Capítulo 35
Não haveria velas para aquelas cerimônias da meia-noite, nenhuma corneta de marfim para sinalizar o início da caçada. Celaena vestiu o manto mais escuro e colocou uma máscara preta e lisa no bolso do manto. Todas as armas, mesmo os alfinetes de cabelo, tinham sido removidas de seus aposentos. Celaena sabia, sem precisar verificar, que as portas e as janelas estavam sendo vigiadas.
Bom. Aquele não era o tipo de caçada que se iniciava na porta da frente.
Ela trancou o quarto e olhou para Ligeirinha, que se escondeu debaixo da cama quando a dona abriu a porta secreta. A cadela ainda choramingava silenciosamente quando Celaena entrou na passagem.
Não precisava de luz para descer para o mausoléu. Conhecia o caminho de cor agora, cada passo, cada curva. Seu manto farfalhava nos degraus. Cada vez mais para baixo, ela foi.
Seria guerra contra todos. Que tremessem de medo do que haviam despertado.
O luar se espalhava sobre a plataforma, iluminando a porta aberta do mausoléu e o pequeno rosto de bronze de Mort.
— Sinto muito por sua amiga — disse ele, com uma tristeza surpreendente conforme
Celaena marchou na direção da aldraba. Ela não respondeu. E não se importava com como Mort sabia. Apenas continuou andando, passou pela porta e entre os sarcófagos, até a pilha de tesouros nos fundos.
Adagas, facas de caça — Celaena pegou o que conseguiu amarrar no cinto ou enfiar nas botas. Pegou um punhado de ouro e joias e enfiou no bolso também.
— O que está fazendo? — indagou Mort, do corredor.
Celaena se aproximou da elevação que exibia Damaris, a espada de Gavin, primeiro rei de Adarlan. O punho oco de ouro reluziu sob o luar quando a assassina retirou a bainha da espada da elevação e amarrou a arma nas costas.
— Essa é uma espada sagrada — grunhiu Mort, como se pudesse ver do lado de dentro.
Ela deu um sorriso sombrio ao marchar de volta para a porta, cobrindo a cabeça com o capuz.
— Aonde que quer vá — continuou Mort —, o que quer que planeje fazer, você desonra essa espada ao tirá-la daqui. Não tem medo de irritar os deuses?
Celaena apenas riu baixinho antes de pegar as escadas, aproveitando cada passo, cada movimento que a levava para mais perto da presa.
***
Ela se deliciou com a ardência nos braços ao empurrar a grade do esgoto para cima, girando a antiga roda até que estivesse completamente erguida, pingando imundície, e a água sob o castelo fluísse livremente para o pequeno rio do lado de fora. Celaena atirou um pedaço de pedra no rio além do arco, atenta ao barulho de guardas.
Nenhum ruído, nenhum arranhar de armaduras ou um sussurro de aviso.
Um assassino matara Nehemia, um assassino com gosto pelo grotesco e desejo por notoriedade. Encontrar Cova exigiria apenas algumas perguntas.
Ela amarrou a corrente ao redor da alavanca, testando a força do objeto, então se certificou de que Damaris estava bem presa às costas. Em seguida, agarrando-se às pedras do castelo, girou o corpo para o outro lado da muralha, deslizando de lado. Não se incomodou em olhar para o castelo acima ao ultrapassar tranquilamente a margem do rio e cair sobre o chão congelado.
Então Celaena sumiu na noite.
***
Escondida pela escuridão, a assassina caminhou pelas ruas de Forte da Fenda. Não fez sequer um barulho ao passar por becos mal iluminados.
Apenas um lugar poderia fornecer as respostas que queria.
Esgoto e poças de excrementos estavam abaixo de cada janela dos cortiços, e as ruas de paralelepípedo estavam rachadas e sem forma depois de tantos invernos difíceis. Os prédios inclinavam-se uns contra os outros, alguns tão detonados que até mesmo os cidadãos mais pobres os abandonaram. Na maioria das ruas, as tavernas estavam lotadas de bêbados e prostitutas e todos que procuravam alívio temporário das vidas miseráveis.
Não fazia diferença quantos a vissem. Ninguém incomodaria Celaena naquela noite.
O manto oscilava atrás da assassina, o rosto permanecia inexpressivo sob a máscara obsidiana conforme Celaena se movia pelas ruas. O Cofres ficava a apenas alguns quarteirões.
Suas mãos enluvadas se fecharam. Depois que descobrisse onde Cova estava se escondendo, ela o estriparia. Pior do que isso, na verdade.
A assassina parou diante de uma porta comum de ferro em um beco silencioso. Brutamontes contratados montavam guarda do lado de fora; ela mostrou a eles a taxa de entrada em prata e os homens abriram a porta. Na ala subterrânea abaixo, era possível encontrar os assassinos, os monstros e os condenados de Adarlan. A escória ia até lá compartilhar histórias e fazer acordos, e era ali que qualquer sussurro sobre o assassino de Nehemia seria encontrado.
Cova sem dúvida recebera um grande pagamento pelos serviços, e era de se esperar que o homem naquele momento estivesse gastando inconsequentemente o dinheiro sujo — um perdularismo que não passaria despercebido. Cova não teria deixado Forte da Fenda — ah, não. Ele queria que as pessoas soubessem que havia matado a princesa; queria ouvir ser nomeado o novo Assassino de Adarlan. Queria que Celaena soubesse também.
Conforme desceu os degraus para dentro da taberna, o fedor de cerveja e corpos não lavados a atingiu como uma pedra no rosto. Não entrava naquele tipo de covil pútrido havia muito tempo.
A câmara principal estava estrategicamente acesa: um candelabro pendia do centro do recinto, mas havia pouca luz nas paredes para aqueles que não quisessem ser vistos. Todas as risadas cessaram quando ela caminhou entre as mesas. Olhos injetados seguiram cada passo de Celaena.
Ela não conhecia a identidade do novo senhor do crime que comandava aquele lugar, e não se importava. Seu negócio não era com ele, não naquela noite. Celaena não se permitiu olhar para os muitos poços de luta que ocupavam a ponta mais afastada da câmara — poços nos quais multidões ainda estavam reunidas, torcendo por quem estivesse lutando com punhos e pés do lado de dentro.
Ela estivera no Cofres antes, muitas vezes naqueles últimos dias antes de ser capturada. Agora que Ioan Jayne e Rourke Farran estavam mortos, o lugar parecia ter mudado de dono sem perder nada da depravação.
Celaena foi direto para o atendente. Ele não a reconheceu, mas a assassina não esperava que ele o fizesse — não quando fora tão cuidadosa para esconder a identidade durante tantos anos.
O atendente já era pálido, e os cabelos ralos se tornaram ainda mais ralos no último ano e meio. O homem tentou olhar por debaixo do capuz quando ela parou diante do bar, mas a máscara e o manto mantinham as feições de Celaena escondidas.
— Bebida? — perguntou o homem, limpando o suor da testa. Todos no recinto ainda a observavam, discreta ou descaradamente.
— Não — respondeu Celaena, a voz distorcida e grave sob a máscara.
O atendente do bar segurou a beira do balcão.
— Você... você está de volta — disse ele, baixinho, quando mais cabeças se viraram. — Você escapou.
Então o homem a havia reconhecido. Celaena imaginou se os novos donos teriam algum rancor por ela ter matado Ioan Jayne — e quantos corpos precisaria deixar atrás de si caso decidissem começar uma briga bem ali, naquele momento. O que Celaena planejava fazer naquela noite já quebrava regras o suficiente, ultrapassava limites demais.
A assassina inclinou o corpo na direção do bar, cruzando os tornozelos. O atendente limpou a testa de novo e serviu a ela um brandy.
— Por conta da casa — falou o homem, deslizando a bebida na direção de Celaena.
Ela pegou o copo, mas não bebeu. O homem umedeceu os lábios, então perguntou:
— Como... como você escapou?
— Como... como você escapou?
As pessoas se recostaram nas cadeiras, atentas para ouvir. Que espalhassem boatos. Que hesitassem antes de cruzar o caminho dela. Celaena esperava que Arobynn ouvisse também. Esperava que ele ouvisse e ficasse bem longe dela.
— Vai descobrir em breve — respondeu a assassina. — Mas preciso de você.
As sobrancelhas do homem se ergueram.
— De mim?
— Vim perguntar sobre um homem. — A voz dela estava rouca e inexpressiva. — Um homem que recentemente ganhou uma grande quantia em ouro. Pelo assassinato da princesa de Eyllwe. Ele atende pelo nome de Cova. Preciso saber onde está.
— Não sei de nada. — O rosto do atendente ficou ainda mais pálido.
Celaena enfiou a mão em um bolso e tirou de dentro um punhado reluzente de joias e ouro antigos. Todos os olhos os observavam agora.
— Deixe que eu repita a pergunta, atendente.
***
O assassino que se chamava de Cova correu.
Ele não sabia há quanto tempo ela o caçava. Fazia bem mais de uma semana desde que matara a princesa; uma semana, e ninguém sequer olhara na direção dele. O homem achou que tivesse se livrado daquilo — e até mesmo começara a questionar se deveria ter sido mais criativo com o corpo, se deveria ter deixado algum tipo de cartão de visitas. Mas tudo isso mudou naquela noite.
Ele estava bebendo no balcão de sua taverna preferida quando o salão lotado ficou subitamente silencioso. O assassino se virou e a viu à porta, chamando seu nome, parecendo mais um espectro do que um ser humano.
O nome nem mesmo terminara de ecoar pelo salão antes que o homem disparasse em uma corrida, escapando pela saída dos fundos para o beco. Não ouvia passos, mas sabia que ela estava atrás dele, dissolvendo-se para dentro e para fora das sombras e da névoa.
O assassino seguiu por becos e vielas, saltou sobre paredes, ziguezagueou pelos cortiços. Qualquer coisa para desnorteá-la, para exauri-la. Ele faria sua resistência final em uma rua vazia. Ali, o homem pegaria as facas presas à pele e a faria pagar pelo modo como o humilhara na competição. Pelo modo
como desdenhara dele, como quebrara seu nariz e atirara o lenço em seu peito.
Vaca burra e presunçosa.
O assassino cambaleou ao virar uma esquina, o fôlego entrecortado e pesado. Possuía apenas três adagas escondidas pelo corpo. Contudo, faria com que contassem. Quando a mulher surgiu na taverna, ele imediatamente reparou na espada longa que se estendia acima de um dos ombros e na variedade de lâminas reluzentes e de aparência maligna presas aos quadris dela. Mas o assassino podia fazer com que ela pagasse, mesmo que só tivesse algumas lâminas.
Cova estava na metade do beco de paralelepípedo quando percebeu que era um beco sem saída, a parede mais afastada era alta demais para escalar. Ali, então. Ele em breve a veria implorando por piedade antes de cortá-la em pedaços muito, muito pequenos. Ao sacar uma das adagas, o homem sorriu e se virou para a rua aberta atrás de si.
Névoa azulada flutuava no ar e um rato correu pela passagem estreita. Não havia barulho, apenas os sons de comemorações distantes. Talvez ele a tivesse despistado.
Aqueles tolos reais tinham cometido o maior erro da vida deles quando a coroaram campeã. O cliente dissera isso ao contratar Cova.
Ele esperou um instante, ainda observando a entrada vazia da rua, e então se permitiu respirar, surpreso por descobrir que estava um pouco desapontado.
Campeã do rei, de fato. Não fora nada difícil despistá-la. E agora iria para casa, e receberia outra oferta de trabalho em apenas alguns dias. E depois outra. E outra. O cliente prometera que as ofertas viriam.
Arobynn Hamel amaldiçoaria o dia em que havia rejeitado Cova da Guilda dos Assassinos por ser cruel demais com a presa.
Cova gargalhou, girando a adaga nas mãos. Então ela surgiu.
Apareceu em meio à névoa, não mais do que um fiapo de escuridão. Ela não correu — apenas caminhou com aquele ritmo insuportável.
Cova avaliou os prédios que os cercavam. A pedra era escorregadia demais, e não havia janelas.
Um passo por vez, ela se aproximou. Cova realmente, realmente se deliciaria ao fazê-la sofrer tanto quanto a princesa sofrera.
Sorrindo, o assassino recuou até o fim do beco, parando apenas quando tocou a parede de pedra com as costas. Em um espaço mais estreito, ele poderia subjugá-la. E naquela rua esquecida, poderia levar o tempo que desejasse fazendo o que quisesse.
Mesmo assim, ela se aproximou, e a espada às suas costas gemeu quando a mulher a sacou. O luar se refletiu na longa lâmina. Devia ser um presente do principezinho amante.
Cova pegou a segunda adaga da bota. Aquela não era uma competição ridícula e cheia de frescuras, organizada pela nobreza. Ali, qualquer regra valia.
A mulher não disse nada ao se aproximar.
E Cova não disse nada quando a atacou, investindo contra a cabeça dela com as duas lâminas.
A assassina deu um passo para o lado, desviando com uma facilidade enlouquecedora. Cova investiu de novo. Porém com mais rapidez do que ele conseguiu acompanhar, a mulher se abaixou e cortou as canelas do homem com a espada.
Cova caiu no chão úmido antes de sentir dor. O mundo lampejava preto e cinza e vermelho, e a agonia o dilacerou. Com uma adaga ainda na mão, ele se arrastou para trás, na direção da parede. Mas suas pernas não obedeciam, e os braços doíam ao puxar o corpo da imundície úmida.
— Vaca — grunhiu o assassino. — Vaca. — Cova chegou à parede, sangue escorria de suas pernas. O osso fora dilacerado. Ele não conseguiria andar. Mas ainda conseguiria encontrar um modo de fazê-la pagar.
A assassina parou a alguns metros e embainhou a espada. Sacou uma adaga longa e cravejada de joias. O homem a xingou, a palavra mais suja que conseguiu pensar.
Ela riu e, mais rápido do que uma víbora dando o bote, prendeu um dos braços dele contra a parede, a adaga reluzia.
A dor lancinou o pulso direito do assassino, e então o esquerdo quando esse também foi atirado contra a pedra. Cova gritou — gritou de verdade — quando viu que estava com os braços presos à parede por duas adagas.
O sangue dele estava quase negro ao luar. O homem se debatia, xingando-a repetidas vezes. Ele sangraria até a morte, a não ser que puxasse os braços da parede. Com um silêncio sobrenatural, a mulher se agachou diante de Cova e ergueu o queixo dele com outra adaga. O homem ofegava quando ela aproximou o rosto. Não havia nada sob o capuz — nada daquele mundo. A assassina não tinha rosto.
— Quem o contratou? — perguntou a mulher, a voz como cascalho.
— Para fazer o quê? — perguntou Cova, quase soluçando. Talvez pudesse fingir inocência. Usaria a lábia para se livrar, convenceria aquela puta arrogante que não tinha nada a ver com aquilo...
Ela girou a adaga, levando-a ao pescoço dele.
— Para matar a princesa Nehemia.
— N-n-ninguém. Não sei do que está falando.
E então, sem sequer tomar fôlego, a mulher enterrou outra adaga que Cova não percebeu que ela segurava contra a coxa dele. Tão profundamente que o homem sentiu a reverberação quando a lâmina acertou o paralelepípedo abaixo. O grito de Cova saiu como um estilhaço, e o assassino se contorceu, os pulsos se enterrando mais nas lâminas.
— Quem o contratou? — perguntou ela de novo. Calma, tão calma.
— Ouro — gemeu Cova. — Tenho ouro.
Celaena sacou mais uma adaga e a enfiou na outra coxa, cravando-a mais uma vez até a pedra. Cova deu um grito agudo — gritou para deuses que não o salvaram.
— Quem o contratou?
— Não sei do que está falando!
Depois de um segundo, ela arrancou as adagas das pernas dele. Cova quase se urinou de dor, de alívio.
— Obrigado. — Ele chorou, mesmo ao pensar em como a puniria. Celaena agachou, apoiando-se sobre os calcanhares, e o encarou. — Obrigado.
Mas então a assassina ergueu outra adaga, a lâmina serrilhada e reluzente, e a segurou próxima à mão de Cova.
— Escolha um dedo — disse ela. O homem tremeu e balançou a cabeça. — Escolha um dedo.
— P-por favor. — Um calor úmido encheu os fundilhos da calça dele.
— Então vai ser o polegar.
— N-não, eu... Conto tudo! — Mesmo assim, a assassina aproximou a lâmina, até apoiá-la na base do polegar de Cova. — Não! Conto tudo!
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