Capítulo 23

Ele devia ter ouvido errado. Porque não havia qualquer possibilidade de Celaena ser tão arrogante, tão tola e louca e idealista e corajosa.
— Perdeu a noção completamente? — As palavras se elevaram até virarem um grito, uma revolta de ódio e medo que percorreu o corpo de Chaol tão rapidamente que o capitão mal conseguia pensar. — Ele vai matar você! Vai matar você se descobrir.
Celaena deu um passo na direção de Chaol, aquele vestido espetacular reluzindo como mil estrelas.
— Ele não vai descobrir.
— É apenas uma questão de tempo — retrucou ele com os dentes trincados. — O rei tem espiões que observam tudo.
— E preferia que eu matasse homens inocentes?
— Aqueles homens são traidores da coroa!
— Traidores! — Celaena deu uma gargalhada. — Traidores. Por se recusarem a abaixar a cabeça diante de um conquistador? Por abrigarem escravos fugidos que tentam voltar para casa? Por ousarem acreditar em um mundo melhor do que este lugar abandonado pelos deuses? — Ela balançou a cabeça, parte de seu cabelo deslizando. — Não serei a açougueira dele.
E Chaol não queria que ela fosse. A partir do momento em que ela fora coroada campeã, o capitão se sentira enojado ao pensar em Celaena fazendo aquilo que o rei lhe ordenara. Mas aquilo...
— Você fez um juramento a ele.
— E quantos juramentos ele fez a monarcas estrangeiros antes de marchar com seus exércitos e destruir tudo? Quantos juramentos fez quando subiu ao trono, apenas para cuspir nessas promessas?
— Ele vai matar você, Celaena. — Chaol a segurou pelos ombros e sacudiu. — Vai matar você, e me obrigará a fazê-lo como punição por ser seu amigo. — Aquele era o terror contra o qual Chaol lutava, o medo que o assolava, que o fizera não ultrapassar o limite por tanto tempo.
— Archer tem me dado informações verdadeiras...
— Não dou a mínima para Archer. Que informação útil aquele babaca arrogante poderia?
— O tal movimento secreto de Terrasen existe de verdade — disse ela, com uma tranquilidade enlouquecedora. — Eu poderia usar a informação que reuni sobre ele para barganhar com o rei para que me liberte ou para que apenas me dê um contrato mais curto.  Curto o suficiente para que, caso ele venha a descobrir a verdade, eu já tenha partido há muito tempo.
Chaol grunhiu.
— Ele poderia fazer com que fosse chicoteada apenas por ser tão impertinente. — Mas então a última parte das palavras dela foi registrada por Chaol, atingindo-o como um soco na cara. Eu já tenha partido há muito tempo. Partido. — Aonde você vai?
— Qualquer lugar — respondeu Celaena. — O mais longe que consiga chegar.
Chaol mal podia respirar, mas conseguiu dizer:
— E o que faria?
Ela deu de ombros, e os dois perceberam que o capitão estivera segurando os ombros de Celaena. Ele afrouxou as mãos, mas seus dedos se desesperavam para pegá-la de novo, como se aquilo, de alguma forma, a impedisse de partir.
— Viveria minha vida, imagino. Viveria do jeito que quero, pelo menos uma vez. Aprenderia a ser uma garota normal.
— Quão longe?
Os olhos azuis e dourados dela brilharam.
— Eu viajaria até encontrar um lugar onde jamais ouviram falar de Adarlan. Se é que existe tal lugar.
E nunca mais voltaria.
E porque era jovem, e tão estupidamente esperta e divertida e maravilhosa, em qualquer lugar em que estabelecesse seu lar haveria um homem que se apaixonaria por ela e que a tornaria sua esposa, e essa era a pior das verdades. Isso o tomara sorrateiramente, essa dor e o terror e ódio ao pensar em qualquer outra pessoa com Celaena.
Cada olhar, cada palavra de Celaena... Chaol nem mesmo sabia quando havia começado.
— Vamos encontrar esse lugar, então — disse ele, baixinho.
— O quê? — Celaena franziu as sobrancelhas.
— Irei com você. — E embora Chaol não tivesse perguntado, os dois sabiam que essas palavras continham uma pergunta. Ele tentou não pensar no que Celaena dissera na noite anterior, na vergonha que sentiu ao abraçá-lo quando Chaol era um filho de Adarlan, e ela, uma filha de Terrasen.
— E quanto a ser capitão da Guarda?
— Talvez meus deveres não sejam o que eu esperava que fossem.
O rei escondia coisas dele; havia tantos segredos, e talvez Chaol fosse pouco mais que uma marionete, parte da ilusão através da qual ele começava a enxergar...
— Você ama seu país — falou Celaena. — Não posso deixar que desista de tudo. — Chaol percebeu uma pontada de dor e esperança nos olhos de Celaena, e antes que se desse conta do que fazia, diminuiu a distância entre os dois, uma das mãos na cintura e a outra no ombro dela.
— Eu seria o maior tolo do mundo se a deixasse partir sozinha.
E, então, lágrimas desceram pelo rosto dela, e a sua boca se tornou uma linha fina e trêmula.
Chaol se afastou, mas não a soltou.
— Por que está chorando?
— Porque — sussurrou Celaena, a voz falhando
— você me lembra de como o mundo deveria ser. De como o mundo pode ser.
Jamais houve um limite entre eles, apenas o próprio medo e o orgulho idiotas do capitão. Porque a partir do momento em que a tirou daquela mina em Endovier e ela colocou os olhos nele, ainda destemida apesar de um ano no inferno, Chaol caminhava em direção àquilo, caminhava em direção a ela.
Então Chaol limpou as lágrimas de Celaena, ergueu o queixo dela e a beijou.

***

O beijo a desnorteou.
Era como voltar para casa ou nascer ou subitamente descobrir uma metade de si que estava faltando.
Os lábios de Chaol eram quentes e macios contra os dela — ainda hesitantes, e após um momento, ele se afastou o bastante para encarar Celaena. Ela tremia com a necessidade de tocá-lo por completo de uma só vez, de senti-lo tocando-a por completo de uma só vez. Chaol desistiria de tudo para ir com Celaena.
Ela entrelaçou os braços no pescoço do capitão, a boca de Celaena encontrou a de Chaol em um segundo beijo que fez o mundo debaixo dela desabar.

***

Celaena não sabia quanto tempo haviam ficado naquele telhado, enroscados um no outro, bocas e mãos passeando até que ela gemeu e o arrastou pela estufa, escada abaixo, para dentro da carruagem que esperava do lado de fora. E, em seguida, houve o caminho de volta para casa, pelo qual Chaol fez coisas com o pescoço e a orelha de Celaena que a fizeram se esquecer do próprio nome. Os dois conseguiram se conter quando chegaram aos portões do castelo e mantiveram uma distância respeitável enquanto caminhavam de volta para o quarto de Celaena, embora cada centímetro dela parecesse tão vivo e incandescente que foi um milagre conseguir chegar à porta sem puxar o capitão para dentro de um armário.
Mas logo estavam dentro dos aposentos, em seguida, à porta do quarto, e Chaol parou quando ela pegou as mãos dele para conduzi-lo para dentro.
— Tem certeza?
Celaena levou a mão até o rosto do capitão, explorando cada curva e sarda que tinham se tornado tão impossivelmente preciosas para ela. A jovem esperara antes — esperara com Sam, e tinha sido tarde demais. Mas agora, não havia dúvidas, nem um pingo de medo ou incerteza, como se cada momento entre ela e Chaol tivesse sido um passo numa dança que levara àquele ponto.
— Nunca tive tanta certeza de uma coisa na vida — falou Celaena.
Os olhos dele estavam incendiados por uma fome que se igualava à de Celaena, e ela o beijou de novo, puxando o capitão para dentro do quarto. Ele se deixou levar, sem interromper o beijo conforme chutava a porta para que se fechasse atrás deles.
E então só havia os dois, e pele contra pele, e quando chegaram àquele momento em que não havia mais nada entre eles, Celaena beijou Chaol intensamente e deu a ele tudo o que tinha.

***

Ela acordou com o alvorecer invadindo seu quarto. Chaol ainda a segurava junto ao corpo, exatamente como tinha feito a noite inteira, como se Celaena fosse, de alguma forma, deslizar durante o sono. Ela sorriu consigo mesma, tocando o pescoço do capitão com o nariz e inspirando-o. Chaol se mexeu, apenas o bastante para que Celaena soubesse que tinha acordado. As mãos dele começaram a se mover, se entrelaçar no cabelo dela.
— De maneira nenhuma vou sair desta cama para correr — murmurou ele na cabeça de Celaena. Ela deu um risinho baixo. As mãos de Chaol desceram pelas costas dela, sem nem mesmo esbarrar nas cicatrizes. Ele beijara cada cicatriz nas costas da campeã, no corpo inteiro, na noite anterior. Ela sorriu no pescoço do capitão. — Como está se sentindo?
Como se estivesse em todos os lugares e em lugar nenhum ao mesmo tempo. Como se, de alguma forma, tivesse passado a vida semicega e agora conseguisse enxergar tudo claramente. Como se pudesse ficar ali para sempre e ser feliz.
— Cansada — admitiu Celaena. Chaol ficou tenso. — Mas feliz.
Ela quase chorou quando o capitão a soltou por tempo suficiente para se apoiar em um cotovelo e encará-la.
— Mas está bem?
Celaena revirou os olhos.
— Tenho quase certeza de que “cansada, mas feliz” é uma reação normal depois da primeira vez. — E tinha quase certeza de que precisaria falar com Philippa sobre um tônico contraceptivo assim que saísse da cama. Porque, pelos deuses, um bebê... Ela riu com escárnio.
— O quê?
Celaena apenas balançou a cabeça, sorrindo.
— Nada. — Ela passou os dedos pelos cabelos do capitão. Um pensamento lhe ocorreu e o sorriso sumiu. — Quantos problemas acha que vai ter por causa disto?
Celaena observou o peitoral musculoso de Chaol se expandir quando ele respirou fundo, abaixando a cabeça para apoiar a testa no ombro dela.
— Não sei. Talvez o rei não se importe. Talvez me dispense. Talvez seja pior. É difícil saber; ele é imprevisível assim.
Celaena mordeu o lábio e passou as mãos pelas costas fortes do capitão. Desejava tocá-lo daquela forma havia tanto tempo — mais tempo do que percebera.
— Então vamos manter em segredo. Passamos tanto tempo juntos que ninguém deve notar a mudança.
Chaol ergueu o corpo de novo, encarando-a.
— Não quero que pense que concordo em manter isto em segredo porque tenho vergonha.
— Quem disse qualquer coisa sobre vergonha? — Ela indicou o próprio corpo nu, embora estivesse coberto pelo lençol. — Sinceramente, fico surpresa por você não estar saltitando por aí, se gabando com todo mundo. Eu certamente estaria se tivesse transado comigo.
— Seu amor por si mesma não tem limites?
— Nenhum. — Chaol se aproximou para mordiscar a orelha dela, e os dedos dos pés de Celaena se contraíram. — Não podemos contar a Dorian — disse ela, baixinho. — Ele vai descobrir, aposto, mas... Acho que não deveríamos contar imediatamente.
Chaol parou de mordiscar.
— Eu sei. — Mas então ele se afastou e Celaena encolheu o corpo levemente enquantoo capitão a avaliava de novo. — Você ainda...
— Não. Há muito tempo que não. — O alívio nos olhos dele fez com que Celaena o beijasse. — Mas ele seria mais uma complicação se soubesse. — E não havia como saber de que forma o príncipe reagiria, considerando como as coisas andavam tensas entre eles. Dorian era muito importante na vida de Chaol; Celaena não queria destruir aquele relacionamento.
— Então — falou Chaol, dando um peteleco no nariz dela —, há quanto tempo você queria...
— Não vejo como isso é da sua conta, capitão Westfall. E não direi até que você me diga.
Ele deu outro peteleco no nariz dela, e Celaena afastou os dedos de Chaol. Ele pegou a mão dela, erguendo-a para olhar para o anel de ametista — o anel que ela jamais tirava, nem mesmo para tomar banho.
— O baile de Yule. Talvez mais cedo. Talvez mesmo no Samhuinn, quando lhe dei este anel. Mas no Yule foi a primeira vez que percebi que não gostava da ideia de você com... com outra pessoa. — Chaol beijou as pontas dos dedos dela. — Sua vez.
— Não vou contar — falou Celaena. Porque não fazia ideia; ainda estava tentando entender quando exatamente havia acontecido. De alguma forma parecia que sempre tinha sido Chaol, mesmo no iniciozinho, mesmo antes de os dois se conhecerem. Ele começou a protestar, mas Celaena o puxou de volta sobre si. — E chega de falar. Posso estar cansada, mas ainda há muitas coisas para fazer em vez de sair para uma corrida.
O sorriso que Chaol lhe deu era faminto e malicioso o suficiente para que ela gritasse quando ele a puxou para debaixo das cobertas.

Comentários

Postar um comentário

Nada de spoilers! :)

Postagens mais visitadas deste blog

Trono de Vidro

Os Instrumentos Mortais

Trono de Vidro