fome! E com sede! Positivo! E meu braço está coçando! Posso
coçar meu próprio braço, mas vocês, Cuque e Sunny, são os responsáveis pela
comida e pela bebida! Positivo!
― Sunny me ajudou a fazer
um sopão de peixe que deve ficar pronto em poucos minutos ― disse Phil. ― Os
dentes dela foram muito úteis para picar as batatas cozidas.
― Pastafio ― disse Sunny, o
que queria dizer: ‘’Não se preocupem, limpei bem os dentes antes de usá-los
como utensílios de cozinha’’.
― Sopão? Positivo! Sopão
soa delicioso! ― bradou o capitão. ― E a sobremesa? Positivo? A sobremesa é a
refeição mais importante do dia! Positivo! Na minha opinião! Apesar de não ser
realmente uma refeição! Positivo!
― Para esta noite, a única
sobremesa que temos é chiclete. ― disse Phil. ― Ainda tenho um pouco que sobrou
dos meus tempos de serraria.
― Acho que dispenso a
sobremesa ― disse Klaus, que passara momentos tão terríveis na Serraria
Alto-Astral que não tinha mais gosto para chicletes.
― Iomuledet ― disse Sunny.
Ela queria dizer: ‘’Não se preocupem, Phil e eu arranjamos uma sobremesa
surpresa para amanhã à noite’’, mas é claro que somente seus irmãos podiam
entender o inusitado jeito de falar da mais jovem dos Baudelaire. No entanto,
assim que Sunny falou, o capitão Andarré levantouse da mesa e começou a soltar
brados de perplexidade.
― Positivo! ― bradou ele. ―
Meu Deus! Santo Buda! Charles Darwin! Duke Ellington! Positivo! Fiona, pare os
motores! Positivo! Violet, verifique se o dispositivo telegráfico está desligado!
Positivo! Klaus! Recolha seus materiais e não deixe nada solto por aí!
Positivo! Acalmem-se! Trabalhem depressa! Sem pânico! Socorro! Positivo!
― O que está acontecendo? ―
perguntou Phil.
― O que foi, padrasto? ―
perguntou Fiona.
Dessa vez, o capitão ficou em silêncio e simplesmente apontou para
uma tela na parede do submarino. A tela parecia uma folha de papel
quadriculado, iluminada por uma luz verde, com uma letra Q luminescente no
centro.
― Aquilo se parece com um
detector por sonar ― disse Violet.
― Aquilo é um detector por
sonar ― disse Fiona. ― Podemos perceber se alguma outra embarcação submersível
se aproxima de nós, detectando os ruídos que produz. O Q representa o Queequeg
e...
A micetologista interrompeu-se, engolindo em seco, e os Baudelaire
olharam na direção em que ela apontava. Bem no topo do painel havia outro
símbolo luminescente, que se movia célere na tela em sentido descendente, uma expressão
que aqui significa ‘’diretamente na direção do Queequeg’’. Fiona não disse o
que representava aquele símbolo verde, e as crianças não suportariam perguntar.
Era um olho, encarando fixamente os assustados voluntários e agitando as longas
e esquálidas pestanas que se projetavam para todos os lados.
― Olaf! ― disse Sunny num
sussurro.
― Não há como saber com
certeza ― disse Fiona, ― mas é melhor seguirmos as ordens do meu padrasto. Se
for outro submarino, também tem um detector por sonar. Se o Queequeg ficar em
silêncio absoluto, eles não terão idéia de que estamos aqui.
― Positivo! ― disse o
capitão. ― Depressa! Aquele que vacila está perdido!
Ninguém se deu ao trabalho de acrescentar ‘’ou aquela’’ à
filosofia de vida do capitão, em vez disso, todos se apressaram em silenciar o
submarino. Fiona escalou a escada de corda e desligou o motor ronronante.
Violet rolou de volta para dentro do mecanismo do dispositivo telegráfico e
desligou-o. Phil e Sunny correram para a cozinha e desligaram o fogão, para que
nem mesmo o borbulhar do sopão caseiro denunciasse o Queequeg. E Klaus e o
capitão recolheram os materiais de cima da mesa para que nada produzisse o mais
leve chacoalhar. Em poucos instantes, o submarino ficou silencioso como um
túmulo, e todos os voluntários se postaram mudos junto à mesa, olhando através
da vigia para a tenebrosa água do mar. Quando o olho na tela do sonar chegou
mais perto do Q, eles puderam ver algo emergindo das águas escuras — uma forma estranha
que ficava mais clara à medida que se aproximava do Queequeg. Era, de fato,
outro submarino, de um tipo que os Baudelaire nunca tinham visto antes, nem
mesmo no mais estranho dos livros. Era muito, muito maior que o Queequeg e, com
sua aproximação, as crianças tiveram de cobrir a boca para impedir que seu
grito de susto fosse ouvido.
O segundo submarino tinha a forma de um polvo gigante, com uma enorme
cúpula de metal no lugar da cabeça e duas grandes vigias em vez de olhos. Um polvo
de verdade, é claro, tem oito tentáculos, mas aquele submarino tinha muito mais.
Aquilo que na tela do sonar lembrava pestanas era na verdade uma série de
pequenos tubos de metal que se projetavam do corpo do polvo e giravam na água,
produzindo milhares de bolhas que disparavam para a superfície como se estivessem
com medo da embarcação submersível. O polvo chegou mais perto, e todos os seis
passageiros do Queequeg permaneceram em pé, parados como estátuas, esperando
que o submarino não os tivesse descoberto. A estranha embarcação estava tão
próxima que os Baudelaire podiam ver uma figura indistinta dentro de um dos
olhos do polvo — uma figura alta, magra, e muito embora as crianças não
conseguissem distinguir mais detalhes, não restava a menor dúvida de que ela
tinha uma sobrancelha no lugar de duas, unhas imundas em vez de bons hábitos de
higiene pessoal, e a tatuagem de um olho no tornozelo esquerdo.
― Conde Olaf ― sussurrou
Sunny antes que pudesse se conter. A figura na vigia estremeceu, como se o
pequenino ruído de Sunny tivesse permitido que o outro submarino detectasse o
Queequeg. Expelindo bolhas, o polvo chegou ainda mais perto, e parecia que a
qualquer momento se ouviria um de seus tentáculos raspando a carcaça do
Queequeg. As três crianças baixaram os olhos para seus capacetes, que tinham
deixado no chão, e se perguntaram se deveriam colocálos, para que pudessem
sobreviver caso o submarino implodisse. Fiona agarrou o braço do padrasto, mas
o capitão Andarré sacudiu a cabeça em silêncio e apontou de novo para a tela do
sonar. O olho e o Q estavam quase um em cima do outro na tela, mas não era isso
que o capitão estava mostrando.
Havia uma terceira forma verde luminescente, esta a maior de
todas, um enorme tubo recurvo com um pequeno círculo na ponta, resvalando qual serpente
na direção do centro da tela. Mas aquela terceira embarcação submergível não
parecia uma serpente. À medida que se aproximava do olho e do Q, o pequeno
círculo que abria caminho com seu enorme tubo recurvo em direção ao Queequeg e
seus assustados tripulantes voluntários se assemellhava mais e mais a um ponto
de interrogação. Os Baudelaire olharam para aquela nova, terceira forma, que se
aproximava deles em fantasmagórico silêncio, e se sentiram como se estivessem a
ponto de ser consumidos pelas próprias perguntas que tentavam responder.
O capitão Andarré apontou novamente para a vigia, e as crianças
viram o polvo parar, como se também ele tivesse detectado a estranha terceira
forma. Então os tentáculos do polvo giraram ainda com mais fúria, e o bizarro
submarino começou a recuar para fora do campo visual, uma expressão que aqui
significa ‘’se dirigir às pressas para um lugar onde da vigia do Queequeg não
seria mais possível vê-lo’’. Os Baudelaire olharam para a tela do sonar e viram
o ponto de interrogação seguir o brilhante olho verde em silêncio, até que
ambas as formas desapareceram do detector e o Queequeg ficou sozinho. Os seis
passageiros aguardaram um momento e depois soltaram um suspiro de alívio.
― Ele se foi ― disse
Violet. ― O conde Olaf não nos achou.
― Eu sabia que estaríamos
em segurança ― disse Phil, otimista como de costume. ― De qualquer modo, é
provável que Olaf esteja de bom humor.
Os Baudelaire não se deram ao trabalho de dizer que seu inimigo só
ficava de bom humor quando um de seus planos pérfidos ia bem ou quando a enorme
fortuna deixada pelos Baudelaire pais estava a ponto de cair em suas mãos imundas.
― O que foi aquilo,
padrasto? ― disse Fiona. ― Por que ele foi embora?
― O que era aquela terceira
forma? ― perguntou Violet.
O capitão sacudiu a cabeça mais uma vez.
― Uma coisa muito ruim ― disse
ele. ― Pior ainda que Olaf, provavelmente. Eu bem que disse a vocês, crianças Baudelaire:
o mal que existe por aí, não dá nem para imaginar.
― Nós não precisamos
imaginar ― disse Klaus. ― Nós o vimos ali na tela.
― Aquela tela não é nada ―
disse o capitão. ― É só um item de equipamento, positivo? Um filósofo disse que
a vida inteira não passa de sombras. Ele disse que as pessoas estavam apenas
sentadas em uma caverna, observando sombras na parede. Positivo, sombras de
alguma coisa muito maior e mais imponente que elas. Bem, aquele detector por
sonar é como a parede de nossa caverna, mostra formas de coisas muito mais
poderosas e aterradoras.
― Não entendi ― disse
Fiona.
― Eu não quero que você
entenda ― disse o capitão, passando o braço em volta dela. ― É por isso que não
contei a você por que o açucareiro é tão especialmente crucial. Certos segredos
neste mundo são terríveis demais para que gente jovem os conheça, mesmo quando
esses segredos vão chegando cada vez mais perto. Positivo! De qualquer modo,
estou com fome. Positivo! Vamos comer?
O capitão tocou outra vez o sino, e os Baudelaire tiveram a
sensação de ter acordado de um sono profundo.
― Vou servir o sopão ―
disse Phil. ― Vamos, Sunny, que tal me ajudar?
― Vou acionar os motores de
novo ― disse Fiona, e começou a subir a escada de corda. ― Violet, há uma
gaveta na mesa cheia de prataria. Talvez você e seu irmão possam pôr a mesa.
― É claro ― disse Violet,
mas, ao virar-se para o irmão, franziu o cenho. O Baudelaire do meio examinava
a carta náutica com uma expressão ultraconcentrada. Seus olhos brilhavam tanto
por trás dos óculos que até ficaram parecidos com os símbolos luminescentes do
detector por sonar. ― Klaus? ― disse ela.
Klaus não respondeu e dirigiu o olhar para o capitão Andarré.
― Posso não saber por que o
açucareiro é importante ― disse ele, ― mas acabo de descobrir onde ele está.
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