Capítulo 38

O amanhecer estava frio e cinzento enquanto Celaena estava de pé no familiar campo do parque de caça, um enorme graveto pendendo dos dedos enluvados. Ligeirinha estava sentada diante da dona, a cauda agitando-se pela grama longa e seca que despontava pela camada restante de neve. Mas a cadela não choramingou ou latiu para que o graveto fosse jogado.
Não, Ligeirinha apenas ficou sentada ali, observando o palácio atrás das duas. Esperando por alguém que jamais chegaria.
Celaena encarava o campo estéril, ouvia o gramado suspirar. Ninguém tentara impedila de sair dos aposentos na noite anterior — ou naquela manhã. No entanto, embora os guardas tivessem sumido, sempre que a jovem deixava os aposentos, Ress tinha o hábito estranho de acidentalmente esbarrar nela.
Não se importava que ele relatasse seus movimentos para Chaol. Nem mesmo ligava que o capitão a estivesse espionando no túmulo de Nehemia na noite anterior. Que pensasse o que quisesse sobre a canção.
Com uma inspiração longa, Celaena atirou o graveto o mais forte que conseguiu, tão longe que ele se misturou ao céu nublado da manhã. Ela não ouviu o objeto pousar.
Ligeirinha se virou para erguer o rosto para a dona, os olhos dourados da cadela cheios de perguntas. Celaena abaixou a mão para acariciar a cabeça quente, as longas orelhas, o focinho fino. Mas a pergunta permanecia.
Celaena falou:
— Ela nunca mais vai voltar.
A cadela continuou esperando.

***

Dorian passara metade da noite na biblioteca, procurando em frestas esquecidas, vasculhando cada canto escuro, cada nicho oculto por qualquer livro sobre magia. Não havia nenhum. Não era surpreendente, mas considerando quantos livros existiam na biblioteca, e quantas passagens sinuosas, ficou um pouco desapontado por não encontrar nada de valor.
Ele nem mesmo sabia o que faria com um livro como esse quando o encontrasse. Não poderia levar para seus aposentos, pois os criados o encontrariam ali. Provavelmente precisaria colocar de volta no esconderijo e voltar ao local sempre que pudesse.
O príncipe verificava uma estante dentro de um reservado de pedra quando ouviu passos. Imediatamente, como havia praticado, pegou o livro que enfiara no casaco e se inclinou contra a parede, abrindo em uma página aleatória.
— Está um pouco escuro para ler — disse uma voz feminina. Ela parecia tão normal, tão como si mesma, que Dorian quase deixou o livro cair.
Celaena estava parada a alguns metros de distância com os braços cruzados. Patinhas apressadas ecoavam contra o piso e, um instante depois, Dorian se apoiou na parede quando Ligeirinha se atirou nele, com a cauda agitada e um monte de beijos.
— Pelos deuses, você está enorme — disse o príncipe para a cadela. Ela lambeu a bochecha dele uma última vez e saiu correndo. O príncipe observou Ligeirinha partir, as sobrancelhas erguidas. — Tenho quase certeza de que o que ela está prestes a fazer não vai deixar os bibliotecários felizes.
— Ela sabe que deve se ater aos livros de poesia e de matemática.
O rosto de Celaena estava solene e pálido, mas os olhos brilhavam com leve divertimento. A jovem usava uma túnica azul-escura que Dorian jamais vira, com bordados dourados que reluziam à meia-luz. Na verdade, a roupa inteira parecia nova.
O silêncio que se instaurou entre os dois fez com que Dorian alternasse o peso do corpo entre uma perna e outra. O que poderia possivelmente dizer a Celaena? A última vez em que estiveram tão próximos, ela roçou as unhas no pescoço dele. Dorian tivera pesadelos com aquele momento.
— Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa? — perguntou ele. Permaneça normal, atenha-se ao simples.
— Príncipe herdeiro e bibliotecário real?
— Bibliotecário real não oficial — respondeu Dorian. — Um título obtido arduamente depois de muitos anos escondido aqui para evitar reuniões entediantes, minha mãe e... bem, todo o resto.
— E aqui estava eu, pensando que você apenas se escondia em sua torrezinha.
O príncipe gargalhou baixo, mas o som, de alguma forma, acabou com o divertimento nos olhos de Celaena. Como se o ruído de diversão fosse recente demais diante do ferimento da morte de Nehemia.
Atenha-se ao simples, lembrou-se.
— Então? Tem algum livro que posso ajudá-la a encontrar? Se essa é uma lista de títulos em sua mão, posso procurá-los no catálogo.
— Não — disse Celaena, dobrando os papéis ao meio. — Livro nenhum. Eu só queria caminhar.
E Dorian fora até aquele canto escuro da biblioteca apenas para ler.
Mas o príncipe não insistiu, pois Celaena poderia facilmente começar a fazer perguntas a ele também. Caso se lembrasse do que aconteceu quando atacou Chaol, quer dizer.
Dorian esperava que a jovem não se lembrasse.
Um gritinho abafado foi ouvido de algum lugar da biblioteca, seguido por uma série de xingamentos aos berros e as familiares passadas de patinhas na pedra. Então Ligeirinha apareceu disparada no fim do corredor, um pergaminho na boca.
— Sua besta travessa! — gritava um homem. — Volte aqui agora!
A cadela passou zunindo, um borrão dourado.
Um instante depois, quando o bibliotecário entrou no campo de visão dos dois e perguntou se tinham visto um cão, Celaena apenas balançou a cabeça e disse que ouvira alguma coisa — na direção oposta. E então, mandou que mantivesse a voz baixa, pois aquilo era uma biblioteca.
Os olhos do bibliotecário a fuzilaram, o homem bufou e saiu marchando, os gritos um pouco mais baixos.
Quando ele se foi, Dorian se virou para Celaena, as sobrancelhas erguidas.
— Aquele pergaminho poderia ter valor inestimável.
Ela deu de ombros.
— O bibliotecário parecia precisar do exercício.
E então sorriu. Hesitante, a princípio, mas depois Celaena balançou a cabeça e o sorriso se alargou o bastante para mostrar os dentes.
Foi apenas quando a assassina olhou de novo para Dorian que ele percebeu que a encarava, tentando entender a diferença entre aquele sorriso e o que ela dera para o rei no dia em que colocou a cabeça de Cova sobre a mesa do conselho.
Como se pudesse ler os pensamentos dele, Celaena falou:
— Peço desculpas por meu comportamento ultimamente. Eu não... tenho sido eu mesma.
Ou apenas tinha sido uma parte de si que costumava segurar com rédeas muito curtas, pensou o príncipe. Mas disse:
— Entendo.
E pelo modo como os olhos de Celaena se suavizaram, Dorian soube que era tudo que precisava dizer.

***

Chaol não estava se escondendo do pai. Não estava se escondendo de Celaena. E não estava se escondendo de seus homens, que agora sentiam um ímpeto ridículo de cuidar do capitão. Mas a biblioteca oferecia, de fato, um bom refúgio e privacidade. Talvez respostas também.
O bibliotecário-chefe não estava na pequena sala enfiada em uma das paredes da biblioteca. Então Chaol pediu a um aprendiz. O jovem desengonçado apontou, deu umas instruções vagas e desejou boa sorte.
O capitão seguiu as direções do rapaz até um lance curvo de escadas de mármore preto e pelo corrimão do mezanino. Estava prestes a virar em um corredor de livros quando ouviu os dois falando.
Na verdade, ouviu Ligeirinha trotando primeiro, e olhou por cima do corrimão de mármore a tempo de ver Celaena e Dorian caminhando na direção das enormes portas principais. Estavam a uma distância confortável e casual um do outro, mas... mas ela estava conversando; os ombros relaxados, seu caminhar era suave. Tão diferente da mulher de sombra e escuridão que Chaol vira no dia anterior.
O que os dois estavam fazendo ali... juntos?
Não era da conta dele. Na verdade, estava grato por Celaena conversar com alguém, e não queimar as roupas ou massacrar assassinos corrompidos. Mesmo assim, algo se contorceu no coração do capitão por Dorian ser aquele ao lado dela.
Mas Celaena estava falando.
Então ele rapidamente se afastou do corrimão na sacada e caminhou mais para dentro da biblioteca, tentando afastar a imagem da cabeça. Encontrou Harlan Sensel, o bibliotecário-chefe, bufando e resmungando em um dos corredores principais da biblioteca, sacudindo um punhado de papéis rasgados no ar ao redor.
Sensel estava tão ocupado xingando que mal reparou quando Chaol apareceu em seu caminho. O bibliotecário precisou inclinar a cabeça para trás para vê-lo, então franziu a testa.
— Que bom, está aqui — falou Sensel, e voltou a andar. — Higgins deve ter mandado chamá-lo.
O capitão não fazia ideia do que Sensel estava falando.
— Precisa de assistência com alguma questão?
— Questão! — Sensel agitou os papéis rasgados. — Há bestas selvagens correndo soltas em minha biblioteca! Quem deixou aquela... aquela criatura entrar? Exijo que paguem por isto!
Chaol teve a sensação de que Celaena tinha algo a ver com aquilo. Ele apenas esperava que ela e Ligeirinha estivessem fora da biblioteca antes que Sensel chegasse à sala.
— Que tipo de pergaminho foi danificado? Farei com que substituam.
— Substituam! — disparou Sensel. — Substituir isto?
— O que é, exatamente?
— Uma carta! Uma carta de um amigo meu muito próximo!
Chaol afastou a irritação.
— Se é apenas uma carta, não acho que o dono da criatura possa oferecer pagamento. Embora, talvez, fique feliz em doar alguns livros em...
— Atire-o à masmorra! Minha biblioteca se tornou pouco mais que um circo! Sabia que tem uma pessoa encapuzada rondando as estantes altas horas da noite? Foi ela quem provavelmente soltou aquela besta terrível na biblioteca! Então, encontre-a e...
— A masmorra está cheia — mentiu Chaol. — Mas vou investigar. — Enquanto Sensel terminava o falatório sobre a caçada verdadeiramente exaustiva que precisou fazer para recuperar a carta, Chaol debatia se deveria apenas ir embora.
Mas tinha perguntas, e depois que chegaram ao mezanino e ele teve certeza de que Celaena, Ligeirinha e Dorian tinham partido havia muito tempo, o capitão disse:
— Tenho uma pergunta para você, senhor.
Sensel se envaideceu com o respeito, e Chaol fez o possível para parecer desinteressado.
— Se eu quisesse pesquisar hinos fúnebres, lamentos, de outros reinos, qual seria o melhor lugar para começar?
Sensel deu um olhar confuso para o capitão, em seguida observou:
— Que assunto pesado.
Chaol deu de ombros e fez uma tentativa:
— Um de meus homens é de Terrasen, e a mãe dele morreu recentemente, então gostaria de honrá-lo ao aprender uma das canções de lá.
— É para isso que o rei lhe paga: aprender canções tristes com as quais fazer serenata para seus homens?
Chaol quase riu diante da ideia de fazer serenata para seus homens, mas deu de ombros de novo.
— Existe algum livro que contenha essas canções?
Mesmo um dia depois, ele não conseguia tirar a música da cabeça, não conseguia impedir o calafrio que subia pelo pescoço quando a letra ecoava em sua mente. E havia aquelas outras palavras, as palavras que tinham mudado tudo: Você sempre será meu inimigo.
Celaena estava escondendo alguma coisa — um segredo que mantinha tão guardado que apenas o horror e a perda destrutiva daquela noite poderiam ter feito com que cometesse um deslize daqueles. Então, quanto mais Chaol descobrisse sobre ela, maiores as chances de estar preparado quando o segredo fosse revelado.
— Hum — respondeu o pequeno bibliotecário, descendo os degraus principais. — Bem, a maioria das canções jamais foi escrita. E por que seria?
— Certamente os eruditos de Terrasen registraram algumas delas. Orynth teve a melhor biblioteca de Erilea certa vez — replicou Chaol.
— Isso é verdade — falou Sensel com uma pontada de tristeza nas palavras. — Mas acho que ninguém jamais se incomodou em escrever os hinos. Pelo menos, não de um modo que fosse possível chegarem até aqui.
— E quanto a outras línguas? Meu guarda de Terrasen mencionou algo sobre um hino que ouviu certa vez cantado em outra língua, embora jamais tenha aprendido qual era.
O bibliotecário acariciou a barba prateada.
— Outra língua? Todos em Terrasen falam a língua comum. Ninguém fala uma língua diferente lá há milhares de anos.
Estavam perto do escritório, e Chaol sabia que, assim que chegassem, aquele pequeno infeliz provavelmente o evitaria até que o capitão fizesse justiça contra Ligeirinha.
Chaol insistiu um pouco mais.
— Então não há hinos em Terrasen cantados em uma língua diferente?
— Não — respondeu o bibliotecário, enfatizando a palavra ao pensar. — Mas uma vez ouvi falar que na alta corte de Terrasen, quando a nobreza morreu, cantaram os lamentos na língua do povo feérico.
O sangue de Chaol congelou, e ele quase tropeçou, mas conseguiu continuar andando e disse:
— E essas músicas seriam conhecidas por todos, não apenas pela nobreza?
— Ah, não — falou Sensel, sem ouvir direito enquanto recitava a história em sua cabeça. — Essas canções eram sagradas para a corte. Apenas aqueles de sangue nobre a aprendiam ou cantavam. Eram ensinados e cantavam em segredo, seus mortos eram enterrados à luz da lua, quando ouvido nenhum poderia escutá-las. Pelo menos era o que os boatos diziam. Admito que, em minha própria curiosidade mórbida, esperava ouvi-los há dez anos, mas quando a matança terminou, não restava ninguém daquelas casas nobres para cantá-las.
Ninguém, exceto...
Você sempre será meu inimigo.
— Obrigado. — Chaol saiu, então virou-se de costas rapidamente, caminhando para a saída. Sensel chamou o capitão, exigindo que jurasse que encontraria o cão e o puniria, mas Chaol não se incomodou em responder.
A que casa ela pertencia? Os pais de Celaena não tinham apenas sido assassinados — eram parte da nobreza que fora executada pelo rei.
Massacrada.
Ela fora encontrada na cama deles — depois de terem sido mortos. Então, deve ter fugido até encontrar o lugar em que a filha de um nobre de Terrasen poderia se esconder: o Forte dos Assassinos. Celaena aprendera as únicas habilidades que poderiam mantê-la a salvo. Para escapar da morte, se tornara a morte.
Independentemente de qual território os pais dela governassem, se Celaena algum dia assumisse o título que perdera, e se Terrasen se erguesse...
A assassina poderia se tornar uma fonte de poder potencialmente capaz de enfrentar Adarlan. E isso a tornava mais que apenas sua inimiga.
Isso a tornava a maior ameaça que Chaol já encontrara.

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