Capítulo 8
Pensar em alguma coisa é como apanhar uma pedra ao caminhar
pulando entre as rochas na praia, por exemplo, ou procurar um modo de
estilhaçar as portas de vidro de um museu. Quando você pensa em alguma coisa,
isso acrescenta um pouquinho de peso ao seu caminhar, e, à medida que pensa em
mais e mais coisas, você corre o risco de se sentir mais e mais pesado, até
ficar tão sobrecarregado que não consegue mais dar nem um passo; você pode
apenas sentar-se e ficar olhando para os movimentos suaves das ondas do oceano
ou dos seguranças, pensando muito intensamente sobre coisas demais para fazer
qualquer outra coisa. Quando o sol se pôs, lançando longas sombras sobre a
plataforma costeira, os órfãos Baudelaire sentiam-se tão pesados com seus
pensamentos que mal conseguiam se mexer. Eles pensaram na ilha, na terrível
tempestade que os conduzira até lá, no barco que os guiara através da
tempestade, e na sua própria perfídia no Hotel Desenlace que os levara a
escapar no barco com o conde Olaf, que parara de gritar pelos Baudelaire e
agora roncava alto na gaiola de passarinho. Eles pensaram na colônia, na nuvem
negra sob a qual os colonos os puseram, na pressão dos pares que levara os
ilhéus a decidir abandoná-los, no facilitador que começou a pressão dos pares e
no miolo de maçã secreto que não parecia diferente dos itens secretos que os
tinham metido naquela enrascada para começo de conversa. Eles pensaram em Kit
Snicket, na tempestade que a deixara inconsciente em cima da estranha
biblioteca-balsa, nos seus amigos — os trigêmeos Quagmire, que também podem ter
sido pegos no mesmo mar borrascoso — no submarino do capitão Andarré que jazia
embaixo do mar e na misteriosa cisão que jazia embaixo de tudo como um enorme
ponto de interrogação. E os Baudelaire pensaram, como faziam a cada vez que
viam o céu ficar escuro, em seus pais.
Se você já perdeu alguém, sabe que às vezes, ao pensar nessa
pessoa, a gente tenta imaginar onde ela pode estar, e os Baudelaire pensaram em
quão longe sua mãe e seu pai pareciam estar, enquanto toda a maldade do mundo
estava tão perto, trancada em uma gaiola a apenas alguns metros de onde eles
estavam sentados. Violet pensou, Klaus pensou, Sunny pensou e, quando a tarde
foi se tornando noite, os irmãos se sentiram tão sobrecarregados pelos seus
pensamentos que acharam que dificilmente poderiam admitir outro pensamento, e
contudo, quando os últimos raios do sol desapareceram no horizonte, eles
encontraram outra coisa em que pensar, pois na escuridão ouviram uma voz
familiar e tiveram de pensar no que fazer.
— Onde estou? — perguntou Kit
Snicket, e as crianças ouviram, por cima dos roncos, o
ruído leve do corpo dela se mexendo na camada superior de livros.
— Kit! — disse Violet,
levantando-se rapidamente. — Você está
acordada!
— Somos os Baudelaire — disse
Klaus.
— Baudelaire? — repetiu Kit com a
voz débil. — São mesmo vocês?
— Anais — disse Sunny, o que
queria dizer: ''Em carne e osso''.
— Onde estamos? — disse Kit.
Os Baudelaire ficaram em silêncio por um
momento e se deram conta pela primeira vez de que nem mesmo sabiam o nome do
lugar onde estavam.
— Estamos numa plataforma
costeira — disse Violet por fim, porém decidiu
não acrescentar que eles tinham sido abandonados ali.
— Há uma
ilha aqui perto — disse Klaus. O Baudelaire do meio não explicou que eles não
eram bem-vindos e não podiam pôr o pé nela.
— Seguro — disse Sunny, mas não mencionou que o Dia da Decisão se aproximava, e que logo a área
inteira seria inundada pelo mar. Sem discutir o assunto, os Baudelaire
decidiram não contar a Kit a história inteira, não ainda.
— E claro — murmurou Kit. — Eu
devia saber que estaria aqui. Mais cedo ou mais tarde tudo acaba dando nestas
praias.
— Você já esteve aqui antes? — perguntou Violet.
— Não —
disse Kit, — mas ouvi falar deste lugar. Meus associados me contaram histórias
sobre as maravilhas mecânicas que existem aqui, a enorme biblioteca e os pratos
de alta culinária que os ilhéus preparam. Ora, irmãos
Baudelaire, no dia anterior ao meu encontro com vocês, compartilhei um café
turco com um associado que disse nunca ter comido Ostras Rockefeller melhores
do que durante a sua estada na ilha. Vocês devem estar se divertindo muito
aqui.
— Janicípite — disse Sunny, reafirmando uma opinião prévia.
— Acho que este lugar mudou desde
que o seu associado esteve aqui — disse Klaus.
— Isso provavelmente é verdade — disse Kit, pensativa. — Quinta-Feira de fato disse que a
colônia tinha sofrido uma cisão, como C.S.C. sofreu.
— Outra cisão? — perguntou Violet.
— Cisões incontáveis dividiram o mundo com o correr dos anos — respondeu Kit
no escuro. — Vocês acham que a história de C.S.C. é a única história do mundo?
Mas não vamos falar do passado, irmãos Baudelaire. Contem-me como vocês vieram
dar nestas praias.
— Do mesmo modo que você — disse Violet. — Somos náufragos. O único jeito de sairmos do Hotel
Desenlace foi de barco.
— Soube que vocês correram perigo lá — disse Kit. — Estávamos observando o céu. Vimos a
fumaça e soubemos
que vocês estavam sinalizando para nós, mas não seria seguro
nos juntarmos a vocês. Obrigada, irmãos Baudelaire. Eu sabia que vocês não
iriam nos decepcionar. Digam-me, Dewey está com vocês?
As palavras de Kit quase foram mais do que os Baudelaire podiam agüentar. A fumaça que ela vira, é claro, era do incêndio que as
crianças tinham provocado na lavanderia do hotel, que rapidamente se espalhara
pelo edifício inteiro, interrompendo o julgamento do conde Olaf e pondo em
risco a vida de todos os que estavam lá dentro, fossem vilões ou voluntários. E
Dewey, me entristece lembrar, não estava com os Baudelaire, mas morto no fundo
de uma lagoa, ainda apertando nas mãos o arpão que os três irmãos dispararam em
seu coração. No entanto, Violet, Klaus e Sunny não conseguiram decidir-se a
contar a história inteira para Kit, não agora. Eles não agüentariam contar-lhe
o que acontecera com Dewey, e com todas as outras pessoas nobres que tinham
encontrado, não ainda. Não agora, não ainda, talvez nunca.
— Não —
disse Violet. — Dewey não está aqui. —
—
O conde Olaf está conosco — disse Klaus, — mas está trancafiado.
— Víbora
— acrescentou Sunny.
— Oh, fico feliz em saber que Ink
está em segurança — disse Kit, e os Baudelaire pensaram
que quase podiam ouvi-la sorrir. — É o meu apelido especial para a Víbora
Incrivelmente Mortífera. Ink foi uma boa companhia para mim nesta balsa depois
que nos separamos dos outros.
— Os Quagmire? — perguntou Klaus.
— Você os encontrou?
— Sim — disse Kit, e tossiu um
pouco. — Mas eles não estão aqui.
— Talvez eles também sejam arrastados para cá — disse Violet.
— Talvez — disse Kit, insegura. —
E talvez Dewey também venha se juntar a nós. Precisamos
reunir o maior número de associados que pudermos, se quisermos retornar ao
mundo e assegurar que a justiça seja feita. Mas antes vamos achar essa colônia
de que tanto ouvi falar. Preciso de um banho e uma refeição quente, e depois
quero ouvir a história inteira do que aconteceu com vocês. — Ela começou a
descer da balsa, mas então parou com um grito de dor.
— Você não deve se mexer — disse Violet depressa, contente com a desculpa
para manter Kit na plataforma costeira. — O seu pé está ferido.
— Meus dois pés estão feridos — corrigiu Kit, infeliz, deitando novamente na balsa. —
O dispositivo telegráfico caiu em cima das minhas pernas quando o submarino foi
atacado. Eu preciso da ajuda de vocês, irmãos Baudelaire. Preciso ir para algum
lugar seguro.
— Faremos tudo o que pudermos —
disse Klaus.
— Talvez a ajuda esteja a caminho
— disse Kit. — Posso ver alguém vindo para cá.
Os Baudelaire se voltaram para olhar e viram uma luz no escuro, muito
pequena e muito brilhante, que deslizava roçando a
água, vindo do oeste em direção a eles. De início parecia não ser nada mais que
um vaga-lume, voando para cá e para lá na plataforma costeira, mas pouco a
pouco as crianças puderam distinguir um farolete, em torno do qual se apertavam
várias figuras de túnica branca, andando cautelosamente por entre as poças e os
detritos. O brilho do farolete lembrou a Klaus todas as noites que passara
lendo embaixo das cobertas na mansão Baudelaire, enquanto do lado de fora se
ouviam ruídos misteriosos e seus pais sempre insistiam que não era nada senão o
vento, mesmo em noites sem vento. Em algumas manhãs, o pai entrava no quarto de
Klaus para acordá-lo e o encontrava adormecido, ainda segurando o farolete em uma das mãos e o livro na outra; e, à medida que o farolete chegava mais e mais
perto, o Baudelaire do meio não podia deixar de pensar que era o pai dele,
andando pela plataforma costeira para socorrer os filhos, depois de todo aquele
tempo. Mas é claro que não era o pai dos Baudelaire. As figuras alcançaram o
cubo de livros e as crianças puderam ver o rosto de dois ilhéus: Finn, que
estava segurando o farolete, e Erewhon, que carregava uma grande cesta coberta.
— Boa noite, irmãos Baudelaire — disse Finn. A luz pálida do farolete, ela parecia ainda
mais jovem do que era.
— Nós
trouxemos jantar para vocês — disse Erewhon, e estendeu a cesta para as
crianças. — Ficamos preocupadas, pensando que vocês poderiam estar com muita
fome aqui fora.
— Nós
estamos — admitiu Violet. Os Baudelaire, é claro, desejariam que os ilhéus
tivessem expressado sua preocupação na frente de Ishmael e dos outros, quando a
colônia estava decidindo abandonar as crianças na plataforma costeira, mas
quando Finn abriu a cesta e as crianças sentiram o cheiro do costumeiro jantar
de sopa de cebola não quiseram olhar os dentes de um cavalo dado, frase que
aqui significa ''recusar
a oferta de uma refeição quente, não importa o quão
desapontadas estivessem com a pessoa que a estava oferecendo''.
— Há o
bastante para a nossa amiga? — perguntou Klaus. — Ela recobrou a consciência.
— Alegra-me saber isso — disse
Finn. — Há comida suficiente para todos.
— Desde que vocês guardem o segredo da nossa vinda aqui — disse Erewhon. — Ishmael pode
achar que não foi apropriado.
— Estou surpresa por ele não ter proibido o uso de faroletes — disse Violet enquanto Finn lhe
entregava uma casca de coco cheia de sopa fumegante.
— Ishmael não proíbe nada — disse Finn. — Ele nunca me forçou a jogar fora este
farolete. No entanto, ele sugeriu que eu deixasse que os carneiros o levassem
para o arboreto. Em vez disso, eu o enfiei furtivamente dentro da túnica, como
um segredo, e madame Nordoff vem me fornecendo as pilhas em segredo, em troca
de eu ensiná-la em segredo a cantar a tirolesa, o que Ishmael diz que poderia
assustar os outros ilhéus.
— E a senhora Caliban, em
segredo, me passou furtivamente esta cesta de piquenique — disse Erewhon, — em
troca de eu ensiná-la em segredo a nadar de costas, o que Ishmael diz não ser o modo usual de nadar.
— Senhora Caliban? — disse Kit no
escuro. — Miranda Caliban está aqui?
— Sim — disse Finn. — Você a conhece?
— Conheço o marido dela — disse Kit. — Ele e eu estivemos juntos em um momento
de grande luta e ainda somos bons amigos.
— A sua amiga deve estar um pouco
confusa depois da sua difícil jornada — Erewhon disse aos
Baudelaire, ficando na ponta dos pés para poder entregar um pouco de sopa a Kit.
— O marido da senhora Caliban faleceu muitos anos atrás na tempestade que a
trouxe aqui.
— Isso é impossível — disse Kit, estendendo a mão para baixo a
fim de pegar a tigela. — Eu acabei de tomar café turco com ele.
— A senhora Caliban não é do tipo de pessoa que guarda segredos — disse Finn. — E por isso
que ela vive na ilha. É um lugar seguro, longe da perfídia do mundo.
— Enigmorama — disse Sunny, pondo
a sua casca de coco com sopa no chão para
dividi-la com a Víbora Incrivelmente Mortífera.
— Minha irmã quer dizer que esta ilha parece ter um grande número de
segredos — disse Klaus, pensando tristonho no seu livro de lugar-comum e em
todos os segredos que suas páginas continham.
— Receio que tenhamos mais um
segredo para discutir — disse Erewhon. — Apague o farolete, Finn. Não queremos ser vistas da ilha.
Finn assentiu e apagou o farolete. Os Baudelaire se entreolharam um
instante, antes de a escuridão engolfá-los, e por um momento
todos ficaram em silêncio, como se estivessem com medo de falar.
Muitos, muitos anos atrás, quando até os tataravôs da
pessoa mais velha que você conhece eram bebês com menos de um ano, e quando a
cidade onde os Baudelaire nasceram nada mais era senão um punhado de choupanas
de barro, e o Hotel Desenlace não passava de um esboço arquitetônico, e a ilha
distante tinha nome, e não era de todo considerada muito distante, havia um
grupo de pessoas conhecido como os cimérios. Era um povo nômade, o que
significa que viajavam constantemente, e muitas vezes viajavam à noite, quando
o sol não os deixava com queimaduras e quando as plataformas costeiras na área
em que viviam não estavam inundadas. Como viajavam nas sombras, somente poucas
pessoas chegaram a dar uma boa olhada nos cimérios; acreditava-se que eles eram
furtivos e misteriosos, e até hoje as coisas feitas no escuro tendem a ter uma
reputação um tanto sinistra. Um homem cavando um buraco no seu quintal durante
a tarde, por exemplo, parece um jardineiro, mas um homem cavando um buraco à
noite parece estar enterrando um segredo horrível; uma mulher que olha pela
janela de dia parece estar apreciando a vista, mas fica parecendo muito mais
uma espiã se aguardar até o anoitecer. O cavador noturno pode, na verdade,
estar plantando uma árvore para fazer uma surpresa à sua sobrinha enquanto ela
dá risadinhas para ele da janela; e a janeleira matinal pode, na verdade, estar
planejando chantagear o assim chamado jardineiro enquanto ele enterra a prova
dos seus crimes bárbaros; mas, graças aos cimérios, as trevas fazem até a mais
inocente das atividades parecer suspeita. Por isso, nas trevas da plataforma
costeira, os Baudelaire suspeitaram que a pergunta feita por Finn fosse
sinistra, muito embora pudesse ter sido algo que um dos seus professores
tivesse perguntado em classe.
— Vocês sabem o significado da palavra ''motim''? — perguntou ela com uma voz
calma e tranquila.
Violet e Sunny sabiam que Klaus iria responder, não obstante elas mesmas estivessem muito seguras quanto ao significado
da palavra.
— Um motim é quando um grupo de pessoas toma medidas contra um líder.
— Sim — disse Finn. — O professor
Fletcher me ensinou a palavra.
— Estamos aqui para contar a vocês que um motim terá lugar durante o desjejum — disse Erewhon. — Cada
vez mais colonos estão fartos do modo como as coisas são conduzidas na ilha, e
Ishmael é a raiz do problema.
— Tubérculo? — perguntou Sunny.
— ''Raiz do problema'' quer dizer ''a causa dos problemas dos ilhéus'' — explicou Klaus.
— Exatamente — disse Erewhon, — e
quando o Dia da Decisão chegar nós finalmente teremos a
oportunidade de ficar livres dele.
— Livres dele? — repetiu Violet,
pois a frase soou sinistra no escuro.
— Vamos forçá-lo a embarcar no catamarã logo após o desjejum — disse Erewhon, — e
empurrá-lo para o mar aberto quando a plataforma costeira inundar.
— Um homem viajando sozinho no
oceano tem pouca chance de sobreviver — disse Klaus.
— Ele não estará sozinho — disse Finn. — Inúmeros ilhéus apoiam Ishmael. Se
necessário, nós os forçaremos a deixar a ilha também.
— Quantos? — perguntou Sunny.
— E difícil dizer quem apóia e quem não apóia Ishmael — disse Erewhon, e as
crianças ouviram a velha mulher tomar um gole da sua concha. — Vocês viram como
ele age. Diz que não força ninguém, mas todo mundo acaba concordando com ele de
um jeito ou de outro. Porém, não mais. Na hora do desjejum, vamos descobrir
quem está do lado dele e quem não está.
— Erewhon diz que lutaremos o dia
inteiro e a noite inteira se for preciso — disse Finn. — Todos terão de escolher um lado.
As crianças ouviram um enorme, triste
suspiro vindo do topo da balsa de livros.
— Cisão — disse Kit mansamente.
— Saúde — disse Erewhon. — E por isso que viemos a vocês, irmãos Baudelaire.
Precisamos de toda a ajuda que pudermos conseguir.
— Depois do modo como Ishmael os
abandonou, imaginamos que vocês estariam do nosso lado — disse
Finn. — Não concordam que ele é a raiz do problema?
Os Baudelaire ficaram juntos em silêncio, pensando em Ishmael e em tudo o
que sabiam sobre ele. Pensaram no modo como ele os acolhera tão delicadamente quando chegaram à ilha, mas também em quão rápido os
abandonara na plataforma costeira. Pensaram em como ele estava ansioso por
manter os Baudelaire em segurança, mas também em quão ansioso estava por
trancar o conde Olaf em uma gaiola de passarinho. Pensaram em sua desonestidade
quanto aos pés feridos e às maçãs que comia em segredo, mas enquanto pensavam
em tudo o que sabiam sobre o facilitador, as crianças também pensavam em quanta
coisa não sabiam, e depois de ouvir tanto o conde Olaf como Kit Snicket falarem
sobre a história da ilha, os órfãos Baudelaire se deram conta de que não
conheciam a história inteira. Eles poderiam até concordar que Ishmael era a
raiz do problema, mas não podiam ter certeza.
— Eu não sei — disse Violet.
— Você não sabe? — Erewhon repetiu, incrédula. — Nós lhe trouxemos jantar,
Ishmael os deixou aqui para passar fome, e vocês não sabem de que lado estão?
— Nós
confiamos em vocês quando disseram que o conde Olaf era uma pessoa horrível —
disse Finn.
— Por que vocês não podem confiar em nós, irmãos Baudelaire?
— Forçar Ishmael a deixar a ilha parece um pouco drástico — disse Klaus.
— É um
pouco drástico pôr um homem numa gaiola — ressaltou Erewhon, — mas eu não os
ouvi reclamando na ocasião.
— Quid pro quo? — perguntou
Sunny.
— Se nós os ajudarmos — traduziu Violet, — vocês ajudarão Kit?
— Nossa amiga está ferida — disse Klaus. — Ferida e grávida.
— E transtornada — acrescentou
Kit fracamente de cima da balsa.
— Se vocês nos ajudarem em nosso plano para derrotar Ishmael, — prometeu Finn, —
nós a levaremos para um lugar seguro.
— E se não? — perguntou Sunny,
— Não
vamos forçá-los, irmãos Baudelaire — disse Erewhon, soando como o facilitador
que ela queria derrotar, — mas o Dia da Decisão se aproxima, e a plataforma
costeira inundará. Vocês precisam fazer uma escolha.
Os Baudelaire não disseram nada, e por um momento
todos mantiveram um silêncio que era quebrado unicamente pelos roncos do conde Olaf. Violet,
Klaus e Sunny não estavam interessados em ser parte
de uma cisão, depois de testemunhar todas as desgraças que se seguiram à cisão
de C.S.C. mas não viam como evitar isso. Finn dissera que eles precisavam fazer
uma escolha; mas, escolher entre viver sozinhos em uma plataforma costeira —
pondo em risco a si mesmos e à sua amiga ferida — e participar do motim na
ilha, não parecia de fato uma escolha em absoluto, e eles se perguntaram
quantas outras pessoas já se sentiram assim, durante as incontáveis cisões que dividiram
o mundo ao longo dos anos.
— Vamos ajudá-los — disse Violet finalmente. — O que querem que façamos?
— Precisamos que vocês entrem furtivamente no arboreto — disse Finn. — Você mencionou as
suas habilidades mecânicas, Violet, e Klaus parece ter lido muito. Todos
aqueles itens proibidos que recolhemos durante anos viriam realmente a calhar.
— Até a bebê teria a possibilidade de cozinhar alguma coisa — disse Erewhon.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Klaus. — O que faremos com todos os
detritos?
— Precisamos de armas, é claro — disse Erewhon no escuro.
— Esperamos forçar Ishmael a deixar a ilha pacificamente — Finn disse depressa, — mas
Erewhon diz que vamos precisar de armas, só por precaução. Ishmael vai perceber
se formos para o outro lado da ilha, mas vocês três devem ser capazes de passar
sorrateiramente por cima da escarpa, encontrar ou construir algumas armas no
arboreto e trazê-las aqui para nós antes do desjejum, para que possamos dar
início ao motim.
— Absolutamente não! — gritou Kit do topo da balsa. — Não quero que vocês empreguem seus
talentos para fins tão nefandos, irmãos Baudelaire. Estou certa de que a ilha
pode resolver as suas dificuldades sem recorrer à violência.
— Você resolveu as suas dificuldades sem recorrer à violência? — perguntou
Erewhon bruscamente. — Foi assim que você sobreviveu à grande luta que
mencionou, e acabou naufragando em uma balsa de livros?
— Minha história não é importante — retrucou Kit. — Estou preocupada com os
Baudelaire.
— E nós estamos preocupados com você, Kit — disse Violet. — Precisamos reunir
o maior número de associados
que pudermos, se quisermos retornar ao mundo e garantir que a justiça seja feita.
— Você precisa ir para um lugar seguro, para se recuperar dos seus ferimentos
— disse Klaus.
— E bebê — disse Sunny.
— Isso não é razão para se envolver em perfídias — disse Kit, mas ela não
pareceu muito segura. Sua voz estava fraca e debilitada, e as crianças ouviram
os livros crepitando quando ela desconfortavelmente mexeu o pé ferido.
— Por favor, ajude-nos — disse
Finn, — e nós ajudaremos a sua amiga.
— Tem de existir uma arma que
possa ameaçar Ishmael e seus seguidores — disse Erewhon, que não
soava mais como Ishmael. Os Baudelaire tinham ouvido quase exatamente as mesmas
palavras da boca aprisionada do conde Olaf, e ficaram arrepiados só de pensar
na arma que ele estava escondendo na gaiola de passarinho.
Violet pôs de lado a sua tigela de sopa
vazia e abraçou a irmãzinha no colo, enquanto Klaus pegava o farolete da velha.
— Estaremos de volta assim que
possível, Kit — prometeu a mais velha dos Baudelaire. — Deseje-nos
sorte.
A balsa tremeu quando Kit soltou um longo e triste suspiro.
— Boa sorte — disse ela afinal. —
Eu gostaria que as coisas fossem diferentes, irmãos
Baudelaire.
— Nós
também — replicou Klaus, e as três crianças seguiram o facho estreito do
farolete de volta à colônia que os abandonara. Seus passos chapinhavam de leve
na água da plataforma costeira, e os Baudelaire podiam ouvir o quieto colear da
Víbora Incrivelmente Mortífera, seguindo-os lealmente em sua missão. Não havia
sinal de lua, e as estrelas estavam encobertas pelas nuvens que restaram da
tempestade passada, ou que anunciavam, talvez, uma nova, e assim o mundo
inteiro parecia desaparecer fora da luz proibida do farolete secreto. A cada
passo molhado e incerto, as crianças sentiam-se mais pesadas, como se os seus
pensamentos fossem pedras que tinham de carregar para o arboreto, onde todos os
itens proibidos jaziam à sua espera. Eles pensaram nos ilhéus e na cisão de
amotinados que em breve iria dividir a colônia. Pensaram em Ishmael e se
perguntaram se os seus segredos e trapaças significavam que ele merecia ficar
no mar. E pensaram no Mycelium Medusóide, fermentando no capacete em poder de
Olaf, e se perguntaram se os ilhéus não iriam descobrir aquela arma antes
que eles mesmos construíssem outra. As crianças caminhavam no escuro, como
tantas outras pessoas já tinham feito antes delas, desde as andanças nômades
dos cimérios até as viagens desesperadas dos trigêmeos Quagmire, que naquele
exato momento estavam em circunstâncias igualmente sombrias, embora um bocado
mais úmidas que as dos Baudelaire. A medida que iam chegando mais e mais perto
da ilha que as abandonara, seus pensamentos as tornavam mais e mais pesadas, e
os órfãos Baudelaire gostariam que as coisas fossem, de fato, muito diferentes.
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