Capítulo 5
Quando se é convidado para jantar, especialmente com pessoas que
você não conhece muito bem, é sempre útil ter algum assunto na ponta da língua,
uma expressão que aqui significa ‘‘ter uma frase interessante para dizer em
voz alta a fim de estimular as pessoas a falar’‘. Embora ultimamente tenha
sido cada vez mais difícil comparecer a jantares sem que a noite acabe em
tiroteio ou tapioca, mantenho uma lista de frases de abertura boas e ruins no
meu livro de lugar-comum, a fim de evitar silêncios embaraçosos à mesa.
‘‘Quem gostaria de ver a
coleção de fotografias de minhas férias?’‘por exemplo, é uma frase de
abertura muito pobre, e provavelmente fará seus colegas convivas dar de ombros
em vez de falar, ao passo que boas frases de abertura, como ‘‘O que será que
leva um homem a virar incendiário?‘‘; ‘‘Por que será que tantas histórias
de amor verdadeiras terminam em tragédia e desespero?‘‘; e ‘‘Madame
diLustro, creio ter descoberto sua verdadeira identidade!‘‘, podem provocar
discussões, brigas e acusações, tornando o jantar muito mais divertido. Quando
Klaus Baudelaire anunciou que tinha descoberto a localização do açucareiro, foi
uma das melhores frases de abertura da história dos jantares, porque todos a
bordo do Queequeg começaram a falar ao mesmo tempo, e o jantar não tinha sequer
sido servido.
― Positivo? ― berrou o
capitão Andarré. ― Você descobriu para onde a maré o levou? Positivo? Mas você
acabou de dizer que não sabia! Positivo! Você disse que ficou confuso com as
cartas náuticas e aquele oval assinalado como ‘‘G.G.’‘! Positivo! E ainda assim
você descobriu! Positivo! Você é um gênio! Positivo! Você é um sabichão!
Positivo! Você é um rato de biblioteca! Positivo! Você é brilhante! Positivo!
Você é sensacional! Positivo! Se encontrar o açucareiro, eu deixo você se casar
com Fiona!
― Padrasto! ― exclamou
Fiona, corando atrás dos óculos triangulares.
― Não se preocupe ―
retrucou o capitão, ― também vamos achar um marido para Violet! Positivo!
Talvez encontremos seu irmão, há tanto perdido, Fiona! Ele está muito mais
velho, é claro, e está desaparecido há anos, mas, se Klaus foi capaz de
localizar o açucareiro, provavelmente poderá encontrá-lo! Positivo! Ele é um
homem charmoso, portanto você vai acabar se apaixonando por ele, Violet, e
então poderíamos ter um casamento duplo! Positivo! Bem aqui no salão principal
do Queequeg! Positivo! Eu ficaria feliz em oficiar! Positivo! Tenho uma gravata
borboleta guardada para uma ocasião especial!
― Capitão Andarré ― disse
Violet, ― vamos tentar nos ater ao assunto do açucareiro.
Ela não acrescentou que não tinha interesse em se casar por um bom
tempo, especialmente depois que o conde Olaf tentou se casar com ela em um de
seus primeiros planos.
― Positivo! ― bradou o
capitão. ― É claro! Naturalmente! Positivo! Conte tudo para nós, Klaus!
Comeremos enquanto você fala! Positivo! Sunny ! Cuque! Sirvam o sopão!
― O sopão está servido! ―
anunciou Phil, saindo apressado da cozinha com duas tigelas fumegantes de sopa
grossa. A mais jovem dos Baudelaire veio atrás dele.
Sunny ainda era um pouco jovem demais para carregar comida quente
sozinha, mas tinha encontrado um moedor de pimenta, e deu a volta na mesa para oferecer
pimenta moída na hora para quem quisesse.
― Porção dupla de pimenta
para mim, Sunny! ― bradou o capitão Andarré, arrebatando a primeira tigela de
sopão, apesar de ser mais educado deixar os convidados serem servidos primeiro.
― Uma bela tigela de sopão! Uma porção dupla de pimenta! A localização do
açucareiro! Positivo! Isso vai arrancar as cracas do meu couro! Positivo! Estou
muito contente por ter baldeado vocês Baudelaire para fora do arroio!
― Eu também ― disse Fiona,
sorrindo com timidez para Klaus.
― Eu não poderia estar mais
contente ― disse Phil, servindo mais duas tigelas de sopão.
― Pensei que nunca mais
iria vê-los, e aqui estão! Todos os três cresceram lindamente, apesar de terem
sido perseguidos o tempo todo por um vilão malvado e terem sido acusados de
inúmeros crimes que não cometeram!
― Vocês fizeram uma jornada
excruciante ― disse Fiona, usando uma palavra que aqui significa ‘‘‘‘extrema e
desesperadamente penosa’‘‘‘.
― Receio que possamos ter
outra jornada excruciante pela frente ― disse Klaus. ― Quando o capitão Andarré
falou sobre o filósofo que disse que a vida não passa de sombras em uma
caverna, me dei conta do que devia ser aquele oval.
― Um filósofo? ― perguntou
o capitão. ― Isso é impossível! Positivo!
― Absurdio ― disse Sunny ,
o que queria dizer: ‘‘‘‘Filósofos vivem em picos de montanhas ou em torres de
marfim, e não debaixo do mar’‘‘‘.
― Acho que Klaus quis dizer
uma caverna ― disse depressa Violet, em vez de traduzir. ― O oval deve indicar
a entrada de uma caverna.
― Começa bem ao lado da
Aquáticos Anwhistle ― disse Klaus, apontando para a carta. ― As correntes do
oceano teriam levado o açucareiro para a entrada, e então as correntes da
caverna o teriam arrastado para dentro, até bem fundo.
― Mas a carta só mostra a
entrada da caverna ― disse Violet. ― Não sabemos como é lá dentro. Eu gostaria
que Quigley estivesse aqui. Com seus conhecimentos sobre mapas, ele poderia
saber como é formada a caverna.
― Mas Quigley não está aqui
― disse Klaus gentilmente. ― Tenho a impressão de que viajaremos por águas não
cartografadas.
― Isso vai ser divertido ―
disse Phil.
Os Baudelaire se entreolharam. A expressão ‘‘‘‘águas não
cartografadas’‘‘‘ não se refere apenas a locais subterrâneos que não aparecem
nas cartas náuticas. É uma frase que pode descrever qualquer região
desconhecida, como uma floresta em que todos os exploradores se perderam, ou o
próprio futuro de uma pessoa, que não se pode conhecer antes do tempo. Você não
precisa ser um otimista como Phil para achar que águas não cartografadas são
divertidas. Eu mesmo já passei muitas tardes agradáveis explorando as águas não
cartografadas de um livro que não li, ou um esconderijo que descobri em um guarda-louça
— uma palavra que aqui significa ‘‘‘‘peça de mobiliário de sala de jantar, com
prateleiras e gavetas para guardar diversos objetos úteis’‘‘‘. Mas os
Baudelaire já tinham passado um bocado de tempo explorando águas não
cartografadas, desde as águas não cartografadas do Lago Lacrimoso, com suas
aterrorizantes criaturas, até as águas não cartografadas dos segredos
encontrados na Biblioteca de Registros do Hospital Heimlich, e as águas não
cartografadas da malevolência do conde Olaf, que eram mais profundas e mais
escuras que toda a água do mar. Depois de tantas viagens não cartografadas, os
órfãos Baudelaire não estavam com disposição para explorar águas não
cartografadas de nenhuma espécie, e não podiam compartilhar do entusiasmo
otimista de Phil.
― Não será a primeira vez
que o Queequeg navegará por águas não cartografadas ― disse o capitão Andarré.
― Positivo. A maior parte desse mar foi explorada pela primeira vez por
submarinos C.S.C.
― Nós pensávamos que C.S.C.
queria dizer Corporação pelo Salvamento das Chamas ― disse Violet. ― Por que um
corpo de bombeiros haveria de passar tanto tempo embaixo d’‘água?
― C.S.C. não é só um corpo
de bombeiros ― disse o capitão, mas sua voz estava muito mansa, como se ele
estivesse falando mais consigo mesmo do que com a tripulação. ― Positivo,
começou assim. Mas os voluntários estavam interessados em muitas coisas! Eu fui
um dos primeiros a me apresentar como voluntário para a domesticação de peixes
na Criação Secreta de Cardumes. Essa foi uma das missões da Aquáticos
Anwhistle, positivo! Passei quatro longos anos treinando salmões para nadar
corrente acima e procurar incêndios florestais. Isso foi quando você era muito
jovem, Fiona, mas seu irmão trabalhou ao meu lado. Você devia tê-lo visto
escamoteando minhocas extras para os seus peixes favoritos! Positivo! O programa
foi um modesto sucesso! Positivo! Mas então veio o Café Salmonela e levou
embora toda nossa frota. Os irmãos Snicket lutaram o melhor que puderam.
Positivo! Os historiadores chamaram isso de A Batalha Snicket dos Facões!
Positivo! Mas como escreveu o poeta: ‘‘‘‘Garçons demais provaram ser traidores’‘‘‘.
― Os irmãos Snicket? ―
Klaus perguntou depressa.
― Positivo ― disse o
capitão. ― Três deles, cada qual mais nobre que o outro. Positivo! Kit Snicket
ajudou a construir este submarino! Positivo! Jacques Snicket provou que o
Incêndio dos Jardins Reais foi premeditado! Positivo! E o terceiro irmão, com
os sagüis...
― Vocês Baudelaire
conheciam Jacques Snicket, não é? ― perguntou Fiona, que não se vexava de
interromper o padrasto.
― Muito pouco ― disse
Violet, ― e recentemente nós encontramos uma mensagem dirigida a ele. Foi como
descobrimos sobre o encontro de quinta-feira, no último santuário.
― Ninguém escreveria uma
mensagem para Jacques ― disse o capitão Andarré. ― Positivo! Jacques está
morto!
― Odartsigam! ― disse Sunny,
e seus irmãos rapidamente explicaram que ela queria dizer: ‘‘‘‘As iniciais eram
J.S.’‘‘‘.
― Deve ser algum outro J.S.
― disse Fiona.
― E por falar em iniciais
misteriosas ― disse Klaus, ― eu gostaria de saber o que significa G.G. Se nós
soubéssemos como se chama a caverna, poderíamos ter uma ideia melhor de nossa
jornada.
― Positivo! ― disse o
capitão Andarré. ― Vamos adivinhar! Grande Garganta! Positivo! Granito Grená!
Positivo! Geleira Glamurosa! Positivo! Game Gaiato! Positivo! Gulash Glorioso! Positivo!
Governo Gótico! Positivo! Gengivite Gozadora! Positivo! Garota Graciosa
levantando da mesa! Positivo!
De fato, a enteada do capitão se levantara, limpara a boca em um
guardanapo bordado com um retrato de Herman Melville e fora até um guarda-louça
encaixado em um canto remoto. Fiona abriu um armário e revelou algumas prateleiras
atulhadas de livros.
― Ontem comecei a ler uma
nova aquisição da minha biblioteca micetológica ― disse ela, na ponta dos pés
para alcançar a prateleira. ― Acabo de me lembrar de ter lido algo que pode vir
a calhar. ― Atônito, o capitão cofiou o bigode. ― Você e esses cogumelos
bolorentos! ― disse ele.
― Achei que não iria viver
para vê-la fazer bom uso de seus estudos micetológicos ― e lamento dizer que
ele estava certo.
― Vejamos ― disse Fiona,
folheando um livro grosso intitulado Cogumelos e suas minúcias, uma palavra que
aqui significa ‘‘‘‘detalhes obscuros’‘‘‘. ― Estava no sumário, que é tudo o que
li até agora. Mais ou menos no meio. ― Ela trouxe o livro para a mesa e correu
o dedo pelos itens do sumário, enquanto os Baudelaire se inclinavam para ver
melhor.
― Capítulo trinta e seis, ‘‘‘‘A
levedura das feras’‘‘‘. Capítulo trinta e sete, ‘‘Comportamento dos cogumelos
Morei em uma sociedade livre’‘. Capítulo trinta e oito, ‘‘Mofos fungíveis,
fungos mofadores’‘. Capítulo trinta e nove, ‘‘Valas fúngicas abertas à
visitação’‘. Capítulo quarenta, ‘’A Gruta Gorgônea’‘. Aqui está!
― Gruta? ― perguntou Sunny
.
― ‘‘Gruta’‘ é um outro nome
para ‘‘caverna’‘ ― explicou Klaus, enquanto Fiona abria o livro no capítulo
quarenta.
― A Gruta Gorgônea’‘ ― leu
ela, ‘‘ ― localizada na propinqüidade da Aquáticos Anwhistle, possui
apropriadamente uma denominação sombria que, com raízes na mitologia grega,
descreve uma furna cônica fecunda naquele que é, quiçá, o bicho-papão de todo o
panteão micetológico.’‘
― Positivo! Eu bem que
falei que esse livro era difícil demais! ― disse o capitão Andarré. ― Uma
criancinha não pode decifrar esse tipo de vocabulário.
― É um estilo de prosa
muito complicado ― admitiu Klaus, ― mas acho que sei o que significa. A Gruta
Gorgônea ganhou esse nome em homenagem a alguma coisa da mitologia grega.
― Uma górgone ― disse
Violet. ― Como aquela mulher com serpentes no lugar de cabelos.
― Ela podia transformar as
pessoas em pedra ― disse Fiona.
― Devia ser uma boa pessoa
por trás das aparências ― disse Phil.
― Positivo! Acho que
freqüentei a escola com uma mulher assim! ― disse o capitão.
― Eu não acho que ela era
uma pessoa real ― disse Klaus. ― Acho que era legendária. O livro diz que é
apropriado a furna ter sido chamada pelo nome de um monstro legendário, porque
existe uma espécie de monstro que vive em uma caverna: um bicho-papão.
― Papao? ― perguntou Sunny
.
― Um bicho-papão pode ser
qualquer tipo de monstro ― disse Klaus. ― Poderíamos chamar o conde Olaf de
bicho-papão, se tivéssemos vontade.
― Eu prefiro não chamá-lo
de jeito nenhum ― disse Violet.
― Esse bicho-papão é algum
tipo de fungo ― disse Fiona, e continuou a ler o Cogumelos e suas minúcias. ― ‘’O
My celium Medusóide possui uma estratégia conducente singular de alternar as
fases crescente e minguante: a princípio um breve ciclo latente em que o
micélio é quase invisível, e a subseqüente floração precipitada em talos e
píleos salpicados, de veneno tão potente que é uma sorte haver a gruta para
servir de local de quarentena.’‘
― Eu não entendi toda essa
terminologia científica ― disse Klaus.
― Eu entendi ― disse Fiona.
― Um cogumelo tem três partes principais. Uma é o píleo, ou chapéu, que tem a
forma de um guarda-chuva, e a segunda é o talo, que sustenta o píleo. Essas são
as partes que se podem ver.
― Existe uma parte do
cogumelo que não se pode ver? ― perguntou Violet.
― Chama-se micélio ―
respondeu Fiona. ― É como um feixe de fios que se ramificam e se espalham
debaixo da terra. Alguns cogumelos têm micélios que se estendem por
quilômetros.
― Como se escreve ‘‘My
celium’‘? ― perguntou Klaus, enfiando a mão em seu bolso à prova d’‘água. ― Quero
anotar isso no meu livro de lugar-comum.
Fiona apontou a palavra na página.
― O My celium Medusóide
alterna as fases crescente e minguante ― disse ela, ― o que quer dizer que os
píleos e os talos brotam do micélio e depois murcham, e então brotam de novo. É
algo parecido com afirmar que não dá para saber que os cogumelos estão lá antes
que eles surjam do solo outra vez.
Os Baudelaire imaginaram um grupo de cogumelos brotando do chão
sob seus pés, e se sentiram meio enjoados, como se antecipassem o apavorante
encontro que logo iriam ter com aqueles fungos terríveis.
― Parece assustador ― disse
Violet.
― Fica ainda pior ― disse
Fiona. ― Os cogumelos são extremamente venenosos. Escutem isto: ‘‘Como diz o
poeta: De um único esporo é tão cruel o poder/ Que em menos de uma hora tu
podes morrer. Um esporo é como uma semente: se tiver um lugar para crescer, se
tornará um outro micélio. Mas se alguém o comer, ou até inspirá-lo, ele pode
causar a morte.
― Em menos de uma hora? ―
disse Klaus. ― É um veneno de ação rápida.
― A maior parte dos venenos
fúngicos tem antídoto ― disse Fiona. ― O veneno de um fungo letal pode ser a
fonte de alguns remédios maravilhosos. Eu mesma já estive trabalhando em
alguns. Mas este livro diz que é uma sorte haver a gruta para servir de local
de quarentena.
― Quarquê? ― perguntou
Sunny.
― Quarentena é quando uma
coisa perigosa é isolada, para que o perigo não se espalhe ― explicou Klaus. ― Como
o My celium Medusóide está em águas não cartografadas, as pessoas envenenadas
foram muito poucas. Se alguém trouxesse um esporo que fosse para a terra seca,
quem sabe o que iria acontecer?
― Nós não vamos descobrir!
― disse o capitão Andarré. ― Não vamos levar esporo nenhum! Positivo! Vamos só
agarrar o açucareiro e dar o fora! Positivo! Vou traçar um curso agora mesmo!
O capitão levantou-se de um pulo e começou a escalar a escada de
corda para os controles do Queequeg.
― Você tem certeza de que
devemos prosseguir com nossa missão? ― perguntou Fiona ao padrasto, fechando o
livro. ― Isso parece ser muito perigoso.
― Perigoso? Positivo!
Perigoso e assustador! Positivo! Assustador e difícil! Positivo! Difícil e
misterioso! Positivo! Misterioso e incômodo! Positivo! Incômodo e arriscado!
Positivo! Arriscado e nobre! Positivo!
― Imagino que o fungo não
poderá nos fazer mal se estivermos dentro do submarino ― disse Phil,
esforçando-se para continuar otimista.
― Mesmo que pudesse! ―
bradou o capitão, em pé no alto da escada de corda, gesticulando dramaticamente
enquanto proferia um discurso de apaixonada eloquência, uma expressão que aqui
significa ‘’um discurso que os Baudelaire acharam bastante convincente, mesmo
não concordando com todas as palavras’’.
― A quantidade de perfídia
no mundo é enorme! ― bradou. ― Positivo! Pensem nas embarcações que vimos na
tela do sonar! Pensem no enorme submarino do conde Olaf, e no ainda mais enorme
que o afugentou! Positivo! Há sempre alguma coisa mais enorme e mais
aterrorizante em nosso encalço! Positivo! E tantos de nossos nobres submarinos
se foram! Positivo! Você acha que as roupas de Herman Melville são os únicos
uniformes nobres do mundo? Havia voluntários com P. G. Wodehouse nos uniformes,
e Carl Van Vechten. Havia Comy ns, e Cleary , e Archy , e Mehitabel. Mas agora
os voluntários são raros! Portanto, o melhor que podemos fazer é uma única
coisinha nobre! Positivo! Como resgatar o açucareiro da Gruta Gorgônea, não
importa quão funesto possa parecer! Positivo! Lembrem-se de minha filosofia de
vida! Aquele que vacila está perdido!
― Ou aquela! ― disse Fiona.
― Ou aquela ― concordou o
capitão. ― Positivo?
― Positivo! ― exclamou
Violet.
― Positivo! ― gritou Klaus.
― Positivo! ― guinchou
Sunny .
― Hurra! ― berrou Phil.
Lá de cima, o capitão Andarré encarou Phil, contrariado. Preferia
que ele tivesse dito ‘’positivo!’’ como todo mundo.
― Cuque! ― ordenou ele. ― Cuide
dos pratos! E o resto de vocês, por favor vão tirar uma pestana! Positivo!
― Uma pestana? ― perguntou
Violet.
― Positivo! Quer dizer ‘‘dormir’‘!
― explicou o capitão. Dormir!
― Nós sabemos exatamente o
que quer dizer ― disse Klaus. ― Só ficamos surpresos por ter de dormir durante
a missão.
― Vamos levar algum tempo
para chegar à caverna! ― disse o capitão. ― Quero vocês quatro bem descansados
para o caso de serem necessários! Agora recolham-se a seus alojamentos! Positivo!
Uma das verdades mais amargas da vida é que muitas vezes a hora de
dormir chega bem quando as coisas estão ficando interessantes. Os Baudelaire
não estavam especialmente dispostos a ficar rolando na cama nos alojamentos do Queequeg
— uma expressão que aqui significa ‘’um tipo de quarto que costuma ser
desconfortável’’ — enquanto o submarino se aproximava cada vez mais da gruta
misteriosa e de seu item imprescindível, uma expressão que aqui significa ‘’o
açucareiro, apesar de as crianças não saberem por que era tão importante’’.
Porém, enquanto seguiam Fiona para fora do salão principal e de
volta ao corredor, passando pela placa que anunciava a filosofia de vida do
capitão, e depois pela porta da sala de suprimentos e por um número incontável
de tubulações metálicas gotejantes, os irmãos começaram a se sentir muito cansados,
e quando Fiona abriu uma porta para revelar um quarto pequeno com iluminação
verde, atulhado de beliches vergados, as três crianças já estavam bocejando.
Talvez fosse por causa do dia longo e exaustivo, que começara no pico gelado do
Monte Fraught, mas quando Violet deitou na cama, não refletiu sobre uma só
idéia mecânica como costumava fazer antes de dormir. Klaus mal colocou os
óculos em cima de uma pequena mesa-de-cabeceira e despencou na cama, uma
expressão que aqui significa ‘’caiu no sono sem refletir sobre um só livro que
tivesse lido recentemente’’. Sunny se enrolou em cima de um travesseiro e não
desperdiçou um só momento planejando novas receitas — de preferência entradas,
que eram menos empapadas do que um sopão, pois ela ainda gostava de morder
coisas como quando era bebê — antes de começar a sonhar. E até Fiona, cujos
hábitos na hora de dormir me são menos familiares que os dos Baudelaire, pôs
seus óculos ao lado dos de Klaus e adormeceu num instante. O motor ronronante
do Queequeg os fez dormir cada vez mais profundamente durante várias horas, e
teriam dormido muito mais se não tivessem sido despertados por um terrível — e
terrivelmente familiar — ruído.
Era um som alto, estridente e enervante, como o de unhas raspando
contra uma lousa, e os Baudelaire quase foram derrubados da cama quando o
submarino inteiro se sacudiu com estrépito.
― O que foi isso? ―
perguntou Violet.
― Batemos em alguma coisa ―
disse Fiona, soturna, agarrando seus óculos com uma das mãos e o capacete de
mergulho com a outra. ― É melhor a gente ver qual é a situação. ― Os Baudelaire
balançaram a cabeça concordando e correram dos alojamentos de volta ao
corredor. Um preocupante ruído de água jorrando vinha de algumas tubulações, e
Klaus teve de pegar Sunny no colo para passar por cima de diversas poças
grandes.
― Será que o submarino está
implodindo? ― perguntou Klaus.
― Logo vamos saber ― disse
Fiona, e estava certa. Em poucos momentos ela levou os Baudelaire de volta ao
salão principal, onde Phil e o capitão, em pé junto à mesa, olhavam fixamente
para o negrume vazio do outro lado da vigia. Ambos estavam com expressões
austeras, embora Phil tentasse sorrir.
― Foi bom vocês darem uma
descansada ― disse o otimista. ― Uma aventura de verdade os aguarda.
― Fico contente por terem
trazido seus capacetes ― disse o capitão Andarré. ― Positivo!
― Porquê? ― perguntou
Violet. ― O Queequeg está muito danificado?
― Positivo! ― disse o
capitão. ― Quero dizer, não. O submarino está danificado, mas vai aguentar —
por enquanto. Chegamos à Gruta Gorgônea há cerca de uma hora, e consegui
manobrar para dentro sem problemas. Mas a caverna foi ficando cada vez mais
estreita à medida que nos dirigíamos mais para dentro.
― O livro dizia que a furna
era cônica ― disse Klaus. ― O que significa que ela tem a forma de um cone.
― Positivo! ― disse o
capitão. ― Entramos pela extremidade larga do cone, mas agora está estreito
demais para passar com o submarino. Se quisermos resgatar o açucareiro, teremos
de usar algo menor.
― Periscópio? ― perguntou
Sunny.
― Não ― respondeu o capitão. ― Uma criança.
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