Capítulo 43

Celaena estava de pé na sala de jogos encarando o piano enquanto ouvia Chaol partir, apressado. Ela não tocava havia semanas.
Originalmente, fora apenas porque não tinha tempo. Porque Archer, o mausoléu e Chaol tinham ocupado cada momento do seu dia. Então Nehemia morreu — e Celaena não entrara sequer uma vez naquele quarto, não quisera olhar para o instrumento, não quisera ouvir ou tocar música nunca mais.
Afastando o encontro com o capitão da mente, ela abriu devagar a tampa do piano e tocou as teclas de marfim.
Mas não conseguia empurrá-las, não conseguia se forçar a emitir um som. Nehemia deveria estar ali — para ajudar com Pernas Amarelas e a charada, para dizer a ela o que fazer com Chaol, para sorrir quando Celaena tocasse algo especialmente inteligente para ela.
Nehemia tinha partido. E o mundo... seguia em frente sem ela.
Quando Sam morreu, Celaena o enfiou no coração, junto com os outros mortos que amava, cujos nomes mantinha tão ocultos que às vezes esquecia. Mas Nehemia... Nehemia não cabia. Era como se seu coração estivesse muito cheio de mortos, cheio demais daquelas vidas que haviam acabado muito antes da hora.
Ela não poderia selar Nehemia daquela forma, não quando aquela cama manchada de sangue e aquelas palavras feias ainda assombravam cada passo seu, cada respiração.
Então, a jovem apenas ficou ao lado do piano, passando os dedos pelas teclas diversas vezes, e deixou que o silêncio a devorasse.

***

Uma hora depois, Celaena estava diante da segunda escada esquisita no fim do corredor esquecido de registros antigos, um relógio soava em algum lugar longínquo na biblioteca acima. As imagens do povo feérico e da flora dançavam pelas escadas iluminadas por fogo, espiralando para fora do campo de visão, cada vez mais para baixo, até profundidades desconhecidas. Celaena havia encontrado o exemplar de Os mortos andam quase imediatamente — descartado em uma mesa solitária entre algumas pilhas. Como se estivesse esperando por ela. E fora um trabalho de alguns minutos encontrar um feitiço entre as páginas que alegasse destrancar qualquer porta. Rapidamente o memorizou, praticando algumas vezes em um armário trancado.
Fora necessário todo o seu autocontrole para não gritar quando ouviu a trava se abrir na primeira vez. E na segunda. Não era surpresa que Nehemia e a família mantivessem tal poder em segredo. E não era surpresa que o rei de Adarlan o tivesse procurado para si.
Encarando as escadas, Celaena tocou Damaris, então olhou para as duas adagas cravejadas com joias que pendiam de seu cinto. Ela estava bem. Não tinha motivo para ficar nervosa. Que tipo de mal esperava encontrar em uma biblioteca, entre tantos lugares?
Certamente o rei teria lugares melhores para esconder seus interesses sombrios. Na melhor das hipóteses, encontraria mais pistas a respeito de o rei ter alguma das chaves de Wyrd e onde as guardava. Na pior... esbarraria na pessoa oculta pelo manto que tinha visto fora da biblioteca naquela noite.
Mas os olhos brilhantes que ela vira de relance do outro lado daquela porta pertenciam a algum tipo de roedor — nada mais. E se estivesse errada... Bem, o que quer que fosse, depois de matar o ridderak, aquilo não seria tão difícil, certo?
Certo. Celaena deu um passo à frente, parando no alto dos degraus. Nada. Nenhuma sensação de terror, nenhum aviso sobrenatural. Nada.
Ela deu mais um passo, então outro, prendendo a respiração enquanto fazia curvas pela escada até não conseguir mais ver o topo. Poderia ter jurado que as imagens na parede se moviam ao seu redor, que aqueles rostos lindos e selvagens dos feéricos se viravam para olhar conforme Celaena passava.
Os únicos barulhos eram os passos dela e os sussurros da chama da tocha. Um calafrio percorreu a coluna de Celaena, e ela parou quando o vazio escuro do corredor dominou seu campo de visão.
Um instante depois estava diante da porta de ferro selada. Não se deu o luxo de reconsiderar o plano ao pegar um pedaço de giz e desenhar duas marcas de Wyrd na porta, sussurrando ao mesmo tempo as palavras que acompanhavam. Elas queimavam na língua de Celaena, mas ao terminar de falar, ouviu um estampido baixo e breve como se algo na porta se abrisse.
Celaena xingou baixinho. O feitiço tinha funcionado mesmo. Ela não queria pensar a respeito de tudo que aquilo indicava, a respeito de como era capaz de funcionar sobre o ferro, o único elemento supostamente imune à magia. E não quando havia tantos feitiços terríveis no livro Os mortos andam — feitiços para conjurar demônios, para levantar os mortos, para torturar os outros até que implorassem pela morte...
Com um puxão firme, Celaena abriu a porta, encolhendo o corpo por causa do rangido contra o piso de pedras cinza. Uma brisa pútrida e fria embaraçou seus cabelos.
Ela sacou Damaris. Depois de confirmar mais de uma vez que não poderia ser trancada do lado de dentro, Celaena atravessou o portal.
A tocha que segurava revelou uma pequena escadaria de cerca de dez degraus, a qual dava em outra passagem longa e estreita. Teias de aranha e poeira preenchiam cada centímetro do lugar, mas não foi a aparência negligente que a fez parar.
Foram as portas, as dezenas de portas de ferro enfileiradas dos dois lados do corredor. Todas simples, como a porta atrás de Celaena, nenhuma revelava nada do que poderia haver do outro lado. No canto oposto do corredor, mais uma porta de ferro refletiu um brilho fraco à luz da tocha.
O que era aquele lugar?
A jovem desceu as escadas. Era tão silencioso. Como se o próprio ar estivesse prendendo o fôlego.
Ela segurou a tocha mais no alto, Damaris na outra mão, e se aproximou da primeira porta de ferro. Não tinha maçaneta, a superfície marcada apenas por uma única linha. A porta diante dessa tinha duas marcas. Números um e dois. Números ímpares à esquerda, pares à direita. Celaena continuava se movendo, acendendo tocha após tocha, afastando as cortinas de teias de aranha. Conforme avançava no corredor, os números nas portas aumentavam.
Isto é algum tipo de masmorra?
Mas o chão não tinha indícios de sangue, resto de ossos ou armas. Nem mesmo cheirava tão mal — era apenas empoeirado. Seco. A assassina tentou abrir uma das portas, mas estava firmemente trancada. Todas estavam trancadas. E algum instinto disse a Celaena que as mantivesse daquele jeito.
A cabeça dela latejava levemente com o início de uma dor.
O corredor se estendia, até que a jovem chegou à porta no extremo oposto, as celas de cada lado numeradas 98 e 99.
Além delas, havia uma última porta sem marcação. Celaena apoiou a tocha em um suporte ao lado e segurou a argola na porta para abri-la. Aquela era significativamente mais leve do que a anterior, mas também estava trancada. E, diferente das portas que ladeavam o corredor, aquela parecia pedir para ser destrancada — como se precisasse ser aberta. Então Celaena proferiu o feitiço para destrancar de novo, passando o giz branco como osso no metal antigo. A porta cedeu sem fazer um ruído.
Talvez esta fosse a masmorra de Gavin. Do tempo de Brannon. Isso explicaria as imagens de feéricos na escadaria acima. Talvez ele tivesse usado aquelas celas com portão de ferro para aprisionar os soldados-demônio do exército de Erawan. Ou as coisas malignas que Gavin e seu exército de guerra tinham caçado...
A boca de Celaena ficou seca quando ela passou pela segunda porta e acendeu as tochas pelo caminho. De novo, a luz revelou um pequeno lance de escadas que dava para um corredor. No entanto, aquele se curvava para a direita e era significativamente mais curto. Não havia nada nas sombras — apenas mais e mais portas de ferro trancadas de cada lado. Estava tão, tão silencioso...
Ela caminhou até chegar à porta do outro lado do corredor. Sessenta e seis celas dessa vez, todas seladas. A assassina destrancou a porta final com as marcas de Wyrd.
Celaena entrou na terceira passagem, que também fazia uma curva acentuada para a direita, e descobriu que era ainda menor. Trinta e três celas.
O quarto corredor virava para a direita de novo, e Celaena contou 22 celas. O latejar fraco em sua cabeça se tornou uma enxaqueca completa, mas era tão longe voltar para os aposentos, e Celaena já estava ali...
Ela parou diante da quarta porta final. É um espiral. Um labirinto. Leva a pessoa mais profundamente para dentro, mais para longe, abaixo do chão...
Celaena mordeu o lábio, mas destrancou a porta. Onze celas. Apertou o passo e chegou rapidamente à quinta porta. Nove celas.
Aproximou-se da sexta porta e parou subitamente.
Um tipo diferente de frio percorreu seu corpo quando ela fitou o sexto portal. O centro do espiral?
Quando o giz tocou a porta de ferro para formar as marcas de Wyrd, uma voz no fundo da mente de Celaena disse a ela para correr. E embora a assassina quisesse escutar, abriu a porta mesmo assim.
A tocha de Celaena revelou um corredor em ruínas. Parte das paredes havia cedido e as vigas de madeira estavam reduzidas a farpas. Teias de aranha se estendiam entre as estruturas quebradas de madeira, e retalhos puídos de tecido, empalados em pedras e vigas, oscilavam à leve brisa.
A morte tinha passado por ali. E não fazia muito tempo. Se aquele lugar fosse tão antigo quanto Gavin e Brannon, a maior parte do tecido teria virado pó.
Celaena olhou para as três celas que alinhavam o pequeno corredor. Havia mais uma porta no final, a qual pendia, torta, da treliça restante. Escuridão preenchia o vazio além dela.
Mas foi a terceira cela que chamou a atenção da assassina.
A porta de ferro que dava para a terceira cela tinha sido esmagada, a superfície, amassada e dobrada sobre si mesma. Mas não pelo lado de fora.
Celaena ergueu Damaris à sua frente ao se voltar para a cela aberta. Quem quer que estivesse ali dentro, tinha escapado.
Um rápido agitar da tocha pelo portal não revelara nada a não ser ossos — pilhas de ossos, a maioria estilhaçada, sem chance de reconhecimento.
Celaena voltou a atenção para o corredor. Nada se movia.
Cautelosamente, ela entrou na cela. Correntes de ferro pendiam das paredes, quebradas onde deveria haver algemas. A pedra escura estava coberta por marcas brancas; dezenas e dezenas de fendas longas e profundas em grupos de quatro. Unhas.
Ela se virou para olhar para a porta quebrada da cela. Havia diversas marcas nela.
Como alguém poderia fazer tais linhas em ferro? Em pedra?
Celaena estremeceu e saiu rapidamente da cela.
A assassina olhou de volta para o caminho de onde tinha vindo, o qual brilhava com as tochas que ela havia acendido, e então para o espaço escuro e aberto que seguia adiante.
Você está perto do centro do espiral. Apenas veja o que é — veja se fornece alguma resposta. Elena disse para procurar por pistas...
A jovem girou Damaris na mão algumas vezes — apenas para aquecer o pulso, é claro. Depois de alongar o pescoço, entrou no escuro.
Não havia suportes para tochas ali. O sétimo portal revelou apenas uma passagem curta e uma porta aberta. Um oitavo portão.
As paredes de cada lado da oitava porta estavam danificadas e com marcas de garras. A cabeça de Celaena latejou violentamente,então se acalmou quando ela se aproximou. Além do portal havia uma escada em espiral que subia, tão alto que Celaena não conseguia ver o topo. Uma subida diretamente para a escuridão.
Mas até onde?
A escadaria fedia, e a assassina segurou Damaris diante de si ao subir os degraus, com o cuidado de evitar as pedras caídas que cobriam o chão.
Cada vez mais para cima, ela escalou, grata por todo o treinamento. A dor de cabeça apenas piorou, mas quando chegou ao topo, esqueceu da fadiga, da dor.
Celaena ergueu a tocha. Paredes reluzentes de obsidiana a cercavam, estendendo-se bem para o alto — tão alto que ela não conseguia ver o teto. Estava dentro de algum tipo de câmara no fundo de uma torre.
Contorcendo-se ao longo das paredes de pedra esquisita, veios esverdeados brilhavam à luz da tocha. Celaena vira aquele material antes. Vira...
O anel do rei. O anel no dedo de Perrington. E de Cain...
Ela tocou a pedra, e um choque percorreu seu corpo, a cabeça doía tanto que Celaena arquejou. O Olho de Elena emitiu um pulso de luz azul, mas rapidamente se apagou, como se a própria luz tivesse sido sugada para a pedra e devorada.
A jovem cambaleou de volta para as escadas. Pelos deuses. O que é isto?
Como se em resposta, um estrondo ressoou pela torre, tão alto que a assassina deu um salto para trás. Ecoou e ecoou, até se tornar metálico.
Celaena ergueu o olhar para a escuridão acima.
— Sei onde estou — sussurrou ela quando o som se dissipou.
A torre do relógio.

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