Capítulo 7
Um
bocado de coisas aconteceu naquele dia depois que o relógio bateu três horas e
cada Nadabom! ecoou por todo o imenso e desconcertante mundo do Hotel Desenlace.
No nono andar, uma mulher foi subitamente reconhecida por uma química, e as
duas tiveram um ataque de riso. No subsolo, uma estranha visão foi relatada por
um homem ambidestra que falava em um walkie-talkie.
No
sexto andar, uma das governantas tirou o disfarce e abriu um buraco atrás de um
vaso ornamental a fim de examinar os cabos que mantinham um dos elevadores no lugar,
enquanto ouvia o som longínquo de uma canção muito irritante vindo de um quarto
logo acima. No quarto 296, um voluntário subitamente se deu conta de que a
língua hebraica deve ser lida da direita para a esquerda e não da esquerda para
a direita, o que significa que ela deve ser lida da esquerda para a direita e
não da direita para a esquerda no espelho, e no café localizado na Sala 178 um
vilão pediu açúcar no seu café e foi imediatamente atirado ao chão para que uma
garçonete pudesse verificar se ele tinha uma tatuagem no tornozelo; então, em
troca de todo aquele incômodo, recebeu um pedido de desculpas e uma fatia
grátis de torta de ruibarbo. No quarto 174, um banqueiro atendeu o telefone
apenas para descobrir que não havia ninguém na linha, e no quarto 594, uma
família passava despercebida, sentada entre aquários de peixes tropicais tendo por
companhia apenas uma mala cheia de roupa suja, sem se dar conta de que embaixo de
uma almofada do sofá se encontrava uma toalhinha ornamental que eles procuravam
havia mais de nove anos. Do lado de fora do hotel, um motorista de táxi olhava
para o respiro que despejava vapor no céu e se perguntava se um certo homem com
as costas com formato incomum iria voltar para reclamar as malas que ainda
estavam no porta-malas; do outro lado do hotel, uma mulher de capacete de
mergulho e maio lustroso tentava enxergar o fundo escuro do mar iluminando-o
com uma lanterna através da água.
No
lado oposto da cidade, um longo automóvel preto conduzia uma mulher para longe
do homem que ela amava, e em uma outra cidade, a quilômetros e quilômetros dos Baudelaire,
quatro crianças brincavam na praia, sem se dar conta de que estavam prestes a
receber notícias muito assustadoras; ainda em outra cidade, que não era nem
aquela onde viveram os Baudelaire nem a que acabo de mencionar, alguma outra
pessoa ficou sabendo de alguma coisa e houve algum tipo de confusão, ou pelo
menos é o que fui levado a acreditar. A cada Nadabom! do relógio, enquanto de
mansinho a tarde se transformava em noite, um sem-número de coisas acontecia,
não apenas no imenso e desconcertante universo do Hotel Desenlace, mas também
no imenso e desconcertante universo que jazia para além das suas paredes de
tijolos.
No
entanto, os órfãos Baudelaire não pensaram em nada disso. Curiosamente, suas
incumbências como concierges os mantiveram no saguão pelo resto da tarde, e por
essa razão eles não tiveram mais oportunidade de se aventurar nos pequenos
elevadores e observar o que quer que fosse como flâneurs, pois passaram horas
levando coisas de um lado para outro no saguão, sem nem pensar nos objetos que
carregavam, nem nos hóspedes que aguardavam por eles, tampouco na figura alta e
esguia de Frank ou Ernest, que ocasionalmente passava apressada por eles
concentrado em suas próprias incumbências. A medida que a noite se aproximava,
e as sinetas atrás do balcão tocavam cada vez menos freqüentemente, Violet,
Klaus e Sunny pensavam apenas no que tinha acontecido com eles. Pensavam
somente no que cada um deles observara, e se perguntavam que diabo aquilo tudo
poderia significar. Por fim, exatamente como Frank ou Ernest tinha previsto, a
noite chegou e o hotel ficou muito silencioso. Os três irmãos se reuniram atrás
do grande balcão de madeira para conversar, com as costas contra a parede e
esticando as pernas até quase tocar nas sinetas. Violet contou a história de Esmé
Squalor, Carmelita Spats e Geraldine Julienne no salão de bronzeamento da cobertura,
e Frank ou Ernest no saguão. Klaus contou a história de Senhor e Charles no quarto
674, e Frank ou Ernest na sauna. E Sunny contou a história do vice-diretor
Nero, do Sr. Remora e da Sra. Bass no quarto 371, e Frank ou Ernest e Hal no
restaurante indiano da Sala 954. Klaus registrava tudo cuidadosamente no seu
livro de lugar-comum; quando chegou a sua vez de falar, ele entregou o livro a
Violet, e os três Baudelaire interrompiam-se com perguntas e palpites. Depois
que todas as histórias já tinham sido contadas, e examinados os incontáveis
detalhes anotados a tinta no papel, tudo o que lhes acontecera continuava tão
misterioso quanto era pela manha.
"Isso
simplesmente não faz nenhum sentido", disse Violet. "Por que Esmé
está planejando uma festa? Por que Carmelita Spats pediu um lançador de
arpões?"
"Por
que Senhor e Charles estão aqui?", perguntou Klaus. "Por que há um
papel pega-pássaros pendurado do lado de fora da janela da sauna?"
"Por
que Nero?", perguntou Sunny. "Por que Remora? Por que Bass? Por que Hal?"
"Quem
é J.S.?", perguntou Violet. "É um homem à espreita no subsolo, ou é
uma mulher observando o céu?"
"Onde
está o conde Olaf?", perguntou Klaus. "Por que ele convidou tantos
dos nossos antigos tutores aqui para o hotel?"
"Frankernest",
disse Sunny, e essa talvez fosse a pergunta mais misteriosa de todas. Violet,
Klaus e Sunny tinham, cada um deles, encontrado um dos gerentes momentos antes
de o relógio bater as três horas. Kit Snicket lhes dissera que se observassem
todas as pessoas que vissem poderiam distinguir os vilões dos voluntários, mas
os Baudelaire não sabiam qual irmão se encontrara com qual gerente, e eles simplesmente
não podiam imaginar como duas pessoas podiam estar em três lugares ao mesmo
tempo. Os Baudelaire ponderaram sobre a situação em um silêncio quebrado apenas
por um som estranho, repetitivo, que parecia vir de fora. Por um momento, esse som
foi mais um mistério, mas os irmãos logo perceberam que era o coaxar de rãs.
Devia haver milhares delas vivendo nas profundezas da lagoa, e agora, com a
noite, teriam vindo para a superfície e se comunicavam umas com as outras com o
som gutural de sua espécie. Era um som insondável, como se até o mundo natural
fosse um código que os Baudelaire não pudessem decifrar.
"Kit
disse que nem tudo iria bem", disse Violet. "Ela disse que as nossas incumbências
poderiam ser nobres, mas que não teríamos sucesso."
"É
verdade", concordou Klaus. "Ela disse que todas as nossas esperanças
se transformariam em fumaça, e talvez ela estivesse certa. Cada um de nós
observou uma história diferente, mas nenhuma das histórias faz sentido."
"Elefante",
disse Sunny.
Violet
e Klaus olharam para a irmã, curiosos.
"Poema",
disse ela. "Pai."
Violet
e Klaus se entreolharam, intrigados.
"Elefante",
insistiu Sunny, mas essa foi uma das raras ocasiões em que Violet e Klaus não
entenderam o que a irmã estava dizendo. Na pequena testa de Sunny podia-se ver
um sulco enquanto ela se esforçava em se lembrar de algo que poderia ajudá-la a
se comunicar com os irmãos. Por fim, ela ergueu os olhos para Violet e Klaus.
"John Godfrey Saxe", disse ela, e os três Baudelaire sorriram.
O
nome John Godfrey Saxe provavelmente não significa nada para você, a não ser
que seja um fã de poetas humoristas americanos do século dezenove. Não existem muitas
pessoas assim no mundo, mas o pai dos Baudelaire era uma delas, e sabia de cor diversos
poemas. De tempos em tempos ele entrava em um estado de ânimo esdrúxulo — a
palavra "esdrúxulo", como você provavelmente sabe, significa
"esquisito e impulsivo" —, agarrava no colo a criança Baudelaire mais
próxima e a jogava para cima e para baixo enquanto recitava um poema de John
Godfrey Saxe sobre um elefante. No poema, seis homens cegos encontraram um
elefante pela primeira vez e foram incapazes de entrar num acordo sobre com o
que o animal se parecia. O primeiro homem apalpou o alto e macio flanco do
elefante e concluiu que um elefante se parecia com uma parede. O segundo homem
apalpou a presa do elefante e decidiu que um elefante se parecia com uma lança.
O terceiro homem apalpou a tromba do elefante e o quarto apalpou uma de suas
pernas, e assim por diante, com todos os cegos discutindo sobre com o que se parecia
um elefante. Como acontece com muitas crianças, Violet e Klaus já eram suficientemente
crescidos para achar os estados de ânimo esdrúxulos do pai um pouco embaraçosos,
e assim, como se tornou o público principal dos recitais de poesia do Sr. Baudelaire,
Sunny lembrava-se melhor do poema.
"Aquele
poema poderia se aplicar a nós", disse Violet. "Cada um de nós
observou uma pequenina parte do quebra-cabeça, mas nenhum de nós viu a coisa
inteira."
"Ninguém
poderia ver a coisa inteira", disse Klaus. "Existe um mistério atrás
de cada porta do Hotel Desenlace, e ninguém pode estar em todos os lugares ao
mesmo tempo, observando todos os voluntários e todos os vilões."
"Ainda
assim temos de tentar", disse Violet. "Kit disse que o açucareiro
estava a caminho deste hotel. Temos de impedir que ele caia nas mãos do
impostor."
"Mas
o açucareiro pode ser escondido em qualquer lugar", disse Klaus, "e o
impostor poderia ser qualquer um. Todos aqueles que observamos falavam sobre
J.S., mas ainda não sabemos quem é ele ou ela."
"'Cada
qual estava em parte certo'", Sunny recitou o penúltimo verso do poema do elefante.
Seus
irmãos sorriram e terminaram o verso em coro:
'"E
todos estavam errados'", disseram juntos, mas a última palavra foi abafada
por outro som, ou talvez fosse mais apropriado dizer que a palavra
"errados" foi abafada por outra palavra. Nadabom! anunciou o relógio
do Hotel Desenlace. Nadabom! Nadabom! Nadabom! Nadabom! Nadabom! Nadabom!
Nadabom! Nadabom! Nadabom! Nadabom! Nadabom!
"É
tarde", disse Klaus quando o décimo segundo Nadabom! silenciou. "Nem percebi
que ficamos conversando tanto tempo." Ele e suas irmãs se levantaram, se espreguiçaram
e viram que o saguão estava vazio e silencioso. A tampa do piano de cauda estava
fechada. A fonte em cascata tinha sido desligada. Até mesmo o balcão de recepção
estava vazio, como se o Hotel Desenlace não esperasse mais hóspedes até de manhã.
A luz da luminária em forma de rã e, é claro, os próprios Baudelaire eram os únicos
sinais de vida sob a enorme abóbada do teto.
"Acho
que os hóspedes estão dormindo", disse Violet, "ou então estão
passando a noite inteira lendo, como disse Frank."
"Ou
Ernest", lembrou Sunny.
"Talvez
devêssemos tentar dormir também", disse Klaus. "Temos mais um dia para
resolver esses mistérios, e devemos estar bem descansados para quando esse dia chegar."
"Imagino
que não deva haver muita coisa para observar depois que escurece", disse
Violet.
"Sono",
bocejou Sunny.
Os
irmãos assentiram, todos os três porém ficaram lá parados. Não parecia certo dormir
quando tantos inimigos estavam à espreita no hotel, engendrando planos
sinistros. Tais eventos acontecem todas as noites, e não só no Hotel Desenlace,
mas em todo o mundo, e até mesmo o mais nobre dos voluntários precisa de uma
soneca rápida, uma expressão que aqui significa "deitar atrás de um grande
balcão de madeira e esperar que ninguém toque as sinetas dos concierges até de
manhã". As crianças teriam preferido circunstâncias mais confortáveis para
dormir, é claro, mas um tempo muito longo se passara desde a última vez em que
essas circunstâncias estiveram disponíveis; assim, sem mais discussões, eles
deram boa-noite um ao outro, e Klaus estendeu a mão para apagar a luminária em
forma de rã. Por um momento, as três crianças ficaram deitadas ouvindo o coaxar
que vinha da lagoa lá fora.
"Está
escuro", disse Sunny. A mais jovem dos Baudelaire não tinha nenhum medo especial
do escuro, apenas sentiu vontade de mencionar isso, para o caso de os seus irmãos
estarem nervosos.
"Está
mesmo escuro", concordou Violet com um bocejo. "Com os meus óculos escuros,
está escuro como... O que foi mesmo que disse Kit Snicket? Tenebroso como um
corvo voando em noite escura como breu."
"É
isso", disse Klaus de repente. Suas irmãs ouviram-no levantar-se no
escuro, e então ele tornou a acender a luminária de rã, fazendo ambas piscarem
atrás dos óculos escuros.
"O
que foi?", disse Violet. "Pensei que fôssemos dormir."
"Como
podemos dormir", perguntou Klaus, "quando o açucareiro está sendo
trazido ao hotel exatamente nesta noite?"
"O
quê?", perguntou Sunny. "Como?"
Klaus
tirou do bolso o seu livro de lugar-comum e folheou as anotações que fizera sobre
o que os Baudelaire tinham observado.
"Por
corvos", disse ele.
"Corvos?",
disse Violet.
"Não
seria a primeira vez que os corvos carregam algo de importante", disse Klaus,
lembrando as irmãs dos corvos na cidade dos Cultores Solidários de Corvídeos, que
tinham trazido mensagens dos Quagmire aos Baudelaire. "Era isso que Esmé Squalor
estava observando com os seus Colimadores Simplificados de Clarificação."
"J.S.
também", disse Sunny, lembrando o que ou Frank ou Ernest comentava sobre
observar o céu.
"E
é por isso que Carmelita Spats me fez ir buscar um lançador de arpões",
disse Violet, pensativa. "A fim de abater os corvos, para que C.S.C.
jamais possa chegar ao açucareiro."
"E
é por isso que Frank ou Ernest me fez pendurar papel pega-pássaros do lado de
fora da janela da sauna", disse Klaus. "Se os corvos forem atingidos
pelo lançador de arpões, eles cairão no papel pega-pássaros, e ele saberá que a
entrega não foi bem-sucedida."
"Mas
foi Frank ou Ernest que fez você pendurar o papel pega-pássaros?", perguntou
Violet. "Se foi Frank, então o papel pega-pássaros serviria como sinal aos
voluntários de que eles foram derrotados. Se foi Ernest, então o papel
pega-pássaros serviria como sinal aos vilões de que eles triunfaram."
"E
o açucareiro?", perguntou Klaus. "Os corvos vão largar o açucareiro
se forem atingidos pelo ar-pão." Ele franziu a testa ao olhar para uma
página do seu livro de lugar-comum. "Se os corvos deixarem cair um objeto
pesado como esse", disse, "ele vai cair diretamente na lagoa."
"Talvez
não", disse Sunny.
"Onde
mais poderia cair?", perguntou Violet.
"Giracíclico",
disse Sunny, que era o seu jeito de dizer "lavanderia".
"Como
ele iria parar na lavanderia?", perguntou Klaus.
"Respiro",
disse Sunny. "Frank disse. Ou Ernest."
"Então
eles mandaram você colocar uma fechadura na porta da lavanderia", disse Violet,
"para que ninguém pudesse pegar o açucareiro."
"Mas
foi Frank ou Ernest que fez Sunny ativar a fechadura?", perguntou Klaus. "Se
foi Frank, então o açucareiro estaria trancado, a salvo das mãos de algum vilão
que quisesse se apoderar dele. Se foi Ernest, então o açucareiro estaria
trancado, a salvo das mãos de algum voluntário que precisasse se apoderar
dele."
"J.S.",
disse Sunny.
"J.S.
é a chave de todo o mistério", concordou Violet. "Esmé Squalor acha
que J.S. está estragando a festa. Senhor acha que J.S. está recebendo os
convidados da festa. Hal acha que J.S. pode estar aqui para ajudar. Kit acha
que J.S. pode estar entre os inimigos. E nós ainda nem sequer sabemos se J.S. é
homem ou mulher!"
"Que
nem cegos", disse Sunny, "com elefante."
"Temos
de encontrar J.S.", concordou Klaus, "mas como? Tentar localizar um hóspede
num hotel enorme é como tentar encontrar um livro numa biblioteca."
"Uma
biblioteca sem catálogo", disse Violet, e os três Baudelaire trocaram
olhares tristonhos à luz da luminária em forma de rã. As crianças tinham
descoberto incontáveis segredos em bibliotecas sob as mais desesperadas
circunstâncias. Elas decodificaram uma mensagem numa biblioteca enquanto um
furacão arrasava tudo do lado de fora, e encontraram informações importantes
enquanto uma pessoa sinistra as perseguia por uma biblioteca usando calçados
malignos. Elas tinham descoberto fatos cruciais em uma biblioteca que só
continha três livros, e obtiveram um mapa vital em uma biblioteca que era
apenas uma pilha de papéis escondidos debaixo de uma mesa. Os Baudelaire até mesmo
encontraram as respostas que estavam procurando em uma biblioteca que havia sido
incendiada, deixando apenas uns poucos fragmentos de papel e um mote gravado em
um arco de ferro. Violet, Klaus e Sunny ficaram por alguns momentos em pé atrás
do balcão dos concierges pensando em todas as bibliotecas que tinham visto, e
se perguntaram se algum dos segredos por eles descobertos iria ajudá-los a
encontrar o que estavam procurando na desconcertante biblioteca do Hotel
Desenlace.
"Aqui
o mundo é sereno", disse Sunny, recitando o mote que seus irmãos encontraram,
e quando as palavras dela ecoaram no saguão, os três ouviram um barulho acima
deles, um silencioso arrastar de pés vindo da enorme abóbada, quase imperceptível
em meio ao coaxar das rãs. O arrastar de pés ficou mais alto, mas os Baudelaire
não conseguiram ver nada no negrume acima de suas cabeças, que era tão tenebroso
quanto um corvo voando em noite escura como breu. Violet ergueu a luminária em
forma de rã o mais alto que o fio permitia, e as três crianças tiraram os
óculos escuros.
Vagamente,
puderam distinguir um vulto sombrio baixando do mecanismo do relógio por meio
do que parecia ser uma corda grossa. Era uma visão fantasmagórica, como a de uma
aranha descendo para o centro de uma teia, mas os Baudelaire não puderam deixar
de admirar a perícia com que aquilo era feito. Com apenas um ligeiro roçar, o
vulto foi chegando cada vez mais perto até que, finalmente, as crianças
conseguiram ver que se tratava de um homem alto e muito magro, com pernas e
braços se projetando em ângulos estranhos, como se fosse feito de canudinhos de
refresco em vez de carne e osso. O homem descia por uma corda que ele ia
desenrolando, o que é uma atividade que não recomendo — a não ser que você
tenha um treinamento adequado, e infelizmente o melhor treinador fora forçado a
se esconder desde que uma certa sede de operações nas montanhas fora destruída
em um incêndio criminoso; agora ele ganha a vida fazendo imitações de aranhas
em um espetáculo itinerante. Por fim o homem chegou bem perto do chão e, com um
floreado elegante, soltou a corda e aterrissou silenciosamente no piso.
Então
caminhou decidido na direção dos Baudelaire, parando apenas para limpar um grão
de poeira da palavra GERENTE, que estava impressa em letras elegantes em cima
de um dos bolsos do casaco.
"Boa
noite, irmãos Baudelaire", disse o homem. "Perdoem-me por não ter me revelado
antes, mas eu precisava ter certeza de que vocês eram quem eu pensava que fossem.
Deve ter sido muito desconcertante perambular por este hotel sem um catálogo para
ajudá-los."
"Então
existe um catálogo?", perguntou Klaus.
"É
claro que existe um catálogo", disse o homem. "Vocês não pensaram que
eu iria organizar este edifício inteiro de acordo com o Sistema Decimal De-wey
e então esquecer de acrescentar um catálogo, pensaram?"
"Mas
onde está o catálogo?", perguntou Violet.
O
homem sorriu.
"Vamos
lá fora", disse ele, "e mostrarei a vocês."
"Arapuca",
murmurou Sunny para os irmãos, que assentiram, concordando.
"Não
vamos segui-lo", disse Violet, "enquanto não soubermos se você é
alguém em quem podemos confiar."
O
homem sorriu.
"Não
os culpo por suspeitar", disse ele. "Quando eu me encontrava com o
pai de vocês, irmãos Baudelaire, nós recitávamos a obra de um poeta humorista
americano do século dezenove, para que pudéssemos reconhecer um ao outro em
nossos disfarces."
Ele
se deteve no meio do saguão e, com um gesto de um dos estranhos braços
magrelos, começou a recitar um poema em inglês antigo:
So oft in theologic
wars,
The disputants, I
ween,
Rail on in utter
ignorance
Of what each other
mean,
And prate about an
Elephant
Not one of them has
seen!*
* Frequentemente em
guerras teológicas/ Os disputantes, eu penso,/ Altercam em total ignorância/
Sobre o que cada qual quer dizer,/ E conversam sobre um elefante/ Que nenhum
deles viu! (N. T. — tradução livre)
As
palavras dos poetas humoristas americanos do século dezenove são muitas vezes
desconcertantes, pois eles são propensos a usar termos como oft que é uma abreviatura
do século dezenove para often (frequentemente); disputants, que se refere a pessoas
que estão discutindo; ween, que significa "pensar"; e rail on, que
significa "discutir durante horas a fio", do modo como você poderia
fazer com um membro da família que é especialmente mandão. Esses poetas podem
usar a palavra prate, que significa "conversar", e eles podem passar
uma estrofe inteira discutindo theologic wars, um termo que se refere à
discussão sobre coisas em que diferentes pessoas acreditam, do modo como você
poderia fazer com um membro da família que é especialmente mandão. Mesmo os
Baudelaire, que ouviram obras de poetas humoristas americanos do século
dezenove sendo recitadas para eles muitas vezes durante a infância, tinham dificuldade
em entender tudo na estrofe, que simplesmente salientava o fato de que todos os
homens cegos do poema estavam discutindo à toa. Mas Violet, Klaus e Sunny não precisavam
saber exatamente o que significava a estrofe. Só precisavam saber quem a escrevera.
"John
Godfrey Saxe", disse Sunny com um sorriso.
"Muito
bom", disse o homem, e caminhou através do piso lustroso e silencioso do saguão,
puxando a corda do teto e enfiando-a no cinto.
"E
quem é você?", perguntou Violet.
"Você
não consegue adivinhar?", perguntou o homem, dando uma parada na grande
entrada curva. Os Baudelaire se apressaram para alcançá-lo enquanto ele se virava
para sair do hotel.
"Frank?",
disse Klaus.
"Não",
disse o homem, e começou a descer as escadas. Os Baudelaire deram um passo para
fora, onde o coaxar das rãs na lagoa era consideravelmente mais alto, embora as
crianças não pudessem ver a lagoa através da nuvem de vapor proveniente do
respiro.
Violet,
Klaus e Sunny se entreolharam com cautela e então se puseram a segui-lo.
"Ernest?",
perguntou Sunny.
O
homem sorriu e continuou descendo as escadas, desaparecendo no vapor.
"Não",
disse ele, e os órfãos Baudelaire saíram do hotel e desapareceram em sua companhia.
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