Carta n°9
Ao
anoitecer
Minha queridíssima,
Recebi todas as 200 páginas do seu livro que explica porque você não pode se
casar comigo, e dei tantas sementes quanto os pombos-correios puderam comer. E
lavei suas penas com meu dedos trêmulos, e seus bicos com minhas lágrimas.
Tive que ler o livro três vezes e meia antes de poder desatar “Meu Nó
Silencioso” e te escrever.
Anexado há um cacho de cabelo, o qual estou te devolvendo, assim como você
devolveu o item que coloquei em seu dedo naquela noite, enquanto
os garçons colocavam as cadeiras em cima das mesas para sinalizar que
o café estava fechado, e esperavam impacientemente que nós terminássemos nossa
última porção de fermento comprimido, açúcar, sassafras, hops, fruto
de junípero, raiz de dente-de-leão, wintergreen (uma fruta, mas
que não achei tradução), água gaseificada e sorvete de baunilha. A
carta de 200 páginas partiu meu coração, mas este ficou completamente arrasado
assim que vi o anel. Você tem consciência de que este anel pertenceu a querida
falecida mãe de R.? Você deveria ter reconhecido o “R” gravado no centro. Eu
estou certo de que ela teria gostado que você ficasse com ele, mesmo que o seu
interesse em se casar comigo tenha mudado, graças ao nosso colega Co...
Não vou manchar esta carta com o nome dele. A mais brilhante das estrelas é incapaz
de brilhar através de uma nuvem de fumaça preta, e O. é a nuvem mais preta que
já vi em nosso céu. Um dia, o mundo saberá de sua traição e seus enganos, de
seus crimes e sua higiene, mas isso está muito longe para nós. Anel, cabelo,
cartas, fotografias – todos os traços do nosso amor serão espalhados, como um
dos anagramas de uma das nossas lições de códigos.
Resumidamente, tentarei responder as treze perguntas que você me fez na pág.
189. Após ler seu livro, eu entendi porque não podes viver comigo. Espero que
após ler as respostas a seguir você possa entender porque não posso viver sem
você.
Pergunta Um: Não.
Pergunta Dois: Claro que lembro. Você entrou naquela sala enorme de madeira
verde. Estava adiantada para a nossa primeira aula, assim como eu. Sempre
achei, antes mesmo de me ser ensinado, que ser pontual é um dos sinais de uma
pessoa nobre, e te envergonhei dizendo isso na frente de R., de B. e dos
outros.
Pergunta Três: Absolutamente não.
Pergunta Quatro: Não, acho que não. Me lembro da performance, é claro, e da sua
fantasia esplêndida, e do palito de fósforo que você colocou no chão. Lembro-me
da discussão que tive comEleanora Poe na manhã seguinte, quando eu
estava mais de uma hora atrasado para fazer minha resenha teatral, mas não me
lembro de nada sobre a programação teatral. Se eu recebi uma programação, não
me lembro de ver um poema. Se eu vi um poema, não me lembro de tê-lo lido e, se
eu o li, não me lembro de tê-lo relido. E se o reli, não me lembro de ter me
confundido ou continuado a me confundir. Resumindo, estou confuso.
Pergunta Cinco: Três Crianças.
Pergunta Seis: “Um homem que mora nas montanhas.”
Pergunta Sete: “Um homem ou uma mulher que treina morcegos.”
Pergunta Oito: “A mistura de letras em uma palavra, nome ou frase que forma uma
nova palavra ou frase.”
Pergunta Nove: Sempre. Continuamente. Com crescente apreensão, ou decrescente
esperança. Te amarei desconsiderando os atos de nossos
inimigos e a desconfiança dos atores. Te amarei desconsiderando a
revolta de alguns pais e o tédio de certos amigos. Te amarei não importa o que
é servido nos cafés do mundo, ou que jogo é jogado em todo e qualquer
intervalo. Te amarei não importa o número de treinamentos de
incêndios que teremos que suportar, e desconsiderando o que estiver
desenhado em giz no quadro negro. Te amarei não importa o número de erros
cometidos por mim enquanto tento simplificar frações matemáticas, e sem me
importar com o quão difícil é decorar a tabela periódica. Te amarei não importa
qual era a combinação de sua caixa, e como você decidiu gastar seu tempo
durante o intervalo das aulas. Te amarei não importa o desempenho
do time de futebol no torneio, ou quantas manchas eu tenha recebido
no meu uniforme de líder de torcida. Te amarei se eu nunca mais te ver, e te
amarei se eu te ver todas as terças. Te amarei se você cortar seu cabelo, e te
amarei se você cortar o cabelo dos outros. Te amarei se você abandonar seu
“baticeering”, e te amarei se você se aposentar do teatro para ter alguma outra
ocupação menos perigosa. Eu te amarei se você deixar sua capa de chuva cair no
chão ao invés de pendurá-la, e te amarei se você trair seu pai. Vou te amar até
mesmo se você falar que a poesia de Edgar Guest é a melhor do mundo,
e mesmo que você fale que o trabalho de Zilpha KatleySnyder é
incrivelmente tedioso. Vou te amar se você abandonar
o theremin (Theremin é um instrumento musical que não precisa
de contato manual para produzir música) e escolher a gaita, e te
amarei se você doar seus micos ao zoológico e suas rãs-árvore para M.
Eu te amarei como a estrela-do-mar ama o recife de corais, e como as
trepadeiras amam as árvores, até mesmo se os oceanos virarem poeira e as
árvores caírem na floresta sem que ninguém as ouça. Te amarei como o
molho pesto ama o macarrão fetuccini, como a raiz de
cavalo ama a província doMiyagi, como a Tempura ama
o Ikura e o queijo Pepperoni ama a pizza. Te amarei
como o manati (ou peixe boi) ama a cabeça da alface e como as manchas
escuras amam os leopardos, como assanguessugas amam o tornozelo de uma ave
perneta e como um cadáver ama o bico do urubu. Te amarei como o médico ama seu
paciente mais grave, e como um lago ama os nadadores sedentos. Te amarei como a
barba ama o queixo, e as migalhas amam a barba, e o
guardanapo umedecido ama as migalhas, e os documentos preciosos amam
a umidade, e o olho piscante do leitor ama a impressão manchada
do documento, e as lágrimas de tristeza amam o olho a piscar, fazendo o leitor
interpretar mal o que está escrito. Te amarei como o iceberg ama o
navio, e os passageiros amam o bote salva-vidas, e o bote salva-vidas ama os
dentes da baleia, e a baleia ama o sabor dos uniformes navais. Te amarei como
uma criança ama ouvir a conversa dos seus pais, e os pais amam o som de suas
próprias vozesdiscutindo, e como a caneta ama escrever todas as palavras
destas vozes em um caderno. Eu te amarei como uma telha ama cair de
uma casa num dia de ventania e golpear o queixo de uma pessoa irritante, e como
um forno ama dar defeito enquanto está assando um peru. Te amarei como um avião
ama cair do céu azul claro e como uma escada rolante ama emaranhar lenços caros
em seus mecanismos. Te amarei como a toalha de papel molhada ama ser amassada
em uma bola e lançada em um teto de banheiro, e como uma
borracha ama deixar pó no penteado de pessoas que falam muito. Te
amarei como uma abotoadura ama cair de sua camisa e explorar a festa
por si só e como um par de luvas brancas ama passar despercebido delicadamente
sobre o ponche. Te amarei como um táxi ama a lama e como uma
biblioteca ama o tic-tac paciente de um relógio. Te amarei como um
ladrão ama uma galeria, e como um corvo ama um assassinato, como uma nuvem ama
morcegos e uma cadeia ama montanhas. Te amarei como a desgraça ama os órfãos,
como o fogo ama os inocentes e como a justiça ama sentar e assistir enquanto
tudo vai mal. Te amarei como um campo de batalha ama homens jovens, e como a
menta ama sua alergia, e te amarei como a casca de banana ama o sapato de um
homem que acaba de ser golpeado por uma telha que cai de uma casa. Te amarei
como uma Corporação pelo Salvamento das Chamas ama entrar às pressas em
edifícios em chamas, e como os edifícios em chamas amam persegui-los afora, e
como o paraquedas ama deixar um balão, e como o operador de balões
ama persegui-lo logo após. Te amarei como um punhal ama uma pessoa por trás, e
como um certo empregado de um estabelecimento de limpeza a seco ama ficar
acordado até tarde com um par de binóculos, vigiando uma fábrica de punhais na
esperança de pegar um assaltante, e como uma assaltante ama se mover
furtivamente atrás de pessoas com binóculos, enquanto se dá conta de repente
que deixou o punhal dela em casa. Eu te amarei como uma gaveta ama um
compartimento secreto, e um compartimento secreto ama um segredo, e como um
segredo ama fazer uma pessoa ofegar, e como uma pessoa ofegante ama um copo de
conhaque para acalmar os nervos, e como um copo de conhaque ama se quebrar no
chão, e como o barulho de um copo a quebrar ama fazer outra pessoa ofegar, e
como outra pessoa ofegando ama uma escrivaninha por perto para se
apoiar, e apoiando-se na escrivaninha aperta uma alavanca que ama
abrir uma gaveta que revela um compartimento secreto. Te amarei até que todo
compartimento semelhante seja descoberto e aberto, e até todos os segredos
ofegarem o mundo. Te amarei até que todos os códigos e corações estejam
quebrados e até que todos os anagramas sejam ordenados. Te amarei até que todo
incêndio seja extinguido e até que toda casa seja reconstruída mais bela e
cheia de bosques, e até que todo criminoso seja algemado pelo policial mais
preguiçoso. Te amarei até que M. comece a odiar cobras e J. comece a detestar
gramática, e te amarei até que C. perceba que S. não é merecedor do seu amor e
N. perceba que ele não merece V. Eu te amarei até que os passarinhos odeiem os
ninhos, e as lagartas odeiem a maçã, e até que a maçã odeie a árvore e a árvore
odeie o ninho, e até que o pássaro odeie a árvore e a maçã odeie o ninho,
embora eu não posso imaginar que a última ocorra, não importa de que maneira eu
tente. Te amarei à medida que nós envelhecermos, o que há pouco aconteceu, e
aconteceu novamente, e aconteceu vários dias atrás, continuamente, e vários
anos antes disso, e continuará acontecendo enquanto os ponteiros dos relógios
girarem e as páginas dos calendários marcarem a passagem do
tempo, excetoos relógios que as pessoas têm perdido e os calendários que
as pessoas esqueceram de colocar um uma área visível. Te amarei à medida que
nós nos acharmos cada vez mais e mais longe um do outro. Te amarei até que as
chances de nos colidirmos um com o outro passe de poucas para zero, e até que
sua face enevoada se distancie da minha memória. Te amarei não
importa onde você for e quem você vê, não importa os lugares que você evita e
quem você não vê, e não importa quem lhe vê evitando os
lugares. Te amarei não importa o que lhe acontece, e não importa como
descubro o que acontece a você, nem o que acontece a mim quando descubro, e nem
como sou descoberto depois que o que acontece a mim acontecer a mim quando
estou descobrindo o que acontece a você. Te amarei se você não se
casar comigo. Te amarei se você casar com outra pessoa: seu
coadjuvante, talvez, ou Y., ou até mesmo O., ou algum Z. por causa de A., ou
mesmo R. --- embora eu acredite que isto será algum tempo antes de ser permitido
o casamento entre duas mulheres--- e te amarei se você tiver uma criança,
e se você tiver duas crianças, ou três, ou até mais, embora eu pessoalmente
pense que três é o bastante, e te amarei se você nunca se casar e nunca tiver
uma criança, e passar seus anos desejando ter se casado comigo afinal de
contas, e eu tenho que dizer que eu prefiro este enredo que todos os outros que
mencionei. Que, Beatrice, é como eu te amarei até mesmo quando o mundo for
caminhando para o mal.
Pergunta dez: Não.
Pergunta onze: Tudo. A carta pode
estar codificada e uma palavra pode estar codificada. A performance teatral
pode estar codificada, e há tempos que parece que o mundo inteiro está em
código. Alguns acreditam que o mundo pode serdecodificado lendo um jornal.
Mas no meu caso, a única coisa que fazia sentido no mundo era você, e sem você
o mundo parecerá tão falsificado e trágico quanto uma máquina de escrever com
defeito9.
Pergunta doze: veja a resposta da
questão cinco. Kit, Jacques e eu.
Pergunta treze: "Sinto muito,
eu não posso responder esta pergunta". Sinto sua falta. Quem sabe quando
verei você?
P.S.: Você está certa de que seu
coadjuvante é mesmo um de nós?
Lemony Snicket
O
Cacho de Cabelo
Eu acho que a pergunta treze é "Onde você está?"
ResponderExcluirEu nem sou muito fã de romance, mas o que Lemony disse me chocou.
ResponderExcluirO amor dele por ela é uma coisa incrível...
ResponderExcluirDefinitivamente
ExcluirIntenso demais
ExcluirEsse EP foi tenso
ResponderExcluirOnde estão as perguntas?
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