Capítulo 4
Quando
o elevador finalmente atingiu a cobertura e as portas se abriram para permitir
que ela saísse, Violet Baudelaire tinha duas razões para estar grata por seu uniforme
de concierge incluir óculos escuros. Para começar, o salão de bronzeamento da cobertura
era muito, muito luminoso. A bruma matinal, tão espessa quando os Baudelaire chegaram
à Praia de Sal, tinha desaparecido, e os raios do sol da tarde iluminavam a cidade
inteira, refletindo-se em cada objeto reluzente, das águas cintilantes do mar,
que borrifavam o lado oposto do hotel, à superfície da lagoa, que havia se
acalmado desde que Violet atirara a pedra.
Ao
longo de toda a borda da cobertura havia grandes espelhos retangulares, que se
inclinavam como o próprio hotel, captando a luz ofuscante do sol da tarde e rebatendo-a
sobre a pele dos hóspedes que se bronzeavam. Dez hóspedes, com a pele coberta
por uma loção espessa e grudenta, jaziam imóveis sobre esteiras lustrosas dispostas
em volta de uma piscina aquecida, tão quente que nuvens de vapor flutuavam acima
da superfície. Em um canto havia um atendente, os olhos cobertos por óculos verdes
e o corpo coberto por um roupão comprido e largo demais. Segurava duas enormes
espátulas, como as que se poderia usar para virar panquecas. De quando em quando
ele esticava o braço com uma delas e, com um movimento rápido, virava um dos hóspedes
para que sua barriga e suas costas ficassem com o mesmo tom amarronzado.
As
espátulas, como os espelhos, as esteiras e a piscina, refletiam a luz do sol, e
Violet ficou de fato contente por seus olhos estarem protegidos. Mas havia
outra razão para que a mais velha dos Baudelaire estivesse agradecida pelos
óculos escuros, e ela tinha a ver com a pessoa que aguardava impaciente junto
às portas do elevador. Essa pessoa também estava de óculos escuros, embora de
um tipo muito mais inusitado. Em vez de lentes, havia dois cones que se projetavam
dos olhos e ficavam cada vez mais largos até parar, grandes como dois pratos, a
vários palmos de distância diante do rosto. Um tal par de óculos poderia estar escondendo
a identidade daquele que o usava, mas era tão ridículo que Violet percebeu que
só alguém tão obcecado em andar na moda portaria um aparato ocular tão
ridículo, e ficou agradecida por sua própria identidade estar encoberta.
"Aqui
está você afinal", disse Esmé Squalor. "Pensei que jamais a veria
aqui."
"Como
disse?", perguntou Violet nervosamente.
"Está
surda, concierge?", replicou Esmé. Sua boca torcida de escárnio estava debruada
com batom prateado, como se tivesse bebido metal derretido, e ela apontou um dedo
acusador com uma comprida unha prateada. As unhas tinham sido lixadas em formatos
individuais, para que cada mão ostentasse a palavra "E-S-M-É", com a
unha do polegar esculpida para formar o familiar símbolo de um olho. As letras
estavam pintadas de modo a combinar com as sandálias de Esmé, constituídas de
longas tiras plissadas que, qual centopéias, envolviam as pernas nuas da
notória namorada. O restante da indumentária de Esmé, lamento dizer, consistia
de três grandes folhas de alface, grudadas no seu corpo com fita adesiva. Se
você já viu o traje de banho conhecido como biquíni, então pode adivinhar onde
estavam presos aqueles pedaços de alface, e, caso não possa adivinhar,
aconselho que pergunte a alguém de suas relações que não seja tão acanhado como
eu para discutir corpos de mulheres vilanescas. "Pessoas glamorosas como
eu não têm tempo para ser gentis com os surdos", rosnou ela. "Eu
toquei a sineta da concierge há mais de dois minutos, e fiquei esperando esse
tempo todo!"
"Já
posso ver a manchete", exultou uma outra VOZ. "'MULHER INACREDITAVELMENTE
GLAMOROSA E BELA RECLAMA DO SERVIÇO DO HOTEL!' Aguardem só até os leitores d'O
Pundonor Diário verem isso!" Violet ficou tão aliviada por não ter sido
reconhecida que num primeiro momento nem notou quem estava bem ao lado da
traiçoeira namorada do conde Olaf. Geraldine Julienne era a jornalista irresponsável
que publicara tantas mentiras sobre os Baudelaire, e Violet não ficou feliz ao
reparar, em seguida, que a repórter se tornara mais uma entre os incensadores
de Esmé, uma palavra que aqui significa "pessoas que gostam de bajular
pessoas que gostam de ser bajuladas".
"Peço
desculpas, madame", disse Violet no tom mais profissional que conseguiu assumir.
"Os concierges estão especialmente atarefados hoje. O que a senhora
precisa?"
"Não
é o que eu preciso", disse Esmé, "é o que a adorável menininha na
piscina precisa."
"Eu
não sou uma adorável menininha!", ouviu-se de uma voz familiar que partia da
piscina aquecida, e Violet voltou-se para ver Carmelita Spats, uma criança
mimada e desagradável que os Baudelaire encontraram pela primeira vez no
colégio interno, e que progredira juntando-se ao conde Olaf e a Esmé Squalor
para realizar atos traiçoeiros. "Sou um jogador de futebol caubói
super-herói e soldado pirata!", gritou ela, emergindo de uma nuvem de
vapor. Estava usando um traje tão ridículo quanto o de Esmé, embora felizmente
não tão revelador. Vestia uma jaqueta em azul vivo, coberta de medalhas reluzentes
do tipo que se dá aos militares, a qual estava desabotoada para revelar uma camiseta
branca que proclamava o nome de um clube esportivo em letras azuis encaracoladas;
em seus pés havia um par de brilhantes botas azuis com esporas, que são
diminutas rodas de pontas utilizadas para incitar os animais a andar mais
depressa do que eles gostariam de fazer. Uma venda azul cobria-lhe um olho, e
na cabeça via-se um chapéu triangular azul com a estampa de uma caveira e ossos
cruzados — o símbolo que os piratas usam enquanto rondam os altos-mares.
Carmelita Spats, é claro, não estava nos altos-mares, mas conseguira arrastar
um grande barco de madeira para o salão de bronzeamento da cobertura a fim de
rondar uma alta-piscina. Na parte da frente do barco havia uma figura de proa
elaboradamente esculpida, uma expressão que aqui significa "estátua de
madeira de um polvo atacando um homem de escafandro", e um alto mastro
prolongando-se em direção ao céu e suportando uma vela enfunada com a insígnia
de um olho, para combinar com a tatuagem no tornozelo do conde Olaf. A mais velha
dos Baudelaire olhou por um momento para aquela horrenda figura de proa, e
então voltou sua atenção para Carmelita. Na última vez em que Violet vira a
desagradável capita daquele barco, ela estava toda vestida de cor-de-rosa,
anunciando-se como uma princesa bailarina sapateadora e veterinária encantada,
porém a mais velha dos Baudelaire não saberia dizer se um jogador de futebol
caubói super-herói e soldado pirata era algo melhor ou pior.
"É
claro que você é, querida", ronronou Esmé e voltou-se para Geraldine
Julienne com o tipo de sorriso que uma mãe poderia dar a outra em um
playground. "Ultimamente Carmelita decidiu ser machona", disse ela
usando uma expressão insultuosa infligida a meninas cujo comportamento algumas
pessoas acham inusitado.
"Tenho
certeza de que sua filha vai superar essa fase", replicou Geraldine, que como
de costume falava a um microfone.
"Carmelita
Spats não é minha filha", disse Esmé, desdenhosa. "Seria mais fácil
eu passar a usar roupas recatadas do que ter meus próprios filhos."
"Eu
pensei que você tivesse adotado três órfãos", disse Geraldine.
"Quando
era in", acrescentou Esmé apressadamente, usando sua palavra costumeira
para "da última moda". "Mas agora os órfãos estão out."
"Então,
o que é in?” perguntou Geraldine, sem fôlego.
"Planejar
coquetéis em hotéis, é claro!", arrulhou Esmé. "Por que outra razão
eu haveria de deixar uma mulher ridícula como você me entrevistar?"
"Que
maravilha!", exclamou Geraldine, que parecia não perceber que acabara de ser
insultada. "Já posso ver a manchete: 'ESMÉ SQUALOR, A PESSOA MAIS GLAMOROSA
QUE JÁ EXISTIU!'. Aguarde só até os leitores d'O Pundonor Diário verem isso!
Quando eles lerem sobre a sua carreira como atriz, consultora financeira,
namorada e anfitriã de coquetéis, vão ficar tão emocionados que alguns deles
provavelmente terão ataques do coração!"
"Espero
que sim", disse Esmé.
"Tenho
certeza de que meus leitores vão querer saber tudo sobre suas roupas requintadas",
disse Geraldine segurando o microfone embaixo do queixo de Esmé. "Quer nos
contar alguma coisa a respeito desses óculos tão diferentes?"
"São
binossolares", disse ela acariciando o estranho aparato ocular, "uma combinação
de binóculo com óculos de sol. São muito in, e desse modo posso observar o céu
sem que o sol bata nos meus olhos — ou a lua, se acontecer de alguma coisa
chegar à noite."
"Por
que você haveria de querer observar o céu?", perguntou Geraldine, curiosa.
Esmé
fechou a cara e Violet percebeu que a elegante mulher deixara escapar alguma
coisa, uma expressão que aqui significa "disse algo que gostaria de não
ter dito".
"Porque
observar pássaros é muito in", disse ela em um tom muito pouco convincente,
uma expressão que aqui significa "claramente mentindo".
"Aguarde
só até os leitores d'O Pundonor Diário verem isso!", disse Geraldine, ofegante.
"Todos os convidados do seu coquetel estarão usando binossolares?"
"Não
importa o que os convidados estarão usando", disse Esmé com um sorriso afetado,
"não serão capazes de ver as surpresas que preparamos para eles."
"Que
surpresas?", perguntou Geraldine ansiosamente.
"Se
eu contasse quais são", disse Esmé, "não seriam surpresas."
"Você
não poderia me dar uma dica?", perguntou Geraldine.
"Não",
respondeu Esmé.
"Nem
uma pequenininha?", perguntou Geraldine.
"Não",
disse Esmé.
"Por
favor!", choramingou Geraldine. "Se eu pedir bonitinho, com cobertura
de açúcar?"
Os
lábios revestidos de prata de Esmé se encurvaram pensativos.
"Se
eu lhe der uma dica", disse ela, "você também terá de me contar
alguma coisa. Você é uma repórter, portanto conhece toda sorte de informações
interessantes. Antes de eu revelar o meu hors d'oeuvres para o coquetel de
quinta-feira, quero que você me conte alguma coisa sobre um certo hóspede neste
hotel. Ele anda perambulando furtivamente pelo subsolo, conspirando para
estragar a nossa festa. Suas iniciais são J.S."
"Perambulando
furtivamente pelo subsolo?", repetiu Geraldine. "Mas J.S. é..."
"Esmé!",
berrou Carmelita da piscina, interrompendo a conversa em seu momento crucial.
"Aquela concierge fica lá parada, quando deveria estar ao meu inteiro
dispor! Ela não passa de uma bisbórria!"
Esmé
virou-se para Violet, que depois de todo esse tempo já se acostumara a ser chamada
de bisbórria.
"O
que você está esperando?", rosnou ela. "Vá buscar o que quer que seja
que a adorável menininha deseja!"
Esmé
rodopiou num pé só e afastou-se marchando, e Violet ficou contente ao ver que o
traje da vilanesca namorada incluía mais duas folhas de alface além das que estavam
visíveis de frente. A mais velha dos Baudelaire lamentou ter de parar de desempenhar
suas incumbências de flâneur e começar a cumprir seus deveres de concierge, mas
foi até a beira da piscina, caminhando cautelosamente pela cobertura inclinada
do hotel e espiando em meio às nuvens de vapor.
"O
que deseja, senhorita?", perguntou ela, esperando que Carmelita não reconhecesse
a sua voz.
"Um
lançador de arpões, é claro!", disse Carmelita. "O condinho disse que
eu não posso ser um jogador de futebol caubói super-herói e soldado pirata sem
um lançador de arpões."
"Quem
é o condinho?", perguntou Geraldine.
"O
namorado de Esmé", disse Carmelita. "Ele acha que eu sou a menininha
mais querida e especial de todo o mundo. Ele disse que, se eu usasse direito o
meu lançador de arpões, me ensinaria a cuspir como um verdadeiro jogador de
futebol caubói super-herói e soldado pirata!"
"Já
posso ver a manchete", disse Geraldine no seu microfone. "OGADOR DE FUTEBOL
CAUBÓI SUPER-HERÓI E SOLDADO PIRATA APRENDE A CUSPIR! Aguarde só até os
leitores d'O Pundonor Diário verem isso!"
"Vou
buscar um lançador de arpões, senhorita", prometeu Violet, esquivando-se da
espátula do atendente, que estava virando uma mulher que se bronzeava.
"Pare
de me chamar de 'senhorita', sua bisbórria!", disse Carmelita. "Eu
sou um jogador de futebol caubói super-herói e soldado pirata!"
Ir
buscar objetos para pessoas que são preguiçosas demais para buscá-los sozinhas
nunca é uma tarefa agradável, especialmente quando se está sendo insultado por
essas pessoas, mas quando Violet caminhou de volta ao elevador e apertou o
botão para chamá-lo não estava pensando no comportamento atroz de Carmelita.
Estava por demais apreensiva, uma palavra que aqui significa "perguntando
a si mesma o que, exatamente, Esmé Squalor e Carmelita Spats estavam fazendo no
Hotel Desenlace". As duas fêmeas detestáveis estavam muito bem informadas
acerca de C.S.C. e dos planos para o encontro de quinta-feira, mas a mais velha
dos Baudelaire não acreditou nem por um minuto que tudo o que planejavam era um
coquetel. Quando as portas deslizaram e Violet entrou, ela se perguntou por que
Esmé estava usando os seus binossolares para observar o céu. Ela se perguntou o
que Carmelita queria com um lançador de arpões. Ela se perguntou como Esmé
sabia a respeito do impostor J.S., que ao que tudo indica estava perambulando
furtivamente pelo subsolo do hotel. Porém, mais que tudo, ela se perguntou onde
o conde Olaf — ou, como Carmelita gostava de chamá-lo, o "condinho" —
estava escondido, e que perfídia planejava.
Violet
estava pensando tão intensamente sobre suas observações como flâneur que
somente depois de as portas do elevador se fecharem é que se lembrou da sua incumbência
como concierge e deu-se conta de que não tinha idéia de onde encontrar um lançador
de arpões. Os lançadores de arpões não são parte do equipamento usual oferecido
por um hotel, e a única vez em que Violet vira um dispositivo desses tinha sido
nas próprias mãos de Esmé Squalor, quando ela estava disfarçada de policial na
cidade dos Cultores Solidários de Corvídeos. Mesmo se o Hotel Desenlace tivesse
se lembrado de manter algo assim no prédio, Violet nem imaginava como poderia
encontrá-lo no Sistema Decimal Dewey sem um catálogo. Desejou que Klaus
estivesse com ela, pois o único número do Sistema Decimal Dewey que sabia de
cor era o 621, que rotulava a sua seção favorita, física aplicada. Com um
suspiro abatido, a mais velha dos Baudelaire apertou o botão do hall.
"Você
está me pedindo ajuda?", exclamou Frank, ou Ernest, quando Violet conseguiu
encontrá-lo.
O
hall do Hotel Desenlace estava ainda mais apinhado do que quando os Baudelaire
chegaram, e Violet precisou de alguns minutos até localizar a figura familiar
do voluntário ou seu irmão vilanesco.
"Quem
precisa de ajuda sou eu", disse ele. "Um número espantoso de hóspedes
chegou mais cedo do que o esperado. Não tenho tempo para bancar o ajudante de
concierge."
"Estou
ciente de que está ocupado, senhor", disse Violet. Ela sabia que chamar uma
pessoa de "senhor" muitas vezes ajuda a conseguir o que se quer, a
não ser, é claro, que a pessoa seja uma mulher. "Uma hóspede solicitou um
lançador de arpões, e não sei onde encontrar um. Gostaria que o Hotel Desenlace
tivesse um catálogo."
"Você
não deveria precisar de um catálogo", disse o gerente. "Não se você
for quem eu penso que é."
Violet
engoliu em seco, e Frank, ou Ernest, avançou um passo na direção dela.
"Você
é?", perguntou ele. "É quem eu penso que é?"
Violet
piscou atrás dos seus óculos escuros. Há pessoas neste mundo que dizem que o
silêncio é de ouro, o que significa simplesmente que elas preferem uma calma e serena
quietude ao barulho e ao tumulto do mundo. Não há nada de errado com essa preferência,
mas infelizmente há momentos em que uma calma e serena quietude é algo impossível.
Se você está admirando o pôr-do-sol, por exemplo, o silêncio pode permitir que
você esteja sozinho com seus pensamentos enquanto fita a paisagem que pouco a pouco
vai escurecendo, porém pode ser necessário produzir um ruído forte para
espantar algum urso-pardo que possa estar se aproximando. Se você está viajando
em um táxi, pode preferir o silêncio para poder estudar o seu mapa em paz, mas
a ocasião pode exigir que você grite "Por favor, faça meia-volta! Acho que
eles atravessaram aquelas sebes!". E se você perdeu um ente querido, como
os Baudelaire perderam no dia fatídico de um incêndio, pode ansiar muito
intensamente por um longo período de silêncio, para que você e os seus irmãos
possam contemplar a desconcertante e deplorável situação em que se encontram,
mas poderá ver-se jogado de uma situação perigosa para outra, e mais outra, e
mais outra, até começar a pensar que nunca mais poderá experimentar uma calma e
serena quietude.
Enquanto
Violet estava lá em pé no saguão, nada mais queria a não ser permanecer em
silêncio, para poder observar melhor o homem que estava diante dela e descobrir
se ele era um voluntário, ao qual poderia dizer "Sim, sou Violet
Baudelaire", ou um vilão, ao qual poderia dizer "Me desculpe, não sei
do que está falando". Mas ela sabia que não poderia ter esperanças de uma
calma e serena quietude no caos do Hotel Desenlace, e portanto, em vez de
permanecer em silêncio, ela respondeu à pergunta do gerente da melhor maneira
possível.
"É
claro que sou quem pensa que sou", disse ela, sentindo-se como se
estivesse falando em código, só que era um código que ela não conhecia.
"Sou uma concierge."
"Entendo",
disse Frank ou Ernest de modo insondável. "E quem está solicitando o lançador
de arpões?"
"Uma
menininha na cobertura", disse Violet.
"Uma
menininha na cobertura", repetiu o gerente com um sorriso zombeteiro.
"Você
tem certeza de que convém entregar um lançador de arpões a uma menininha na cobertura?"
Violet
não sabia como responder, mas afortunadamente aquele parecia ser um dos momentos
em que de fato o silêncio é de ouro, pois, diante do silêncio dela, Frank ou Ernest
deu à mais velha dos Baudelaire mais um sorriso e então girou nos calcanhares —
uma expressão que aqui significa "virou o corpo para o outro lado de uma
maneira algo extravagante" — e fez sinal a Violet para segui-lo até um
canto distante do saguão, onde ela viu uma pequena porta identificada como 121.
"Este
número representa a epistemologia", explicou ele, usando uma palavra que aqui
significa "teorias do conhecimento" e olhando apressadamente em volta
do saguão como se estivesse sendo observado. "Acho que seria um bom
esconderijo."
Frank
ou Ernest tirou uma chave do bolso e destrancou a porta, que se abriu com um
leve rangido para revelar um armário pequeno e vazio. A única coisa que havia
no armário era um grande objeto de aparência maligna, com um gatilho em
vermelho vivo e quatro ganchos longos e afiados. A mais velha dos Baudelaire o
reconheceu de sua estada na cidade dos Cultores Solidários de Corvídeos. Sabia tratar-se
de um lançador de arpões, um dispositivo letal que não deveria estar nas mãos
de ninguém, que dizer nas de Carmelita Spats. Violet não queria nem tocar
naquilo ela mesma, mas, como o gerente continuava em pé junto à porta olhando
para ela, não conseguiu pensar em nenhuma outra alternativa e, cuidadosamente,
retirou o dispositivo do armário.
"Tenha
muito cuidado com isso", disse o gerente em um tom insondável. "Uma arma
como essa só deveria estar nas mãos da pessoa certa. Fico grato pela sua ajuda,
concierge. Não são muitas as pessoas que têm a coragem de ajudar em um esquema como
este."
Violet
concordou em silêncio, e em silêncio pegou a pesada arma das mãos de Frank ou
Ernest. Em silêncio, ela caminhou de volta aos elevadores, a cabeça girando com
as suas misteriosas observações como flâneur e sua misteriosa incumbência como concierge,
e em silêncio permaneceu diante das portas deslizantes do elevador, se perguntando
com qual gerente teria falado, e o que precisamente dissera a ele com a sua resposta
codificada e serena. Mas logo antes da chegada do elevador, o silêncio de
Violet foi quebrado por um ruído impactante.
O
relógio do saguão do Hotel Desenlace é de fama legendária, uma expressão que
aqui significa "muito conhecido por tocar muito alto". Fica bem no
centro do teto, bem no topo da abóbada, e quando ele bate as horas seus sinos
ecoam pelo prédio inteiro, produzindo um ruído imenso e profundo que soa como
uma estranha palavra pronunciada uma vez para cada hora anunciada. Naquele
momento em particular eram três horas, e todo mundo no hotel pôde ouvir o toque
estrondoso dos enormes sinos do relógio, emitindo a palavra três vezes
seguidas: Nadabom! Nadabom! Nadabom!
Quando
entrou no elevador, com o lançador de arpões pesado e sinistro nas mãos enluvadas,
Violet Baudelaire sentiu como se o relógio a estivesse repreendendo por seus
esforços para resolver os mistérios do Hotel Desenlace. Nadabom! Ela tentara
dar o melhor de si como flâneur, mas não observara o suficiente para
decodificar o esquema de Esmé Squalor e Carmelita Spats. Nadabom! Ela tentara
se comunicar com um dos gerentes do hotel, mas não fora capaz de descobrir se
era Frank ou Ernest. E — o mais Nadabom! de tudo — estava agora levando uma
arma letal para o salão de bronzeamento da cobertura, onde serviria a algum
propósito sinistro desconhecido.
A
cada batida do relógio, Violet sentia que nada estava bom, até que por fim chegou
ao seu destino e saiu do elevador. Esperava de todo coração que seus dois irmãos
tivessem obtido mais sucesso em suas incumbências, pois ao atravessar a cobertura,
esquivando-se de uma espátula que agilmente virava os hóspedes em cima de suas
esteiras espelhadas, para finalmente passar o lançador de arpões às mãos ávidas
e ingratas de Carmelita Spats, tudo em que a mais velha dos Baudelaire
conseguiu pensar foi que aquilo tudo não era nadabom, nadabom, nadabom.
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