Capítulo 4
Chaol Westfall disparava pelo parque de caça,
Celaena o acompanhava. O ar frio da manhã era como estilhaços de vidro nos
pulmões; a respiração criava fumaça na sua frente. Os dois se vestiram da
melhor forma possível sem que o peso diminuísse seu ritmo — basicamente apenas
camadas de blusas e luvas —, mas mesmo com o suor escorrendo pelo corpo, Chaol
estava congelando.
Ele sabia que Celaena também estava — o nariz
dela estava com a ponta rosada, a cor das bochechas era forte e as orelhas
brilhavam em um tom vermelho-escuro. Ao reparar que Chaol a observava, Celaena
deu a ele um sorriso, aqueles olhos turquesa deslumbrantes cheios de luz.
— Cansado? — provocou ela. — Eu sabia que você não tinha se
preocupado em treinar enquanto
estive fora.
Chaol soltou uma risada ofegante.
— Você
certamente não treinou enquanto estava na missão.
É a segunda vez esta manhã que precisei reduzir o passo por sua causa.
Uma mentira descarada. Celaena o acompanhava facilmente
naquele momento, ágil como um cervo saltitando pelo bosque. Às vezes, Chaol
achava absurdamente difícil não observá-la — não observar o modo como Celaena
se movia.
— Continue repetindo isto — disse ela, e correu
um pouco mais rápido.
Chaol aumentou a velocidade, não queria que
Celaena o deixasse para trás. Servos tinham aberto uma trilha pela neve que
cobria o parque de caça, mas o chão ainda estava com gelo e era traiçoeiro sob
os pés. Recentemente, Chaol percebia aquilo cada vez mais... o quanto odiava
quando Celaena o deixava para trás. Como odiava que ela saísse naquelas missões
desgraçadas e sem entrar em contato com ele durante dias ou semanas. Chaol não
sabia como ou quando tinha acontecido, mas, por algum motivo, havia começado a
se importar se ela voltaria ou não. E depois de tudo que os dois já haviam
enfrentado juntos...
Chaol matara Cain no duelo. Matara para salvar
Celaena. Parte dele não se arrependia disso; parte dele faria de novo sem
hesitar. Mas outra parte ainda o acordava no meio da noite, encharcado de um
suor que se parecia muito com o sangue de Cain.
Celaena olhou para Chaol.
— O que foi?
Ele lutou contra a culpa que aumentava.
— Mantenha os olhos na trilha ou vai escorregar.
Pelo menos uma vez, Celaena obedeceu.
— Quer conversar sobre isso?
Sim. Não. Se havia alguém que poderia entender a
culpa e o ódio que o remoíam ao pensar em como tinha matado Cain, seria ela.
— Com que frequência — começou ele, entre fôlegos
— pensa nas pessoas que matou?
Celaena se virou para olhá-lo, então reduziu o
passo. Chaol não queria parar, e poderia ter continuado correndo, mas ela o
segurou pelo cotovelo, forçando-o a parar. Os lábios dela formaram uma linha
fina.
— Se acha que me julgar antes de eu tomar café é
de alguma forma uma boa ideia...
— Não — interrompeu Chaol, muito ofegante. —
Não... não quis dizer isso... — Ele inspirou algumas vezes. — Não estava
julgando. — Se ao menos conseguisse recuperar a porcaria do fôlego, poderia
explicar o que queria dizer.
Os olhos de Celaena estavam congelados como o
parque ao redor, mas então ela inclinou a cabeça para o lado.
— Isso é por causa de Cain?
Ao ouvi-la dizer aquele nome, Chaol trincou o
maxilar, mas conseguiu assentir. O gelo nos olhos de Celaena se derreteu completamente.
Ele odiava aquela compaixão na expressão dela, a compreensão.
Chaol era o capitão da Guarda — estava fadado a
matar alguém em algum momento. Já vira e fizera o suficiente em nome do rei; lutara,
ferira homens. Então nem deveria se sentir daquela forma e, principalmente, não
deveria contar a ela. Havia um
limite entre os dois em algum lugar, e o capitão tinha quase certeza de que
andava ultrapassando-o cada vez mais ultimamente.
— Nunca me esquecerei das pessoas que matei —
respondeu Celaena. A respiração dela se condensou no ar entre os dois. — Mesmo
os que matei para sobreviver. Ainda vejo os rostos deles, ainda me lembro
exatamente do golpe que os matou. — Ela olhou para as árvores nuas. — Em alguns
dias, parece que outra pessoa fez aquelas coisas. E fico feliz que tenha acabado com a maioria
daquelas vidas. Não importa a causa; no entanto, ainda... Ainda leva embora um pequeno
pedaço nosso, toda vez. Então, acho que nunca vou esquecer delas.
O olhar de Celaena encontrou o de Chaol de novo,
e ele assentiu.
— Mas, Chaol — prosseguiu ela, e segurou o braço
dele com mais força; o capitão nem havia percebido que Celaena ainda o segurava
—, o que aconteceu com Cain... aquilo não foi um assassinato, nem mesmo uma
morte a sangue-frio. — Ele tentou recuar, mas ela o segurou com força. — O que você
fez não foi desonroso... e não digo isso porque foi minha vida que salvou. —
Fez uma pausa por um longo instante. — Você jamais vai se esquecer de ter
matado Cain — falou, por fim, e quando encarou Chaol, o coração dele bateu tão
forte que o capitão o sentiu pelo corpo inteiro. — Mas eu também nunca vou me
esquecer do que fez para me salvar.
A necessidade de aproximar o corpo do calor de
Celaena o fazia cambalear. Chaol se obrigou a recuar, se afastar da mão dela,
se obrigou a assentir de novo. Havia
uma linha que separava os dois. O rei poderia não
pensar duas vezes a respeito da amizade entre eles, mas ultrapassar aquela
última linha poderia ser mortal; poderia fazer com que o rei questionasse a
lealdade de Chaol, a posição dele, tudo.
E se algum dia precisasse escolher entre seu rei
e Celaena... Chaol rezava para Wyrd para que jamais se visse diante dessa decisão.
Manter-se firme daquele lado da linha era a escolha lógica. A escolha honrada também, pois
Dorian... Ele via o modo como o príncipe ainda olhava para Celaena. Chaol não
trairia o amigo dessa forma.
— Bem — falou Chaol, com uma casualidade forçada —,
imagino que ter a assassina de Adarlan em dívida comigo pode ser útil.
Celaena fez uma reverência para ele.
— Ao seu serviço.
O sorriso de Chaol foi sincero dessa vez.
— Vamos, capitão — falou Celaena, começando uma
corrida lenta. — Estou com fome e não quero congelar a bunda aqui fora.
Chaol deu uma risadinha e os dois correram pelo
parque.
***
Quando terminaram a corrida, as pernas de Celaena
estavam bambas, e os pulmões, tão doloridos do frio e do exercício que ela
achou que poderiam estar sangrando. Os dois diminuíram o passo até uma
caminhada leve conforme voltavam para o interior abafado do palácio — e para o
café da manhã gigante que Celaena estava muito ansiosa para devorar antes de ir
às compras.
Eles entraram nos jardins do castelo, em uma
caminhada entremeada pelas trilhas de cascalho e as sebes altas. Celaena
mantinha as mãos enfiadas nos braços cruzados. Mesmo com as luvas, seus dedos
estavam congelados e duros. E suas orelhas definitivamente doíam. Talvez
devesse começar a usar uma echarpe na cabeça — mesmo que Chaol implicasse com
ela sem misericórdia por causa disso.
Celaena olhou para a companhia ao seu lado, que
tinha retirado as camadas externas de roupas, revelando a camisa encharcada de suor
e colada ao corpo. Ambos deram a volta em uma sebe, e ela revirou os olhos
quando viu o que a esperava mais adiante na trilha.
Toda manhã, mais e mais damas encontravam desculpas
para passear pelos jardins logo após o alvorecer. A princípio, havia sido apenas
algumas jovens que deram uma olhada em Chaol, assim como nas roupas suadas e
coladas ao corpo dele, e interromperam a caminhada. Celaena poderia jurar que
os olhos delas tinham saltado para fora, e as línguas rolado até o chão.
Então, na manhã seguinte, elas apareceram de novo na trilha — com vestidos ainda
melhores. No dia depois daquele, mais garotas surgiram. E então diversas
outras. E agora, todos os caminhos que iam do parque de caça para o castelo
tinham pelo menos um grupo de jovens patrulhando, esperando que ele passasse.
— Ah, por favor — chiou Celaena quando passaram
por duas mulheres, que ergueram o olhar de seus regalos de pele para piscar os cílios
para Chaol. Deviam ter acordado antes do alvorecer para se vestirem de forma
tão requintada.
— O quê? — perguntou Chaol, as sobrancelhas se
erguendo.
Celaena não sabia se ele simplesmente não notava
ou se não queria dizer nada, mas...
— Os jardins estão bastante cheios para uma manhã
de inverno — falou ela, com cautela.
Chaol deu de ombros.
— Algumas pessoas ficam um pouco doidas se
passarem o inverno todo presas do lado de dentro.
Ou só querem apreciar a visão do
capitão da Guarda e dos músculos dele.
Mas tudo o que ela disse foi:
— Claro. — E então calou a boca. Não havia
necessidade de indicar o óbvio se o capitão era tão alheio. Principalmente quando
algumas das jovens eram excepcionalmente lindas.
— Vai para Forte da Fenda espiar Archer hoje? —
perguntou Chaol, baixinho, quando o caminho ficou misericordiosamente livre das
mulheres que davam risadinhas e coravam.
Ela assentiu.
— Quero ter uma noção dos horários dele, então
provavelmente vou segui-lo.
— Por que não a ajudo?
— Porque não preciso de sua ajuda. — Celaena
sabia que Chaol provavelmente interpretaria aquilo como arrogância, e, em parte,
era mesmo, mas... se ele se envolvesse, complicaria as coisas quando chegasse a
hora de levar Archer clandestinamente para a segurança. Quer dizer, depois que
ela arrancasse a verdade dele e descobrisse que planos o rei tinha em mente.
— Sei que não precisa de minha ajuda. Só achei
que talvez quisesse... — Chaol parou, então balançou a cabeça, como se repreendesse
a si mesmo. Celaena se pegouquerendo saber o que ele estava prestes a dizer,
mas era melhor deixar o assunto morrer.
Os dois deram a volta por outra sebe, o interior
do castelo estava tão próximo que ela quase resmungou ao pensar naquele calor delicioso,
mas então...
— Chaol. — A voz de Dorian cortou a manhã gélida.
Celaena chegou
a resmungar naquele momento, um som quase
inaudível. Chaol lhe lançou um olhar confuso antes de ambos se virarem para
encontrar Dorian caminhando em sua direção, com um jovem loiro no encalço.
Celaena jamais vira o jovem, que vestia roupas finas e parecia ter a idade do príncipe,
mas Chaol enrijeceu o corpo.
O rapaz não parecia uma ameaça, embora Celaena
soubesse bem que não deveria subestimar ninguém em uma corte como aquela. Ele
levava apenas uma adaga na cintura, e o rosto pálido parecia bastante jovial, apesar
do frio da manhã de inverno.
Celaena viu que Dorian a observava com um meio
sorriso, um brilho de diversão nos olhos que fez com que ela quisesse lhe dar um
tapa. O príncipe então olhou para Chaol e riu.
— E aqui estava eu, pensando que todas as jovens
tinham saído tão cedo por Roland e por mim. Quando todas pegarem um resfriado violento,
avisarei aos pais que a culpa é sua.
As bochechas de Chaol coraram levemente. Então
ele não era tão ignorante em relação à plateia matinal quanto levara Celaena a
acreditar.
— Lorde Roland — disse ele, de forma contida,
para o amigo de Dorian, e fez uma reverência.
O jovem loiro fez uma reverência para Chaol, em
resposta.
— Capitão Westfall. — A voz dele era agradável o
bastante, mas algo nela fez Celaena se conter. Não era diversão, arrogância ou
ódio... Ela não conseguia definir o que era.
— Permita-me apresentar meu primo — disse Dorian
a ela, e deu um tapinha no ombro de Roland. — Lorde Roland Havilliard de Meah. —
Ele estendeu a mão para Celaena. — Roland, esta é Lillian. Ela trabalha para meu
pai.
Ainda usavam o codinome de Celaena sempre que ela
não conseguia evitar esbarrar com integrantes da corte, embora quase todos soubessem,
de algum modo, que ela não estava no palácio para besteiras administrativas ou
política.
— O prazer é meu — falou Roland, fazendo uma
reverência. — Acaba de chegar à corte? Acho que não a vi nos anos anteriores.
Apenas o modo como o jovem falava já dizia a
Celaena o suficiente sobre o histórico dele com as mulheres.
— Cheguei neste outono — respondeu ela, um pouco
baixo demais.
Roland lançou a Celaena um sorriso cortês.
— E que tipo de trabalho faz para meu tio?
Dorian trocou o peso do corpo entre os pés, e
Chaol ficou completamente imóvel, mas a assassina respondeu, sorrindo:
— Enterro os opositores do rei onde ninguém jamais
os encontrará.
Para a surpresa de Celaena, Roland deu uma
risada. Ela não ousou olhar para Chaol, o qual, Celaena tinha certeza, lhe
daria um sermão por causa daquilo mais tarde.
— Ouvi falar da campeã do rei. Não achei que
seria alguém tão... adorável.
— O que o traz ao castelo, Roland? — indagou o
capitão. Quando Chaol olhava para ela
daquele jeito, a assassina corria na direção
oposta.
Roland sorriu de novo. Ele sorria demais — e com
muita suavidade.
— Sua Majestade me ofereceu um lugar no conselho.
— Os olhos de Chaol dispararam para Dorian, que acenou com os ombros em
confirmação. — Cheguei ontem à noite e devo começar hoje.
Chaol sorriu — se é que se podia chamar aquilo de
sorriso. Era mais uma exibição de dentes. Sim, Celaena definitivamente estaria correndo se
o capitão olhasse para ela daquela forma.
Dorian também entendeu o olhar e deu uma risada
deliberada. Mas antes que o príncipe tivesse chance falar, Roland avaliou Celaena
melhor, com atenção demais.
— Talvez você e eu consigamos trabalhar juntos,
Lillian. Sua posição me intriga.
Celaena não se importaria de trabalhar com ele —
mas não do jeito que Roland queria dizer. O modo dela incluiria uma adaga, uma
pá e uma cova rasa. Como se tivesse lido seus pensamentos,
Chaol apoiou a mão nas costas de Celaena.
— Estamos atrasados para o café da manhã — disse,
fazendo uma reverência com a cabeça para Dorian e para Roland. — Parabéns pela
nomeação. — Ele parecia ter acabado de tomar leite azedo.
Conforme permitia que Chaol a levasse para dentro
do castelo, Celaena percebeu que precisava desesperadamente de um banho. Mas
não tinha nada a ver com as roupas suadas, e tudo a ver com o sorriso oleoso e
os olhos inquietos de Roland Havilliard.
***
Dorian observou Celaena e Chaol desaparecerem atrás
da sebe, a mão do capitão ainda no meio das costas dela, que não fez nada para
afastá-la.
— Uma escolha inesperada para seu pai fazer,
mesmo com aquela competição — ponderou Roland ao lado de Dorian.
Dorian afastou a irritação antes de responder. Jamais
gostara muito do primo, o qual via pelo menos duas vezes por ano quando era
menor.
Chaol definitivamente odiava Roland, e sempre que
o nome dele era citado em uma conversa, costumava ser acompanhado de frases
como “desgraçado ardiloso” e “babaca reclamão mimado”. Pelo menos, era o que Chaol
havia gritado três anos antes, depois de socar o rosto de Roland com tanta
força que o jovem apagou.
Mas Roland merecera. Tanto merecera que não
interferira com a reputação impecável de Chaol e sua posterior nomeação para
capitão da Guarda. De fato, aquilo tinha melhorado a posição dele entre os
outros guardas e nobres inferiores. Se Dorian reunisse coragem, perguntaria ao
pai em que estava pensando ao nomear Roland para o conselho. Meah era uma
cidade costeira de Adarlan; pequena, porém próspera, mas não tinha real poder
político.
Nem mesmo possuía um exército permanente, exceto
pelas sentinelas da cidade. Roland era filho do primo do pai de Dorian; talvez
o rei sentisse que precisava de mais sangue Havilliard na sala do conselho. Mesmo
assim — Roland era inexperiente e sempre parecera mais interessado em mulheres do
que em política.
— De onde veio a campeã de seu pai? — perguntou
Roland, atraindo a atenção de
Dorian de volta para o presente. O príncipe se
virou na direção do castelo, seguindo para uma entrada diferente daquela que
Chaol e Celaena usaram. Ele ainda se lembrava da imagem dos dois quando Dorian
os surpreendeu, abraçados no quarto dela, depois do duelo, dois meses antes.
— A história de Lillian deve ser contada por ela —
mentiu Dorian.
Ele simplesmente não tinha vontade de explicar a
competição ao primo. Era ruim o bastante que o pai tivesse ordenado que Dorian
levasse Roland para passear naquela manhã. O único ponto positivo tinha sido
ver Celaena contemplar tão obviamente formas de enterrar o jovem lorde.
— Ela é para uso pessoal de seu pai ou os outros
membros do conselho também a empregam?
— Você está aqui há menos de um dia e já tem
inimigos para eliminar, primo?
— Somos Havilliard, primo. Sempre teremos
inimigos que precisam ser eliminados.
Dorian franziu a testa. Mas era verdade.
— O contrato dela é exclusivo com meu pai. Mas,
caso se sinta ameaçado, posso pedir que o capitão Westfall designe um...
— Ah, é claro que não. Só estava curioso.
Roland era um saco, e tinha consciência demais do
efeito de sua beleza e de seu sobrenome perante as mulheres, mas era
inofensivo. Não era?
Dorian não sabia a resposta — e não estava certo
se queria saber.
***
O salário dela como campeã do rei era
considerável, e Celaena gastou até o último centavo. Sapatos, chapéus, túnicas,
vestidos, joias, armas, enfeites de cabelo e livros. Livros e livros e livros.
Tantos livros que Philippa precisou levar mais uma estante para o quarto dela.
Quando Celaena voltou aos seus aposentos naquela
tarde, carregando caixas de chapéus, bolsas coloridas cheias de perfumes e
doces, assim como envelopes de papel marrom com os livros que precisava ler imediatamente de qualquer jeito,
quase deixou tudo cair ao ver Dorian Havilliard sentado na sala de estar.
— Pelos deuses — disse ele, avaliando todas as
compras.
Dorian não sabia da metade. Aquilo era somente o
que ela conseguira carregar. Mais havia sido encomendado, e mais seria entregue
em breve.
— Bem — começou, quando Celaena apoiou as bolsas
na mesa, quase caindo sobre uma pilha de papel de seda e laços —, pelo menos
não está vestindo aquele preto horroroso hoje.
Celaena olhou com raiva para ele por cima dos
ombros enquanto se arrumava. Naquele dia ela usava um vestido lilás e marfim —
um pouco animado para o fim do inverno, mas usado com a esperança de que a primavera
chegasse logo. Além disso, se vestir bem garantia o melhor serviço em qualquer
loja que visitasse. Para sua surpresa, muitos lojistas se lembravam dela de anos
anteriores — e tinham engolido a mentira sobre a longa jornada para o
continente ao sul.
— E a que devo este prazer? — Celaena desatou a
capa de pele branca, mais um presente para si mesma, e a jogou em uma das
cadeiras ao redor da mesa da sala. — Já não o vi esta manhã no jardim?
Dorian continuou sentado, aquele familiar sorriso
de garoto no rosto.
— Amigos não podem se visitar mais de uma vez por
dia?
Celaena o encarou. Não tinha certeza de que ser
amiga de Dorian era algo de que ela era realmente capaz. Não quando ele sempre exibiria
aquele brilho nos olhos cor de safira — e não quando era o filho do homem que tinha
o destino de Celaena nas mãos. Mas nos dois meses desde que ela encerrara o que
quer que houvesse entre eles, Celaena sempre se pegava sentindo falta de
Dorian. Não dos beijos e do flerte, mas dele.
— O que quer, Dorian?
Um lampejo de ódio percorreu o rosto do príncipe,
que ficou de pé. Celaena precisou inclinar a cabeça para trás para olhar para ele.
— Você disse que ainda queria ser minha amiga. —
Sua voz estava baixa.
Celaena fechou os olhos por um momento.
— Estava sendo sincera.
— Então seja minha amiga — disse ele, o tom de
voz mais alegre. — Jante comigo, jogue bilhar comigo. Conte que livros está lendo...
ou comprando — acrescentou Dorian, piscando um olho na direção dos envelopes.
— Ah? — perguntou Celaena, obrigando-se a dar um
meio sorriso para ele. — Você está com tanto tempo livre ultimamente que pode
voltar a passar horas comigo?
— Bem, como de costume, tenho o rebanho de moças
para cuidar, mas sempre posso arrumar tempo para você.
Celaena piscou os cílios para ele.
— Estou verdadeiramente honrada. — Na verdade, a
ideia de Dorian com outras mulheres fazia Celaena querer quebrar uma janela,
mas não seria justo permitir que ele soubesse. Ela olhou para o relógio na pequena
mesa ao lado de uma parede. — Na verdade, preciso voltar para Forte da Fenda agora
mesmo — disse ela.
Não era mentira. Celaena ainda tinha algumas
horas de luz do dia, o bastante para vigiar a elegante mansão urbana de Archer
e começar a segui-lo para ter uma noção do paradeiro dele.
Dorian assentiu, o sorriso se dissolvendo. O
silêncio caiu, interrompido apenas pelo tique-taque do relógio na mesa. Celaena
cruzou os braços, lembrando-se do cheiro de Dorian, do gosto dos lábios dele.
Mas aquela distância entre os dois, aquela fenda horrível que se expandia todos
os dias... era para o bem.
Dorian deu um passo adiante, expondo as palmas
das mãos para Celaena.
— Quer que eu lute por você? É isso?
— Não — respondeu ela, baixinho. — Só quero que
me deixe em paz.
Os olhos de Dorian brilharam com as palavras não
ditas. Celaena o encarou, imóvel, até que o príncipe saiu em silêncio. Sozinha
na sala, Celaena apertou e abriu os punhos, subitamente enojada com todas as
embalagens bonitas na mesa.
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