Capítulo 44
Dorian olhava para a estranha escada em espiral. Celaena havia encontrado as lendárias catacumbas abaixo da biblioteca. É claro que havia. Se tinha alguém em Erilea que poderia encontrar uma coisa dessas, era ela.
O príncipe estava prestes a sair para almoçar quando a viu caminhando na direção da biblioteca, uma espada amarrada às costas. Talvez a tivesse deixado em paz se a jovem não estivesse com os cabelos trançados.
Celaena nunca prendia o cabelo, a não ser que estivesse lutando. E quando estava prestes a se sujar.
Aquilo não era espionar. E não era espreitar. Dorian estava meramente curioso.
Ele a seguiu pelos longos corredores e salas esquecidos, sempre se mantendo bem atrás, os passos silenciosos como Chaol e Brullo haviam ensinado anos antes. O príncipe seguiu até Celaena desaparecer por aquela escadaria, dando uma olhadela desconfiada por cima do ombro.
Sim, a assassina tramava alguma coisa. Então Dorian esperou. Um minuto. Cinco minutos. Dez minutos antes de a seguir. Para fazer parecer um acidente caso os caminhos dos dois se cruzassem.
E agora, o que ele via? Nada além de lixo. Pergaminhos e livros velhos espalhados.
Mais além, havia uma segunda escadaria em espiral, acesa da mesma forma que a anterior.
Um calafrio percorreu o corpo dele. Dorian não gostava nada daquilo. O que Celaena estava fazendo ali?
Como se em resposta, a magia do príncipe gritou para que ele corresse no sentido oposto — para que buscasse ajuda. Mas a biblioteca principal estava muito distante, e até que conseguisse ir até lá e voltar, algo poderia acontecer. Algo poderia já ter acontecido...
Dorian desceu rapidamente a escadaria e encontrou um corredor de iluminação fraca com uma única porta deixada entreaberta, duas marcas escritas nela com giz. Ao ver o corredor em frente ladeado por celas, ele congelou. O ferro fedia, de alguma forma — e fazia com que o estômago dele revirasse.
— Celaena? — chamou Dorian pelo corredor. Nenhuma resposta. — Celaena? — Nada.
Precisava dizer a ela para sair de lá. O que quer que fosse aquele lugar, nenhum dos dois deveria estar ali. Mesmo que o poder no seu sangue não estivesse gritando, ele sabia.
Precisava tirá-la dali.
Dorian desceu a escadaria.
***
Celaena meio que corria e saltava escadaria abaixo, fugindo do interior da torre do relógio o mais rápido possível. Embora fizesse meses desde que havia encontrado os mortos durante o duelo com Cain, a lembrança de ser atirada contra a parede escura da torre ainda estava próxima demais. Ela conseguia ver os mortos sorrindo, e recordou-se das palavras de Elena no Samhuinn sobre os oito guardiões na torre do relógio e sobre como deveria ficar longe deles.
A cabeça da jovem doía tanto que ela mal conseguia se concentrar nos degraus sob os pés.
O que estivera ali? Aquilo não tinha nada a ver com Gavin, ou com Brannon. Talvez a masmorra tivesse sido construída naquela época, mas aquilo — tudo aquilo — precisava estar ligado ao rei. Porque ele havia construído a torre do relógio, construído com...
Obsidiana pelos deuses proibida, Pedra que eles tanto temiam.
Mas... mas as chaves deveriam ser pequenas. Não colossais, como a torre do relógio. Não...
Celaena chegou à base da escadaria do relógio e congelou ao olhar para a passagem que continha a cela destruída.
As tochas haviam se apagado. Ela olhou para trás, na direção da torre do relógio. A escuridão parecia se expandir, estendendo-lhe a mão. Celaena não estava sozinha. Agarrada à própria tocha, mantendo a respiração equilibrada, ela seguiu sorrateiramente pela passagem em ruínas. Nada — nenhum som, nenhuma indicação de outra pessoa na passagem. Mas...
Na metade do caminho para baixo, Celaena parou de novo e apoiou a tocha. Ela havia marcado todas as curvas, contara os passos conforme se dirigia até lá. Conhecia o caminho pela escuridão, conseguiria encontrar o caminho de volta vendada. E se não estava sozinha ali embaixo, a tocha funcionaria como um farol. Celaena não estava nem um pouco inclinada a virar um alvo. A assassina apagou a chama com um pisão.
Escuridão total.
Celaena ergueu mais Damaris, ajustando a vista à escuridão. Mas não estava completamente escuro. Um brilho tênue era emitido do amuleto — um brilho que a permitia enxergar apenas formas confusas, como se a escuridão fosse forte demais para o Olho. Os pelos de sua nuca se arrepiaram.
A única outra vez que vira o amuleto brilhar daquela forma... Tateando pela parede com a outra mão, sem ousar virar de costas, voltou devagar na direção da biblioteca.
Houve um roçar de unha contra a pedra, então o ruído de respiração.
Não era a dela.
***
A coisa olhava pelas sombras da cela, agarrada à capa com mãos como garras. Comida. Pela primeira vez em meses. Ela era tão quente, tão fervilhante com vida. A coisa saiu ligeira pela cela e passou pela jovem que continuava a recuar às cegas.
Desde que a haviam trancado ali embaixo para apodrecer, desde que tinham se cansado de brincar com ela, a coisa havia se esquecido de muito. Esquecera-se do próprio nome, do que costumava ser. Mas agora sabia coisas mais úteis — melhores. Como caçar, como se alimentar, como usar aquelas marcas para abrir e fechar portas. Havia prestado atenção durante os longos anos; observara-os fazendo as marcas.
E depois que partiram, a coisa esperou até saber que não voltariam. Até que ele estivesse olhando para outro lado e tivesse levado todas as outras coisas com ele. Então, começou a abrir portas, uma após a outra.
Algum fiapo da coisa permanecia mortal o suficiente para sempre trancar as portas, para voltar ali e constituir as marcas que trancavam a porta novamente, para se manter contida.
Mas a jovem chegara até ali. Aprendera as marcas, o que significava que tinha que saber — saber o que havia sido feito com a coisa. A jovem só podia ter participado daquilo, do rompimento e da fragmentação e, depois, da reconstrução violenta. E como ela tinha ido até lá...
A coisa se abaixou em outra sombra e esperou que a jovem caminhasse na direção de suas garras.
***
Celaena parou de recuar quando a respiração foi interrompida. Silêncio.
A luz azul ao redor dela ficou mais forte.
Celaena levou a mão ao peito.
O amuleto se incendiou.
***
A coisa andava perseguindo os homenzinhos que viviam acima havia semanas, contemplando qual seria o gosto deles. Mas havia sempre aquela luz amaldiçoada perto deles, luz que queimava seus olhos sensíveis. Havia sempre algo que a mandava, fugida, de volta para lá, para o conforto da pedra.
Ratos e seres rastejantes tinham sido sua única alimentação havia tempo demais, o sangue e os ossos deles eram ralos e insípidos.
Mas aquela fêmea... a coisa a encontrara duas vezes antes. Primeiro, com aquela mesma luz azul fraca na garganta — então uma segunda vez, quando não a vira, mas sentira o cheiro do outro lado daquela porta de ferro.
No andar de cima, a luz azul tinha sido o suficiente para afastar a coisa — a luz azul tinha gosto de poder. Mas ali embaixo, na sombra da pedra negra que respirava, aquela luz foi reduzida. Ali embaixo, agora que a coisa havia apagado as tochas que a jovem acendeu, não existia nada para impedir o ataque, e ninguém para ouvir a vítima.
A coisa não tinha esquecido, nem nos caminhos distorcidos da memória, o que havia sido feito com ela naquela mesa de pedra.
Com a boca salivando, a coisa sorriu.
***
O Olho de Elena queimou forte como chama, e Celaena ouviu um chiado no ouvido.
Virou-se, golpeando antes que conseguisse ver direito a figura coberta pelo manto atrás de si. Viu apenas um lampejo de pele enrugada e dentes pontiagudos e quebrados antes de cortar o peito da figura com Damaris.
A coisa gritou — gritou como nada que a assassina tinha ouvido antes quando o manto esfarrapado se rasgou, revelando um peito ossudo e disforme salpicado de cicatrizes. As mãos com garras se lançaram contra o rosto de Celaena ao cair, os olhos reluzentes pela luz do amuleto. Os olhos de um animal, capazes de ver no escuro.
A pessoa — criatura — do corredor. Do outro lado da porta. Celaena nem mesmo viu onde feriu a criatura quando caiu no chão.
Sangue escorreu do nariz e encheu sua boca. A assassina disparou em uma corrida cambaleante na direção da biblioteca.
Celaena saltou sobre vigas caídas e pedaços de pedra, deixando que o Olho iluminasse o caminho, mal se mantendo de pé conforme escorregava em ossos. A criatura saiu disparada atrás dela, destruindo os obstáculos como se não passassem de cortinas de fios de seda. A criatura ficava de pé como um homem, mas não era um homem — não, aquele rosto era algo saído de um pesadelo. E a força daquilo, para conseguir empurrar aquelas vigas caídas como se fossem espigas de trigo...
As portas de ferro estavam ali para manter aquilo do lado de dentro. E Celaena destrancara todas elas.
Ela disparou para cima da pequena escada e atravessou o primeiro portal. Quando se virou para a esquerda, a coisa a segurou pela parte de trás da túnica. O tecido rasgou. Celaena se chocou contra a parede oposta, abaixando-se quando a coisa disparou na sua direção.
Damaris cantou e a criatura rugiu, caindo para trás. Sangue preto espirrou do ferimento no abdômen. Mas Celaena não havia cortado fundo o bastante.
Ao ficar de pé, sangue escorrendo pelas costas do lugar em que as garras a haviam perfurado, Celaena sacou uma adaga com a outra mão.
O capuz caíra da criatura, revelando o que parecia o rosto de um homem — parecia, porém não era mais. Os cabelos eram ralos, pendendo do crânio reluzente em mechas grudadas, e os lábios... havia tantas cicatrizes ao redor da boca, como se alguém a tivesse rasgado, então costurado, depois rasgado de novo.
A criatura apertou a mão retorcida contra o abdômen, ofegando entre aqueles dentes marrons e quebrados enquanto olhava para Celaena — olhava com tanto ódio que a jovem não conseguia se mover. Era uma expressão tão humana...
— O que você é? — Ela arquejou, girando Damaris ao recuar mais um passo.
Mas a criatura subitamente começou a se atacar com as próprias garras, rasgando as vestes escuras, puxando os cabelos, apertando o crânio, como se estivesse prestes a enfiar a mão dentro e puxar algo para fora. E os gritos que emitia, o ódio e o desespero... A criatura estivera no corredor do castelo.
O que significava...
Aquela coisa, aquela pessoa — sabia como usar as marcas de Wyrd também. E com aquela força sobrenatural, nenhuma barreira mortal a conteria.
A criatura inclinou a cabeça para trás e os olhos animais se concentraram em Celaena de novo. Fixos. Um predador antecipando o gosto da presa.
A assassina se virou e correu, desesperada.
***
Dorian acabara de passar pela terceira porta quando ouviu o grito de algo não humano. Uma série de ruídos de coisas se quebrando encheu a passagem, e os urros eram interrompidos a cada pancada.
— Celaena? — gritou Dorian, na direção da comoção.
Outra pancada.
— Celaena!
Então...
— Dorian, corra!
O grito esganiçado que se seguiu à ordem de Celaena tremeu as paredes. As tochas estalaram.
Dorian sacou o florete quando Celaena subiu disparada as escadas, sangue escorrendo no rosto, e bateu a porta de ferro atrás de si. Ela correu na direção do príncipe, uma espada em uma das mãos, uma adaga na outra. O amuleto no pescoço brilhava azul, como a mais quente das chamas.
Celaena estava ao lado de Dorian em um segundo. A porta de ferro se escancarou atrás deles e...
A coisa que saiu de dentro não era daquele mundo — não poderia ser. Parecia algo que costumava ser um homem, mas estava retorcido e seco e quebrado, com fome e loucura estampadas em cada osso protuberante do corpo. Deuses. Ai, deuses. O que ela havia despertado?
Os dois avançaram pelo corredor, e o príncipe xingou ao ver os degraus que levavam à porta seguinte. O tempo que levaria para subir as escadas...
Mas Celaena era rápida. E meses de treinamento a haviam fortalecido. Para humilhação eterna de Dorian, quando chegaram à base das escadas, ela o agarrou pelo colarinho da túnica, meio que puxando-o para degraus acima. A assassina impulsionou Dorian para o corredor além do portal.
Atrás deles, a coisa urrava. Ele se virou a tempo de ver os dentes quebrados da criatura brilhando ao subir as escadas. Ágil como um raio, Celaena bateu a porta de ferro na cara da criatura.
Apenas mais uma porta — Dorian conseguia visualizar a plataforma que dava para o primeiro corredor, então aquela escada em espiral, depois a segunda escada e...
E depois, quando chegassem à biblioteca principal? O que poderiam fazer contra aquela coisa?
Ao ver o terror puro no rosto de Celaena, Dorian soube que ela pensava o mesmo.
***
Celaena atirou o príncipe para o corredor, então impulsionou o corpo para trás, se chocando contra a última porta de ferro que separava o covil da criatura do restante da biblioteca. Ela colocou o peso sobre a porta e viu estrelas quando a coisa se atirou contra o outro lado. Pelos deuses, aquilo era forte — forte e selvagem e insistente...
Por um momento, a jovem cambaleou para longe e a coisa tentou abrir a porta. Mas Celaena impulsionou o corpo, atirando as costas contra a porta.
A mão da criatura ficou presa na porta, e ela urrou, rasgando o ombro de Celaena com as garras enquanto a assassina empurrava e empurrava. Sangue escorria do nariz de Celaena, misturando-se ao sangue que escorria dos ombros. As garras se enterraram mais.
Dorian correu, apoiando as costas na porta. Ele ofegava, olhando Celaena, boquiaberto.
Precisavam selar a porta. Mesmo que aquela coisa fosse inteligente o bastante para conhecer as marcas de Wyrd, precisavam ganhar tempo. Ela precisava dar a Dorian tempo o suficiente para sair. Perderiam as forças em breve, e a coisa invadiria e os mataria e quem mais entrasse em seu caminho.
Devia haver uma tranca em algum lugar, algum modo de fechar a criatura do lado de dentro, segurá-la por apenas um momento...
— Empurre — arquejou ela para Dorian.
A criatura ganhou 2 centímetros, mas Celaena empurrou forte, puxando a força das pernas. A coisa rugiu de novo, tão alto que a assassina achou que sangue jorraria de seus ouvidos. Dorian praguejou com vigor.
Celaena olhou para ele, sequer sentindo a dor das garras cravadas na pele. Suor escorreu pela testa do príncipe quando... quando...
O metal começou a esquentar pelas beiradas da porta, brilhando vermelho, então chiou...
Havia magia ali; magia estava em curso bem naquele momento, tentando selar a porta contra a criatura. Mas não vinha de Celaena.
Os olhos de Dorian estavam fechados de concentração, o rosto dele pálido como a morte.
Ela estava certa. Dorian tinha magia. Foi essa a informação que Pernas Amarelas quis vender pelo lance mais alto, vender para o próprio rei. Era um conhecimento que poderia mudar tudo. Poderia mudar o mundo.
Dorian tinha magia.
E se ele não parasse, iria se queimar na porta de ferro.
***
A porta sufocava o príncipe. Ele estava em um caixão, um caixão sem ar. A magia não conseguia respirar. Ele não conseguia respirar.
Celaena xingou quando a criatura ganhou mais espaço. Dorian nem mesmo sabia o que estava fazendo, só sabia que precisava selar aquela porta. Sua magia tinha escolhido o método. O príncipe empurrou com as pernas, empurrou com as costas, empurrou a magia ao máximo enquanto tentava soldar a porta. Girando, calor, estrangulando...
A magia escorregava para fora de Dorian. A criatura empurrou com força, o que fez com que ele saísse cambaleando. Mas Celaena se atirou com mais força contra a porta enquanto o príncipe recuperava o equilíbrio.
A espada de Celaena estava a poucos metros, mas qual era a utilidade de uma espada? Os dois não tinham esperanças de escapar com vida.
Os olhos de Celaena encontraram os de Dorian, a pergunta era muito visível no rosto ensanguentado dela:
O que foi que eu fiz?
***
Ainda presa pelas garras da criatura, Celaena nem mesmo conseguia se mover quando Dorian deu um impulso repentino na direção de Damaris. A criatura tentou escapar mais uma vez, e o príncipe girou, fazendo contato direto com o pulso da coisa. O grito emitido penetrou os ossos de Celaena, mas a porta se fechou completamente. A assassina cambaleou, a mão decepada da besta despontando de seu ombro, mas ela empurrou o corpo de volta contra a porta quando a criatura, mais uma vez, se jogou nela.
— Que diabo é isso? — gritou Dorian, atirando o peso de volta contra o ferro.
— Não sei — sussurrou Celaena. Sem o luxo de um curandeiro, arrancou a mão imunda do ombro, reprimindo um grito. — Estava lá embaixo — falou a assassina, ofegante. Mais uma pancada atrás da porta.
— Não dá para selar essa porta com magia. Precisamos... precisamos selar de outro modo. — E encontrar algo que venceria a inteligência de qualquer feitiço de destrancar que aquela criatura conhecesse, alguma forma de impedir que ela saísse. Celaena engasgou com o sangue que escorria do nariz para dentro da boca, então cuspiu no chão.
— Tem um livro, Os mortos andam. Lá haverá a resposta.
Os olhos deles se encontraram e se detiveram. Uma linha se estendeu, firmemente, entre eles — um momento de confiança e uma promessa de respostas dos dois.
— Onde está o livro? — perguntou Dorian.
— Na biblioteca. Ele encontrará você.
Posso segurar a porta por alguns minutos. Sem precisar que aquilo fizesse sentido, Dorian disparou escada acima. Percorreu estante após estante, os dedos lendo os títulos, mais e mais rápido, sabendo que cada segundo exauria as forças dela. O príncipe estava prestes a gritar de frustação quando passou por uma mesa e viu um grande título preto na superfície. Os mortos andam.
Celaena estava certa. Por que estava sempre certa, do seu próprio jeito esquisito? Dorian pegou o livro e correu para a câmara secreta. A jovem estava de olhos fechados e com os dentes vermelhos do próprio sangue enquanto os mantinha trincados.
— Aqui — disse Dorian. Sem precisar que ela pedisse, o príncipe se atirou contra a porta quando Celaena caiu no chão e pegou o livro. Ela estava com as mãos trêmulas ao virar uma página, então outra e outra. O sangue de Celaena espirrava no texto.
— “Para selar ou conter” — leu ela em voz alta. Dorian olhou para as dezenas de símbolos na página.
— Isto vai funcionar? — perguntou ele.
— Espero que sim — grunhiu Celaena, já se movendo, segurando o livro aberto na outra mão. — Depois que o feitiço for lançado, simplesmente passando por este portal, vai segurar a criatura por tempo o bastante para que possamos matá-la. — Ela enfiou os dedos nos ferimentos no peito, e Dorian apenas olhou, perplexo, quando Celaena fez a primeira marca, então a segunda, transformando o corpo detonado em um tinteiro enquanto desenhava marca após marca ao redor da porta.
— Mas para que a coisa passe pelo portal — ofegou Dorian —, nós precisaríamos...
— Abrir a porta — completou Celaena, assentindo.
O príncipe se virou para que ela estendesse o braço e desenhasse acima da cabeça dele, a respiração dos dois se misturava.
Celaena emitiu um longo suspiro ao desenhar a última marca e, subitamente, as marcas brilharam com um azul fraco. Dorian se apoiou contra a porta, mesmo ao sentir o ferro se enrijecer.
— Pode soltar — sussurrou Celaena, inclinando a espada. — Solte e venha para trás de mim.
Pelo menos não o insultou ordenando que fugisse. Inspirando uma última vez, o príncipe saltou para longe.
A criatura se chocou contra a porta, escancarando-a.
E, exatamente como a assassina dissera, a coisa congelou sob o portal, os olhos animalescos estavam selvagens quando a cabeça despontou no corredor. Houve uma pausa então, uma pausa na qual Dorian poderia ter jurado que Celaena e a criatura se olharam — e a bestialidade daquela coisa se acalmou, apenas por um momento. Apenas por um momento, e então a assassina se moveu.
A espada refletiu a luz da tocha e ouviuse um ruído de carne sendo esmagada e osso se partindo. O pescoço era espesso demais para ser decepado com um golpe, então, antes que Dorian conseguisse inspirar mais uma vez, Celaena golpeou de novo.
A cabeça caiu no chão com um estampido, sangue preto esguichou do pescoço cortado — do corpo que ainda estava paralisado à porta.
— Merda — sussurrou Dorian. — Merda.
Celaena se moveu de novo, afundando a espada na cabeça, espetando-a, como se achasse que a criatura ainda pudesse morder.
O príncipe ainda emitia um fluxo constante de xingamentos quando Celaena estendeu a mão para as marcas ensanguentadas ao redor da porta e passou o dedo por uma delas.
O corpo sem cabeça da criatura caiu no chão, o feitiço fora quebrado.
Mal terminara de cair quando a assassina golpeou quatro vezes: três para dividir o torso macilento em dois, e um quarto golpe para acertar o lugar em que o coração estaria. Bile subiu quando a espada acertou a criaturauma quinta vez, abrindo a cavidade peitoral.
O que quer que Celaena tivesse visto fez o rosto dela ficar ainda mais pálido. Dorian não queria olhar.
Com eficiência sombria, ela chutou a cabeça, humana demais, pelo portal, fazendo com que se chocasse contra o cadáver definhado da criatura. Então fechou a porta de ferro e desenhou mais algumas marcas sobre o portal, o qual brilhou e então se apagou.
Celaena se virou para o príncipe, mas Dorian olhava outra vez para a porta, agora selada.
— Quanto tempo este... este feitiço dura? — Ele quase engasgou na palavra.
— Não sei — falou Celaena, sacudindo a cabeça. — Até eu remover as marcas, acho.
— Não creio que deveríamos contar a mais ninguém sobre isto — falou Dorian, com cautela.
Celaena deu uma gargalhada um pouco selvagem. Contar aos outros, até mesmo a Chaol, significaria responder perguntas difíceis — perguntas que poderiam garantir aos dois uma viagem até a ala do abatedouro.
— Então — falou Celaena, cuspindo sangue nas pedras —, quer se explicar primeiro, ou devo eu?
***
Celaena começou, porque Dorian precisava desesperadamente trocar a túnica imunda, e conversar parecia uma boa ideia enquanto ele se despia no quarto. Ela se sentou na cama do príncipe, não parecendo muito melhor também — motivo pelo qual haviam usado as passagens dos criados até a torre.
— Sob a biblioteca há uma masmorra antiga, acho — falou Celaena, tentando manter a voz o mais baixa possível. Ela viu um lampejo de pele dourada pela porta entreaberta que dava no aposento de vestir de Dorian, então virou o rosto. — Acho... acho que alguém manteve a criatura lá dentro até que ela se libertou da cela. Aquela coisa tem vivido sob a biblioteca desde então.
Não havia necessidade de contar a Dorian que ela começava a acreditar que o rei tinha criado aquilo. A torre do relógio fora construída pelo próprio rei — então ele tinha que saber a que ela estava conectada.
Celaena estava ciente de que a criatura tinha sido feita porque no peito dela havia um coração humano. A assassina estava disposta a apostar que o rei usara pelo menos uma chave de Wyrd para fazer tanto a torre quanto o monstro.
— O que não entendo — disse Dorian, de dentro do aposento — é por que essa coisa consegue abrir as portas de ferro agora se não conseguia antes.
— Porque fui uma idiota e quebrei os feitiços sobre as portas quando entrei.
Uma mentira — de certo modo. Mas Celaena não queria explicar, não podia explicar, por que a criatura tinha sido capaz de se libertar antes e jamais ferira ninguém até então. Por que estivera no corredor naquela noite e desaparecera, por que os bibliotecários estavam vivos e ilesos.
Mas talvez o homem que a criatura fora um dia... Talvez não tivesse se perdido completamente. Havia tantas perguntas agora, tantas coisas sem resposta.
— E aquele último feitiço que você fez, na porta. Vai durar para sempre? — Dorian surgiu vestindo uma túnica nova e calça, ainda descalço. A visão dos pés dele parecia estranhamente íntima.
Celaena deu de ombros, lutando contra a vontade de limpar o rosto ensanguentado e imundo. O príncipe oferecera o banheiro particular, mas ela recusara. Aquilo também pareceu íntimo demais.
— O livro diz que é um feitiço de selagem permanente, então não acho que outra pessoa, exceto nós, conseguirá atravessar.
A não ser que o rei queira entrar e use uma das chaves de Wyrd.
Dorian passou a mão pelo cabelo, sentando-se ao lado de Celaena na cama.
— De onde veio a criatura?
— Não sei — mentiu Celaena.
O anel do rei lhe veio à mente. Mas aquela não poderia ser a chave de Wyrd; Pernas Amarelas tinha dito que eram lascas de pedra preta, não... não forjadas em algum formato. Mas ele poderia ter feito o anel usando a chave. Celaena agora entendia por que Archer e sua sociedade tanto cobiçavam quanto queriam destruir o objeto. Se o rei poderia usá-lo para fazer criaturas...
Se tivesse feito mais... Havia tantas portas. Bem mais que duzentas, todas trancadas. E tanto Kaltain quanto Nehemia haviam mencionado asas — asas nos sonhos, asas batendo sobre o desfiladeiro Ferian. O que o rei estava criando ali?
— Diga — insistiu Dorian.
— Não sei — mentiu Celaena de novo, e se odiou por isso. Como poderia fazê-lo entender uma verdade que poderia destruir tudo o que o príncipe amava?
— Aquele livro — disse Dorian. — Como sabia que ajudaria?
— Eu o encontrei um dia na biblioteca. Parecia... me seguir. Apareceu em meus aposentos quando não o levei para lá, ressurgiu na biblioteca; estava cheio daquele tipo de feitiço.
— Mas não é magia — falou Dorian, empalidecendo.
— Não a magia que você tem. É diferente. Eu nem mesmo sabia se aquele feitiço funcionaria. E por falar nisso — disse Celaena, encarando o príncipe —, você tem... magia.
Ele avaliou o rosto dela, e a assassina lutou contra a vontade de desviar os olhos.
— O que quer que eu diga?
— Diga como tem magia — sussurrou ela. — Diga como você tem e o resto do mundo não. Conte como a descobriu e que tipo de magia é. Conte tudo. — Dorian começou a balançar a cabeça, mas Celaena aproximou o corpo. — Você acabou de me ver quebrar pelo menos uma dezena das leis de seu pai. Acha que vou entregá-lo ao rei quando você poderia facilmente me destruir também?
Dorian suspirou. Depois de um instante, falou:
— Há algumas semanas, eu... explodi. Fiquei tão irritado em uma reunião do conselho que saí disparado e soquei uma parede. E, de alguma forma, a pedra quebrou, e então a janela próxima também se estilhaçou. Desde então, venho tentando descobrir de onde ela vem, que tipo de poder é exatamente. E como controlar. Mas apenas... acontece. Como...
— Como na ocasião em que me impediu de matar Chaol.
O pescoço do príncipe se mexeu quando ele engoliu em seco.
Celaena não conseguiu encará-lo ao falar:
— Obrigada por aquilo. Se não tivesse me impedido, eu... — Não importava o que houvesse acontecido entre ela e Chaol, não importava como se sentia em relação a ele agora, se o tivesse matado naquela noite, não haveria retorno, nenhuma recuperação. De alguma forma... de alguma forma, poderia tê-la transformado em outra versão daquela coisa na biblioteca. Ela sentia enjoo só de pensar nisso. — Não importa o que sua magia seja, ela salvou mais vidas que a dele naquela noite.
Dorian se virou.
— Ainda preciso aprender a controlar ou pode acontecer em qualquer lugar. Diante de qualquer um. Tive sorte até agora, mas acho que essa sorte não vai durar.
— Alguém mais sabe? Chaol? Roland?
— Não. Chaol não sabe, e Roland acaba de partir com o duque Perrington. Vão para Morath por alguns meses para... para supervisionar a situação em Eyllwe.
Aquilo tudo tinha que estar relacionado: o rei, a magia, o poder de Dorian, as marcas de Wyrd, até mesmo a criatura. O príncipe foi até a cama e levantou o colchão, puxando de dentro um livro escondido. Não era o melhor lugar para esconder algo, mas o esforço era válido.
— Tenho pesquisado as árvores genealógicas das famílias nobres de Adarlan. Mal tivemos praticantes de magia nas últimas gerações.
Havia tantas coisas que Celaena poderia contar a ele, mas se o fizesse, traria muitas perguntas. Então apenas avaliou as páginas que Dorian mostrou, virando uma por uma.
— Espere — falou Celaena.
Os ferimentos de garras no ombro irradiaram um rompante de dor quando ela levou a mão ao livro. A assassina avaliou a página na qual Dorian havia parado, o coração acelerado ao encaixar outra pista sobre o rei e os planos. Permitiu que Dorian continuasse.
— Está vendo? — falou o príncipe, fechando o livro. — Não tenho muita certeza da origem.
Ele ainda a observava com cautela. Celaena encarou Dorian e falou, baixinho:
— Há dez anos, muitas pessoas que eu... pessoas que eu amava foram executadas por terem magia. — Dor e culpa passaram pelos olhos do príncipe, mas ela continuou: — Então, entende quando digo que não desejo ver mais ninguém morrer por causa disso, mesmo o filho do homem que ordenou aquelas mortes.
— Sinto muito — respondeu Dorian, baixinho.
— Então, o que faremos agora?
— Comeremos uma refeição monstruosa, visitaremos um curandeiro, tomaremos um banho. Nessa ordem.
Dorian deu uma risada e a cutucou, de modo brincalhão, com o joelho.
Celaena inclinou o corpo para a frente, unindo as mãos entre as pernas.
— Esperaremos. Ficaremos de olho naquela porta para ter certeza de que ninguém tentará entrar e... apenas viveremos um dia após o outro.
Dorian pegou uma das mãos de Celaena, olhando em direção à janela.
— Um dia após o outro.
eu to amando a amizade delesssss
ResponderExcluirSão tão lindos juntos.
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