Capítulo 53

Quando Celaena terminou de contar a Dorian a história que contara a Chaol — embora uma versão muito mais limitada —, ele emitiu um longo suspiro e se recostou na cama.
— Parece algo saído de um livro — disse o príncipe, encarando o teto. Celaena estava sentada do outro lado da cama.
— Acredite em mim, achei que estava enlouquecendo por um tempo.
— Então você abriu mesmo um portal para outro mundo? Usando essas marcas de Wyrd?
Ela assentiu.
— Você também derrubou aquela criatura como se fosse uma folha no vento. — Ah, Celaena não se esquecera daquilo. Nem por um segundo esquecera o que significava que Dorian tivesse um poder tão puro.
— Aquilo foi apenas sorte. — Ela o observou, aquele seu príncipe bondoso e inteligente. — Ainda não consigo controlá-lo.
— No mausoléu — falou Celaena —, tem alguém que pode... oferecer algum conselho sobre como controlá-lo. Que pode ter alguma informação sobre o tipo de poder que você herdou. — Naquele momento, no entanto, Celaena não sabia exatamente como explicar Mort a Dorian, então apenas disse: — Algum dia, em breve, você e eu podemos descer lá para conhecê-lo.
— Ele é...
— Vai ver quando chegar lá. Se ele desejar conversar com você. Pode levar um tempo até perceber que gosta de você.
Depois de um instante, Dorian estendeu o braço e pegou a mão de Celaena, levando-a aos lábios para um beijo rápido. Nada romântico — um gesto de agradecimento.
— Embora as coisas estejam diferentes entre nós agora, fui sincero no que falei depois do duelo com Cain. Sempre serei grato por você ter entrado em minha vida.
A garganta de Celaena se apertou, e ela apertou a mão de Dorian.
Nehemia sonhara com uma corte que pudesse mudar o mundo, uma corte em que a lealdade e a honra fossem mais valiosas do que a obediência cega e o poder. No dia em que a princesa morreu, Celaena achou que o sonho dessa corte havia desaparecido para sempre.
Mas ao olhar para Dorian, sorrindo para ela, aquele príncipe que era inteligente, atencioso e gentil, que inspirava homens bons como Chaol a servi-lo...
Celaena se perguntou se o sonho impossível e desesperado de Nehemia a respeito daquela corte ainda podia se tornar realidade.
A verdadeira pergunta agora era se o pai de Dorian sabia a ameaça que o filho representava.

***

O rei de Adarlan precisava dar crédito ao capitão; o plano era destemido e ousado, e mandaria uma mensagem não apenas para Wendlyn, mas para todos os inimigos deles.
Com o embargo entre os países, Wendlyn se recusava a permitir a entrada de homens de Adarlan nas fronteiras. Mas mulheres e crianças em busca de refúgio ainda eram permitidas. Aquilo tornava o envio de qualquer outra pessoa impossível, mas a campeã...
O rei abaixou o rosto para a mesa do conselho, da qual o capitão esperava a decisão.
O pai de Westfall e quatro outros haviam imediatamente apoiado a ideia. Outra esperteza inesperada de Chaol. Ele havia levado aliados para a reunião.
Dorian, no entanto, o observava com uma surpresa mal escondida. Obviamente, Westfall não achou que Dorian apoiaria a decisão. Se ao menos Westfall fosse o herdeiro do rei; sua mente de guerreiro era aguçada, e ele não fugia do que precisava ser feito. O príncipe ainda tinha que aprender aquele tipo de obstinação.
Afastar a assassina do filho seria um benefício inesperado. O rei confiava na garota para fazer o trabalho sujo — mas não a queria perto de Dorian.
Celaena levara a cabeça de Archer Finn para ele naquela manhã, nem um dia a mais do que havia prometido, e explicara o que descobrira: que Archer fora responsável pela morte de Nehemia devido ao envolvimento mútuo dos dois naquela sociedade traidora.
O rei não ficou surpreso por Nehemia estar envolvida. Mas o que a assassina teria a dizer sobre aquela viagem?
— Convoquem minha campeã — falou o rei.
No silêncio que se seguiu, os membros do conselho murmuravam uns com os outros, e o filho do rei tentou chamar a atenção de Westfall. Mas o capitão evitava olhar para o príncipe.
O rei sorriu levemente, girando o anel preto no dedo. Uma pena que Perrington não estivesse ali para ver aquilo. Ele estava lidando com a revolta escrava em Calaculla — as novidades do movimento eram mantidas em tanto sigilo que até mesmo os mensageiros abriram mão das próprias vidas. O duque teria se divertido bastante com a reviravolta dos eventos naquele dia. Mas ele desejava que Perrington estivesse ali também por motivos mais importantes: ajudá-lo a descobrir quem abrira um portal na noite anterior.
O rei sentira no sonho — uma mudança repentina no mundo. Ficou aberto por apenas alguns minutos antes de alguém fechá-lo de novo. Cain tinha morrido; quem mais no castelo possuía aquele tipo de conhecimento ou poder no sangue? Seria a mesma pessoa que matou Baba Pernas Amarelas?
O rei levou a mão a Nothung, sua espada. Não havia corpo — mas nem por um segundo o rei achou que Pernas Amarelas tivesse simplesmente desaparecido. Na manhã seguinte ao sumiço da bruxa, ele mesmo fora para o parque verificar o vagão destruído. O rei vira os pingos de sangue escuro que manchavam o piso de madeira.
Pernas Amarelas fora uma rainha entre seu povo, uma das três facções violentas que destruíra a família Crochan quinhentos anos antes. Eles se orgulhavam de ter apagado muito da sabedoria das mulheres Crochan, que governaram com justiça durante mil anos. O rei convidara o parque até ali para se encontrar com a bruxa — para comprar alguns dos espelhos dela e descobrir o que restava da Aliança Dentes de Ferro, que um dia fora forte o suficiente para destruir o Reino das Bruxas.
Mas antes de Pernas Amarelas entregar qualquer informação decente, ela morreu. E frustrava o rei não saber por quê. O sangue dela fora derramado no seu castelo; outros poderiam aparecer e exigir respostas e retribuição.
Se viessem, o rei estaria pronto. Porque nas sombras do desfiladeiro Ferian, ele criava novas montarias para os exércitos que se reuniam. E suas serpentes aladas ainda precisavam de cavaleiros.
As portas da sala do conselho se abriram. A assassina entrou, os ombros para trás naqueles modos insuportáveis dela. Celaena absorveu os detalhes da sala friamente antes de parar alguns metros diante da mesa e fazer uma reverência exagerada.
— Vossa Majestade me convocou?
A assassina desviava o olhar, como costumava fazer. Exceto por aquele dia agradável em que entrara e praticamente esfolara Mullison vivo. Parte do rei desejava não ter que libertar o conselheiro arrogante da masmorra naquele momento.
— Seu companheiro, capitão Westfall, teve uma ideia bastante... incomum — disse o rei, e gesticulou para Chaol. — Por que não explica, capitão?
O capitão se virou na cadeira, então ficou de pé para encarar Celaena.
— Sugeri que a enviemos para Wendlyn para eliminar o rei e seu herdeiro. Enquanto estiver lá, também tomará os planos de defesa naval e militar deles, então, depois que o caos se instaurar no país, poderemos navegar seus recifes impenetráveis e tomar a região.
A assassina olhou para Chaol por um longo instante, e o rei notou que seu filho ficara muito, muito quieto. Então ela sorriu, uma expressão cruel e distorcida.
— Seria uma honra servir à coroa de tal forma.
O rei jamais descobrira algo sobre a marca que brilhara na cabeça da campeã durante o duelo. A marca de Wyrd era impossível de decifrar. Significava “sem nome”, ou “inominável”, ou algo próximo de “anônima”.
Mas, abençoada pelos deuses ou não, pelo sorriso malicioso no rosto, o rei soube que a assassina se deliciaria com a tarefa.
— Talvez possamos nos divertir com isso — ponderou o rei. — Wendlyn fará o baile do solstício em alguns meses. Que mensagem enviaríamos se o rei e o filho encontrassem seu fim bem debaixo dos narizes da própria corte, bem no dia de triunfo deles!
Embora o capitão tivesse ficado desconfortável com a súbita mudança de planos, a assassina sorriu para ele mais uma vez, felicidade sombria estampada no rosto. De que buraco do inferno ela tinha saído para encontrar prazer em tais coisas?
— Uma ideia brilhante, Vossa Majestade.
— Está feito, então — falou o rei, e todos olharam para ele. — Você partirá amanhã.
— Mas — interrompeu o príncipe —, ela certamente precisa de algum tempo para estudar Wendlyn, aprender os modos do lugar e...
— É uma jornada de duas semanas pelo mar — falou o rei. — E então ela precisará de tempo para se infiltrar no castelo antes do baile. Pode levar qualquer material de que precisar e estudar a bordo.
As sobrancelhas de Celaena se ergueram levemente, mas ela apenas fez uma reverência com a cabeça. O capitão ainda estava de pé, o corpo mais rígido do que o de costume.
E o príncipe tinha uma expressão de raiva — para o pai e para o capitão, com tanto ódio que o rei se perguntou se Dorian perderia a cabeça.
Mas o rei não estava particularmente interessado naqueles dramas fúteis, não quando aquele plano brilhante havia surgido.
Ele precisaria enviar os cavaleiros imediatamente para o desfiladeiro Ferian e para aas ilhas Mortas, e fazer com que o general Narok preparasse sua legião. O rei não queria cometer erros com aquela chance única em Wendlyn.
E seria a oportunidade perfeita para testar algumas das armas que ele forjava em segredo havia anos.

***

No dia seguinte.
Ela partiria no dia seguinte. E Chaol tivera a ideia? Mas por quê?
Queria exigir respostas, queria saber em que o capitão estava pensando quando elaborou aquele plano. Celaena jamais contou a ele a verdade a respeito das ameaças do rei — que ele executaria o capitão se ela não voltasse de uma missão, se falhasse. E a assassina poderia fingir as mortes de lordes inferiores e de mercadores, mas não do rei e do príncipe herdeiro de Wendlyn. Nem em mil vidas conseguiria encontrar um modo de se livrar daquilo.
Celaena andava de um lado para o outro, sabendo que Chaol não voltaria para seus aposentos ainda, e acabou descendo até o mausoléu, pelo menos para se permitir fazer alguma coisa.
Esperava que Mort lhe desse um sermão sobre o portal — o que ele fez, de forma bem abrangente —, mas não imaginava encontrar Elena esperando por ela dentro do mausoléu.
— Você tem poder o suficiente para aparecer para mim agora, mas não podia ajudar a fechar o portal ontem à noite?
Ela olhou uma vez para o semblante da rainha e começou a andar de um lado para o outro de novo.
— Eu não podia — respondeu Elena. — Mesmo agora, esta visita está me exaurindo mais rápido do que deveria.
Celaena fez uma careta para a rainha.
— Não posso ir para Wendlyn. Eu... eu não posso ir. Chaol sabe o que estou fazendo por você, então por que me faria ir até lá?
— Respire fundo — disse Elena, baixinho.
A assassina a olhou com raiva.
— Isso arruína seus planos também. Se estiver em Wendlyn, não poderei cuidar das chaves de Wyrd e do rei. E mesmo que fingisse ir e, em vez disso, saísse em uma missão pelo continente, não levaria muito para que ele percebesse que não estou onde deveria.
Elena cruzou os braços.
— Se estiver em Wendlyn, estará perto de Doranelle. Acho que é por isso que o capitão quer que você vá.
Celaena soltou uma gargalhada. Ah, em que confusão maluca Chaol a havia enfiado!
— Ele quer que eu vá me esconder com os feéricos e nunca mais volte para Adarlan? Isso não vai acontecer. Ele não apenas será morto, mas as chaves de Wyrd...
— Você velejará para Wendlyn amanhã. — Os olhos de Elena brilharam mais forte. — Deixe as chaves de Wyrd e o rei por enquanto. Vá para Wendlyn e faça o que precisa ser feito.
— Você plantou essa ideia na cabeça dele de alguma forma?
— Não. O capitão está tentando salvá-la da única forma que pode.
Celaena balançou a cabeça, olhando para a luz do sol que se projetava dentro do mausoléu pela abertura acima.
— Algum dia você vai parar de me dar ordens?
Elena soltou uma risada baixinha.
— Quando você parar de fugir do passado, sim.
Celaena revirou os olhos, então deixou os ombros se curvarem. Um caco de lembrança perfurou sua mente.
— Quando falei com Nehemia, ela mencionou... Mencionou que conhecia o próprio destino. Que o havia aceitado. Que isso colocaria as coisas em ação. Acha que ela, de alguma forma, manipulou Archer para que... — Mas Celaena não conseguiu terminar de dizer, não podia se permitir proferir aquela verdade horrível: que Nehemia arquitetara a própria morte, sabendo que mudaria mais o mundo, e Celaena, com sua morte do que com sua vida.
A mão fria e esguia pegou a de Celaena.
— Jogue este pensamento para os cantos mais afastados de sua mente. Saber a verdade, qualquer que seja, não vai mudar o que precisa fazer amanhã... aonde precisa ir.
E embora Celaena soubesse a verdade naquele momento, entendesse simplesmente pela recusa de Elena em responder, fez conforme a rainha ordenou. Haveria outros momentos, outras horas para trazer à tona aquela verdade e examinar cada uma de suas facetas sombrias e cruéis. Mas naquele momento, bem ali...
Avaliou a luz que se derramava no mausoléu. Uma luz tão fraca, mantendo a escuridão no limite.
— Wendlyn, então.
Elena deu um sorriso sombrio e apertou a mão de Celaena.
— Wendlyn, então.

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