Capítulo 6
Quando
o elevador atingiu o terceiro andar, Sunny se despediu dos seus irmãos e entrou
em um longo corredor vazio. Ele era ladeado por portas numeradas, números ímpares
de um lado e pares do outro, e por grandes vasos ornamentais, que eram mais altos
do que Sunny porém nem de longe tão encantadores quanto ela. A mais jovem dos Baudelaire
caminhou sobre o macio carpete cinzento com passos nervosos e incertos.
Fingir
ser uma concierge a fim de ser flâneur, na esperança de desvendar um mistério que
se desenrolava em um hotel enorme e desconcertante, era uma tarefa suficientemente
difícil para os seus irmãos mais velhos — imagine para alguém que estava apenas
saindo da primeira infância. No decorrer dos últimos poucos meses, Sunny Baudelaire
tinha aperfeiçoado suas aptidões locomotoras, adotara um vocabulário mais padronizado
e até aprendera a cozinhar, mas ainda se sentia insegura para passar por uma
profissional de hotelaria. Ao se aproximar dos hóspedes que tocaram a sineta chamando
um ou uma concierge, ela decidiu adotar uma postura taciturna, uma expressão
que aqui significa "só se comunicar quando absolutamente necessário, a fim
de não chamar atenção para a sua juventude e relativa inexperiência no
emprego".
Quando
Sunny chegou ao quarto 371, de início achou que houvera algum engano. Lá
embaixo no saguão, ou Frank ou Ernest havia contado aos Baudelaire que os hóspedes
educacionais estavam instalados naquele quarto em particular, mas a mais jovem
dos Baudelaire não podia imaginar que propósito educacional poderia explicar os
sons estranhos e assustadores que vinham de trás da porta, a não ser, talvez,
que um professor estivesse dando uma aula sobre como torturar um pequeno
animal. Alguém — ou alguma coisa — no quarto 371 estava soltando guinchos apavorantes,
gemidos insólitos, murmúrios misteriosos, gritos irritantes e, de repente, um
ou dois tons melodiosos. Os sons eram tão altos que alguns instantes se
passaram antes que alguém ouvisse os punhos enluvados de Sunny batendo na
porta.
"Quem
se atreve a interromper um gênio quando ele está ensaiando?", disse uma voz
forte, retumbante e estranhamente familiar.
"Concierge",
gritou Sunny.
"Concierge",
arremedou a voz respondendo a Sunny, num tom estridente e guinchado que a
Baudelaire mais nova reconheceu imediatamente; para seu desalento, a porta se
abriu e lá estava uma pessoa que ela esperara nunca mais encontrar de novo.
Se
alguma vez você já trabalhou em algum lugar e, mais tarde, deixou de trabalhar
lá, sabe que há três maneiras de fazê-lo: você pode pedir demissão, pode ser demitido,
ou pode sair por mútuo acordo. "Pedir demissão", como tenho certeza
de que você sabe, é uma expressão que significa que você ficou desapontado com
o seu patrão. "Ser demitido", naturalmente, é uma expressão que
significa que o seu patrão ficou desapontado com você. E "sair por mútuo
acordo" é uma expressão que significa que você queria pedir demissão e o
seu patrão queria demiti-lo, então você saiu correndo do escritório, da fábrica
ou do monastério, antes que qualquer pessoa pudesse decidir quem iria primeiro.
Qualquer que seja o caso, não importa o método usado para deixar um emprego,
nunca é agradável cruzar com um ex-patrão, porque isso lembrará a ambos todos
os momentos miseráveis que vocês passaram juntos. Certa vez eu me atirei por um
lance de escadas para não encarar por um momento sequer uma chapeleira em cuja
loja deixei de trabalhar depois de desvendar a verdade sinistra sobre as boinas
dela, só para descobrir que o paramédico que reparou o meu braço fraturado me
demitira de um emprego de sanfoneiro na sua orquestra depois de apenas uma
apresentação e meia de uma certa ópera. Seria difícil dizer se Sunny encerrou o
breve lapso de tempo — uma expressão que aqui significa "apavorante
período" — em que trabalhou como assistente administrativa na Escola
Preparatória Prufrock pedindo demissão, sendo demitida ou saindo por mútuo
acordo. Ela trabalhou lá quando foi removida com seus irmãos do colégio
interno, depois que um esquema do conde Olaf foi quase bem-sucedido, mas, mesmo
depois de todo esse tempo, ainda era desagradável estar frente a frente com o vice-diretor
Nero.
"O
que você quer?", perguntou Nero, brandindo o violino que estava fazendo
todo aquele barulho horrível. Sunny não ficou feliz em ver que os quatro
rabichos-de-cavalo, que eram bem curtos quando ela foi apresentada ao
vice-diretor, tinham crescido e se transformado em tranças compridas e
ensebadas, e que ele ainda gostava de usar uma gravata decorada com cobras.
"Você
tocou", disse Sunny, o mais taciturna que pôde.
“Você
tocou", arremedou Nero imediatamente. "Bem, e daí que eu toquei? Se toquei
para chamá-la, isso não é desculpa para me interromper quando estou praticando o
violino. Tenho um recital de violino muito importante na quinta-feira, e meu
plano é ensaiar o tempo todo até lá."
"Por
favor, patrão", disse outra voz familiar, e Nero se virou, as tranças
sebentas balançando atrás dele. Sunny viu, para seu grande desgosto, que Nero
estava dividindo o quarto 371 com duas outras figuras do passado dos
Baudelaire. "O senhor disse que poderíamos parar para o almoço",
continuou o Sr. Remora, que tinha sido professor de Violet na Escola
Preparatória Prufrock, muito embora fosse difícil dizer exatamente que tipo de
professor ele era, pois tudo o que gostava de fazer era contar historinhas
curtas e sem sentido, e comer banana após banana, ocasionalmente besuntando de
polpa amarela todo o bigode, que era escuro e grosso como um polegar de gorila.
"Estou
com tanta fome que seria capaz de comer um decagrama de arroz", disse a Sra.
Bass, que tinha sido professora de Klaus. Estava claro que o seu entusiasmo por
medições de acordo com sistemas métricos exatos continuava o mesmo, mas a mais jovem
dos Baudelaire notou que sua aparência mudara um pouco. Cobrindo seus cabelos pretos
e desgrenhados havia uma pequena peruca loira, como um pico nevado em uma montanha,
e ela usava uma pequena máscara estreita com dois furinhos para os olhos.
"Ouvi
dizer que há um maravilho restaurante indiano na Sala 954."
Normalmente,
Sunny teria respondido “Andiamo", que era o seu jeito de dizer "Terei
prazer em levá-los até lá", no entanto teve medo de que o jeito de falar denunciasse
a sua verdadeira identidade, portanto, em vez disso, ela continuou com a postura
taciturna, inclinando-se ligeiramente para os três hóspedes e fazendo um gesto na
direção ao corredor com uma de suas luvas. O vice-diretor Nero pareceu
desapontado, mas então lançou um olhar acompanhado de um sorriso zombeteiro e
pôs-se a arremedar os gestos dela de um modo insultuoso, provando assim que era
capaz de ridicularizar alguém mesmo sem falar.
"Não
acha melhor levar o seu dinheiro, Sra. Bass?", perguntou o Sr. Remora, apontando
para a parede oposta do quarto 371.
"Não,
não", disse depressa a Sra. Bass, piscando nervosamente através dos furinhos
da máscara. "Estará mais seguro no quarto."
Sunny
inclinou a cabeça para poder olhar além dos joelhos da professora, e fez a sua
primeira observação importante como flâneur. Uma avultada pilha de grandes e avultados
sacos amontoava-se sobre a mesa, cada um deles com as palavras PROPRIEDADE DA
ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA DE MULTAS estampadas em severa tinta preta. A mais
jovem dos Baudelaire não era capaz de imaginar por que a Sra. Bass estava de
posse de algo do banco em que trabalhava o Sr. Poe, mas, com dois professores e
um vice-diretor aguardando impacientes no corredor, ela não teve tempo de parar
para pensar. Com mais um gesto taciturno, levou os hóspedes rapidamente até o elevador,
grata pelo fato de a Sra. Bass conhecer a localização do restaurante. A mais jovem
dos Baudelaire não teria idéia de como encontrar um restaurante indiano no
Hotel Desenlace sem um catálogo.
"Estou
muito animado com o meu recital", disse o vice-diretor Nero, quando o pequeno
elevador começou sua viagem rumo ao nono andar. "Tenho certeza de que os críticos
musicais que estarão no coquetel irão adorar a minha apresentação. Assim que eu
for reconhecido como um gênio, poderei finalmente largar o meu emprego na Prep Prufrock!"
"Como
você sabe que haverá críticos musicais na festa?", perguntou o Sr. Remora.
"Meu convite só dizia que haveria um bufê de bananas tipo 'tudo o que você
agüentar comer'."
"O
meu também não dizia nada sobre críticos musicais", disse a Sra. Bass.
"Ele só dizia que haveria uma festa celebrando o sistema métrico, e que eu
deveria levar o maior número possível de objetos de valor para serem medidos.
Como professora, não ganho o bastante para comprar objetos de valor, então tive
de apelar para uma vida de crimes."
“Tive
de apelar para uma vida de crimes", arremedou Nero. "Não posso
acreditar que um gênio como eu foi convidado para a mesma festa que vocês dois.
Esmé Squalor e seu namorado devem ter mandado os convites para vocês por
engano."
Os
olhos de Sunny se estreitaram, pensativos, atrás dos seus enormes óculos escuros.
O namorado de Esmé Squalor, é claro, era nada menos que o conde Olaf. Depois de
tanto tempo lutando contra seus esquemas vilanescos, a mais jovem dos Baudelaire
não ficou surpresa ao ouvir que Olaf estava planejando mais perfídias, porém não
podia imaginar por que ele atraíra seu antigo patrão para o hotel. Ela teria
adorado continuar com as suas observações como flâneur, mas quando o elevador
se deteve reassumiu seus deveres como concierge e pronunciou uma última palavra
taciturna.
"Nove",
disse ela.
"Nove",
arremedou Nero, e forçou passagem para a frente, para poder sair do elevador
primeiro. Sunny o seguiu e rapidamente guiou os três hóspedes para a porta com
o número 954, que ela abriu com um floreio silencioso.
"Posso
ajudar?", perguntou uma voz trêmula, e Sunny ficou atônita ao reconhecer mais
uma pessoa do passado dos Baudelaire. Era um homem muito velho, usando óculos minúsculos,
cada lente não muito maior que uma ervilha. Quando as crianças encontraram esse
homem pela primeira vez, ele não estava usando nenhum tipo de chapéu, mas agora
enrolara uma faixa de tecido em volta da cabeça, prendendo-a com uma pedra
vermelha brilhante. Sunny lembrou-se de um turbante assim na cabeça do conde
Olaf quando ele se disfarçou de professor de ginástica, mas não foi capaz de imaginar
por que uma coisa como aquela seria usada pelo homem que os Baudelaire haviam
conhecido no Hospital Heimlich.
"Posso
ajudar?", arremedou Nero. "É claro que você pode ajudar! Estamos morrendo
de fome!"
"Não
percebi que era uma ocasião triste", disse Hal, apertando os olhos através
dos óculos.
"Não
será uma ocasião triste se você nos alimentar", disse o Sr. Remora.
Hal
franziu o cenho, como se o Sr. Remora tivesse dado a resposta errada, mas logo
conduziu os três hóspedes para uma mesa de madeira no restaurante, de resto vazio.
"Nós
nos orgulhamos de servir uma grande quantidade de pratos indianos", disse ele,
entregando os cardápios e servindo a todos um copo d'água. "Na verdade, a
história culinária da região é bem interessante. Quando os ingleses..."
"Eu
vou querer dez gramas de arroz", interrompeu a Sra. Bass, "um décimo
de hectograma de vindalu de camarão, um decagrama de shana alu masala, mil
centigramas de salmão tanduri, quatro samosas com uma área de superfície de
dezenove centímetros cúbicos, cinco decilitros de lasside manga e um sada rava
dosai com exatamente dezenove centímetros de comprimento."
Sunny
esperava que Hal falasse algo sobre alguns dos pratos que a Sra. Bass havia
pedido, pois assim suas observações como flâneur poderiam servir também para aperfeiçoar
suas habilidades de cozinheira, mas ele simplesmente anotou o pedido dela sem
comentários e voltou-se para o Sr. Remora, que estava franzindo o cenho para o cardápio.
"Vou
querer quarenta e oito porções de bananas fritas", disse ele depois de
muito pensar.
"Uma
escolha interessante", comentou Hal. "E o senhor?"
"Um
saco de balas!", ordenou o vice-diretor Nero. Sunny quase se esquecera de que
o seu antigo patrão exigia balas de qualquer pessoa sempre que podia.
"Balas
não são um prato indiano tradicional", disse Hal. "Caso não tenha
certeza do que pedir, permita-me recomendar o prato combinado."
"Permita-me
recomendar o prato combinado.'", arremedou Nero lançando um olhar furioso
para Hal. "Tudo bem. Eu não vou comer nada! Provavelmente é perigoso chupar
balas oferecidas por estrangeiros!"
Hal
não reagiu àquele acesso de xenofobia — palavra que indica o medo de culturas
estrangeiras ou repulsa por elas; Jerome Squalor a ensinara aos Baudelaire algum
tempo atrás —, apenas inclinou a cabeça.
"O
seu almoço ficará pronto daqui a pouco", disse ele. "Estarei na
cozinha se precisarem de alguma coisa."
"Estarei
na cozinha se precisarem de alguma coisa', arremedou Nero imediatamente,
enquanto Hal atravessava um par de portas de vaivém. Com um suspiro, ele tirou
o seu copo d'água de cima da toalha individual e o colocou sobre o tampo de madeira
da mesa, onde certamente deixaria marca, e voltou-se para os dois professores.
"A
cabeça daquele estrangeiro me lembra a daquele homem simpático, o instrutor Genghis."
"Homem
simpático?", perguntou o Sr. Remora. "Se bem me lembro, ele era um vilão
notório disfarçado."
A
Sra. Bass ergueu as mãos e ajeitou nervosamente a peruca.
"Só
porque alguém é criminoso", disse ela, "isso não quer dizer que não
seja uma pessoa simpática. Além disso, quando você é um fugitivo da lei, não
tem como evitar o mau humor de vez em quando."
"Por
falar em fugitivo da lei...", disse o Sr. Remora, mas o vice-diretor o interrompeu
com um olhar feroz.
"Falaremos
disso mais tarde", ele falou depressa, e então virou-se para Sunny.
"Concierge,
vá buscar guardanapos para nós", disse Nero, claramente inventando uma desculpa
para mandar a mais jovem dos Baudelaire para longe do alcance da sua voz.
"Só
porque não estou comendo não quer dizer que não posso ficar com o queixo sujo
de comida!"
Sunny
assentiu, taciturna, e atravessou as portas de vaivém. Como flâneur, ela lamentava
ter de interromper suas observações, especialmente quando os hóspedes do quarto
371 pareciam prestes a discutir algo importante. Mas, como uma gourmand florescente
— uma expressão que aqui significa "menininha com forte interesse em cozinha"
—, estava ansiosa por dar uma olhada em uma cozinha de restaurante. Desde que a
juíza Strauss levara os Baudelaire ao mercado a fim de comprar ingredientes
para fazer um molho à puttanesca, Sunny começara a se interessar pela arte
culinária, embora só recentemente tivesse amadurecido o suficiente para
desenvolver esse interesse. Se você nunca deu uma espiada em uma cozinha de restaurante,
isso é algo que vale a pena fazer, pois ela é cheia de itens interessantes, e
de modo geral é muito fácil entrar em uma sorrateiramente, desde que você não
se incomode com os olhares furiosos se for descoberto. Mas quando Sunny
atravessou as portas de vaivém não notou nenhum item interessante na cozinha.
Para começar, o lugar estava tomado pelo vapor revoltante proveniente de uma
dúzia de panelas que ferviam em todos os cantos. Com o ar enevoado, ficava
difícil enxergar muita coisa, contudo essa não era a principal razão por que
Sunny estava ignorando o equipamento culinário. Havia uma conversação em curso entre
duas figuras insondáveis no recinto, e o que estava sendo dito era muito mais interessante
do que quaisquer ingredientes ou dispositivos usados na preparação de pratos
indianos tradicionais.
"Tenho
notícias de J.S.", sussurrava Frank ou Ernest para Hal. Ambos os homens estavam
em pé, de costas para Sunny e inclinando-se um na direção do outro, de modo que
pudessem falar o mais discretamente possível. Sunny manobrou para dentro de uma
nuvem de vapor especialmente espessa, procurando não ser flagrada.
"J.S.?",
disse Hal. "Ela está aqui?"
"Está
aqui para ajudar", corrigiu o gerente. "Andou usando os seus
Colimadores Simplificados de Clarificação para observar o céu, e receio que vá
relatar que todos nós vamos comer corvos."
"Lamento
ouvir isso", disse Hal. "Corvos são aves difíceis de cozinhar, porque
a carne é muito musculosa de tanto que os corvos carregam coisas."
Sunny
coçou a cabeça com uma luva, intrigada. A expressão "comer corvos"
lhe pareceu significar simplesmente a mesma coisa que "engolir
sapos", ou seja, "agüentar humilhação", e a mais jovem dos
Baudelaire aprendera isso com seus pais, que gostavam de provocar um ao outro
depois de uma partida de gamão. Sunny lembrou-se da mãe jogando os dados no
chão, triunfante, e dizendo "Bertrand, ganhei de novo. Prepare-se para
engolir sapos". Então, com um brilho maroto nos olhos, ela se atirava
sobre o pai de Sunny e fazia cócegas nele, enquanto as crianças Baudelaire se
amontoavam em cima dos dois numa pilha gargalhante. Mas Hal parecia estar
discutindo a expressão comer corvos como se fosse um prato de culinária real, e
não uma figura de linguagem, e a mais jovem dos Baudelaire se perguntou se não haveria
alguma coisa a mais naquele restaurante indiano, além do que ela pensara.
"É
uma pena", concordou Frank ou Ernest. "Se apenas houvesse algo para
deixar o prato um pouco mais doce. Ouvi dizer que certos cogumelos estão
disponíveis."
"Açúcar
seria melhor do que cogumelos", disse Hal de um modo insondável.
"De
acordo com os nossos cálculos, o açúcar irá para a lavagem a qualquer momento
depois da meia-noite", retrucou o gerente, de um modo igualmente
insondável.
"Fico
contente", disse Hal. "Meu trabalho tem sido suficientemente difícil.
Você sabe quantas folhas de alface tive de mandar para a cobertura?"
Frank
ou Ernest franziu o cenho.
"Conte-me",
disse ele, em um tom de voz ainda mais baixo "Você é quem eu penso que
é?"
“Você
é quem eu penso que é?", replicou Hal, em tom igualmente baixo.
Sunny
se arrastou mais para perto, na esperança de ouvir melhor a conversa e assim
descobrir se Frank ou Ernest estava se referindo ao açucareiro. Mas, para desespero
da mais jovem dos Baudelaire, o assoalho rangeu de leve e a nuvem de vapor se
desfez num turbilhão, e Hal e Ernest, ou talvez Frank, giraram nos calcanhares
para olhá-la.
"Você
é quem eu penso que é?", disseram os dois homens em uníssono.
Uma
das vantagens de ser taciturno é que assim raramente suas palavras o metem em
encrenca. Um escritor taciturno, por exemplo, poderia produzir apenas um poema
muito curto a cada dez anos, o que dificilmente incomodaria alguém, ao passo
que é provável que alguém que escreve doze ou treze livros em um tempo
relativamente curto se veja escondido debaixo da mesa de café de um notório
vilão, prendendo a respiração, esperando que ninguém no coquetel repare no
trêmulo jogo de gamão, e se perguntando, enquanto a mancha de tinta se espalha
pelo carpete, se certos exercícios literários valeram mesmo a pena. Se Sunny
tivesse decidido adotar uma postura loquaz, teria sido necessário pensar em uma
longa resposta para a pergunta que acabava de ser feita, e ela não conseguia
nem imaginar que resposta poderia ser essa. Se soubesse que o gerente na
cozinha era Frank, teria dito algo como "Sunny Baudelaire, por favor
ajude", que era o seu jeito de dizer "Sim, eu sou Sunny Baudelaire, e
meus irmãos e eu precisamos da sua ajuda para desvendar o esquema misterioso
que se desenrola no Hotel Desenlace e transmitir as descobertas por meio de
sinais aos membros de C.S.C.".
Se
ela soubesse que era Ernest que olhava para ela, diria alguma coisa mais
parecida com "No habla esperanto", que era o seu jeito de dizer
"Me desculpe. Não sei do que está falando". A presença de Hal, é
claro, tornava a situação ainda mais complicada, porque as crianças saíram de
seus empregos na Biblioteca de Registros do Hospital Heimlich por mútuo acordo,
uma vez que Hal acreditava que elas eram os responsáveis por atear fogo à
Biblioteca de Registros, e os Baudelaire precisaram fugir do hospital o mais
depressa possível, mas Sunny não tinha como saber se Hal continuava a guardar
ressentimento — uma expressão que aqui significa "ser inimigo dos
Baudelaire" —, ou se ele estava trabalhando no hotel como voluntário.
Entretanto, Sunny adotara uma postura taciturna, e tudo o que precisava era de
uma resposta taciturna.
"Concierge",
disse ela, e foi o bastante. Hal olhou para Frank, ou talvez fosse Ernest, e
Ernest, ou talvez fosse Frank, olhou de volta para Hal. Os dois homens balançaram
a cabeça e depois foram até um armário lustroso do outro lado da cozinha.
Hal
o abriu e entregou um objeto grande e estranho para Frank ou Ernest, que o examinou
e passou para Sunny. Era como uma grande aranha de metal, com fios espiralados
se espalhando em todas as direções, mas onde deveria estar a cabeça da aranha
havia um teclado de máquina de escrever.
"Você
sabe o que é isto?", perguntou o vilão ou voluntário.
"Sim",
disse a mais jovem dos Baudelaire. Sunny nunca tinha visto um dispositivo como
aquele, mas seus irmãos haviam descrito a estranha fechadura que encontraram em
uma passagem secreta escondida dentro das Montanhas de Mão-Morta. Não fossem os
conhecimentos de ciência de Violet e a notável memória de Klaus a respeito de literatura
russa, eles poderiam nunca ter aberto a fechadura, e Sunny ainda seria prisioneira
do conde Olaf.
"Tenha
muito cuidado com isto", disse Frank ou Ernest. "Quando você coloca
este dispositivo em cima da maçaneta de uma porta comum, e pressiona as letras
C, S e C, ele se transforma em uma porta de Cerramento Supravernacular
Complexo. Quero que você pegue o elevador até o subsolo e faça o Cerramento
Supravernacular Complexo da Sala 025."
"Trata-se
da lavanderia, você sabe", disse Hal apertando os olhos para Sunny através
dos óculos. "Como acontece com muitas portas de lavanderias, há um respiro
quecanaliza o vapor de todas as máquinas de lavar para o exterior, para que o
recinto não fique sobreaquecido."
"Mas
se alguma coisa cair do céu exatamente no ângulo certo", disse Frank ou Ernest,
"poderá cair através do respiro para dentro do recinto. E se essa coisa
for muito valiosa, então o recinto terá de ser bem trancado, para que o item
não venha a cair nas mãos erradas."
Sunny
Baudelaire não tinha idéia do que aqueles dois adultos estavam falando e desejou
estar ainda envolta pelo vapor, para que pudesse observar o resto da conversa deles.
Mas ela segurou com firmeza a estranha fechadura em suas mãos enluvadas e percebeu
que não era hora de ser flâneur.
"Fico
grato por sua ajuda, concierge", disse Frank, ou talvez tenha sido Ernest,
ou talvez o homem que falava não fosse nenhum dos irmãos. "Não são muitas
as pessoas que têm a coragem de ajudar em um esquema como este."
Sunny
fez mais um aceno taciturno com a cabeça e voltou-se para sair da cozinha. Em
silêncio, atravessou as portas de vaivém e o restaurante sem parar nem para
ouvir a conversa sussurrada que o vice-diretor Nero estava tendo com o Sr.
Remora e a Sra. Bass, e em silêncio ela abriu a porta da Sala 954 e caminhou
pelo corredor até o elevador. Foi somente quando estava descendo de elevador
até o subsolo que o silêncio de Sunny foi quebrado por um ruído impactante.
O
relógio do saguão do Hotel Desenlace é de fama legendária, uma expressão que
aqui significa "muito conhecido por tocar muito alto". Fica bem no
centro do teto, bem no topo da abóbada, e quando ele bate as horas seus sinos
ecoam pelo prédio inteiro, produzindo um ruído imenso e profundo que soa como
uma estranha palavra pronunciada uma vez para cada hora anunciada. Naquele
momento em particular eram três horas, e todo mundo no hotel pôde ouvir o toque
estrondoso dos enormes sinos do relógio, emitindo a palavra três vezes
seguidas: Nadabom! Nadabom! Nadabom!
Enquanto
atravessava as portas deslizantes do elevador e caminhava pelo corredor do
subsolo, passando pelos vasos ornamentais e as portas numeradas, Sunny Baudelaire
sentiu como se o relógio a estivesse repreendendo por seus esforços para resolver
os mistérios do Hotel Desenlace. Nadabom! Ela. tentara dar o melhor de si para ser
uma flâneur, mas não observara o suficiente para descobrir o que dois
professores e um vice-diretor da Escola Preparatória Prufrock estavam fazendo
no hotel. Nadabom! Ela tentara se comunicar com um dos gerentes do hotel, mas
não fora capaz de descobrir se era Frank ou Ernest, ou se Hal era um voluntário
ou um inimigo. E — o mais Nadabom! De todos — desempenhava uma incumbência como
concierge, e estava agora transformando a entrada da lavanderia em uma porta de
Cerramento Supravernacular Complexo, para servir a algum propósito sinistro
desconhecido.
A
cada batida do relógio, Sunny sentia que nada estava bom, até que por fim chegou
à Sala 025, onde uma lavadeira com longos cabelos loiros e roupas amarrotadas acabava
de fechar a porta ao sair. Com um apressado aceno de cabeça, a lavadeira desceu
o corredor em passos silenciosos. Sunny esperava de todo coração que seus dois irmãos
tivessem obtido mais sucesso em suas incumbências, pois ao colocar o
dispositivo sobre a maçaneta da porta e pressionar as letras C-S-C no teclado
de máquina de escrever, tudo em que a mais jovem dos Baudelaire conseguiu
pensar foi que aquilo tudo não era nadabom, nadabom, nadabom.
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